terça-feira, 2 de março de 2021

Antropização...


Antropização...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já perdi as contas de quantas calamidades naturais o Brasil tem enfrentado ao longo de sua história. Enchentes, deslizamentos de encostas, trombas d’água, ciclones, ... Mas, também, já perdi as contas de quantas calamidades ambientais o país vem se permitindo enfrentar pelo descaso crônico com esse assunto. Carência de saneamento básico, mau uso e ocupação do solo, descarte incorreto de insumos agrícolas, pesticidas, derivados de hidrocarboneto (gasolina, óleo diesel e afins), ... E contrariando a percepção de muita gente, essas duas mazelas acabam de um jeito ou de outro se encontrando por aí.

Assistindo aos problemas que enfrenta o estado do Acre, nas últimas semanas, venho refletindo a respeito desse assunto. Sabemos que essa não é a primeira e, nem tampouco, a derradeira vez em que os rios da região cobrirão cidades inteiras e deixarão milhares de pessoas desabrigadas e desassistidas depois de perderem moradia, pertences materiais, entes queridos. A questão é que esse panorama reflete apenas o topo de uma montanha de problemas muito maior.

O mundo tem convivido, desde o século XX, com uma intensificação das mudanças climáticas e suas repercussões contributivas na deterioração da estrutura socioambiental. A realidade de extremos tem sido experimentada e discutida globalmente a fim de que sejam postas em prática medidas, no mínimo, mitigadoras; mas, as correntes de resistência ainda representam enormes desafios. Na queda de braços entre a Sustentabilidade e a Economia, a tentação de atender aos interesses da segunda parece sempre prevalecer.

No entanto, os episódios catastróficos têm se ampliado em intensidade e frequência, o que dificulta atender a todas as demandas emergenciais e de reconstrução. Olhando para o exemplo do Acre, nesse momento, o que se tem é exatamente o encontro das duas calamidades citadas acima. Ao responder as intempéries climáticas, a Natureza esbarra na negligência instaurada pelas gestões públicas em relação as calamidades ambientais.

Aquela velha história de que “obra embaixo da terra não rende voto” se traduz pela inexistência de saneamento básico. No entanto, quando acontece uma inundação a população fica totalmente exposta ao risco de contaminações diversas e a necessidade, em alguns casos, de atendimento médico-hospitalar. Leptospirose, Hepatites (A, E), Diarreias, Febre Tifoide, Cólera, Tétano, são alguns exemplos. O que em tempos de Pandemia seria um ônus a mais a recair sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), já tão colapsado.

Mas, não para por aí. O mau uso e ocupação do solo, também, contribui para a tragédia. Há uma visível permissividade gestora em relação a produção das cidades. As áreas habitadas e o tipo de edificação dispensada para a população deixa lacunas imensas de vulnerabilidade social; o que, diante de conjunturas extremas produz desdobramentos capazes de acirrar e aprofundar as linhas de desigualdade social.

A falta de orientação e incentivo as práticas de extrativismo e produção sustentáveis favorecem plenamente que a elevação dos rios arraste para o seu leito toneladas de insumos agrícolas, pesticidas, derivados de hidrocarboneto (gasolina, óleo diesel e afins), poluindo com severidade os cursos d’água, os quais são fonte de abastecimento dessas cidades. Um tipo de poluição que reflete em patologias importantes e, muitas vezes, letais; mas, que tendem a não ser tratadas adequadamente pela própria fragilidade da rede de saúde pública disponível nessa região.

Como se vê, as discussões ambientais não se limitam a Natureza em si, fauna e flora. Na medida em que o ser humano faz parte do Meio Ambiente, a análise se torna automaticamente ampliada. Porque ele não só é partícipe; mas, também, conquistador, desbravador e explorador. Ele interfere na dinâmica e no equilíbrio de onde decide se fixar. Cada vez que isso acontece há impactos e consequências passiveis ou não de estimativa e de recuperação; portanto, há custos.

Observando atentamente o mundo atual, fica fácil perceber o enorme equívoco que se tem, então, ao pensar que o custo da preservação é demasiadamente alto. Não, não é. A destruição custa muito mais. Primeiro, porque nem tudo o que é destruído poderá, algum dia, ser recuperado. Haja vista as imensas áreas desertificadas no planeta e a mudança de perfil climático que foram obrigadas a se adaptar. Algumas delas são só areia, não produzem mais nada, nem mesmo por meio da implementação de tecnologias de última geração.

Segundo, porque o meio ambiente ainda é fonte de alimentação, trabalho e renda para milhões de pessoas. Uma vez alterado pelas ações antrópicas, a sua capacidade de atender a essa demanda vai se tornando escassa. O exemplo das ilhas de plástico nos oceanos é ideal para representar essa destruição da flora e fauna aquáticas, que se manifesta na imediata redução quantitativa e qualitativa de peixes e frutos do mar para pescadores e indústria pesqueira.

Isso sem contar as toneladas de resíduos sólidos e efluentes lançados ao mar por grandes embarcações, navios de turismo e os próprios emissários de esgoto dos centros urbanos que correm pelas praias. Os oceanos estão se transformando em um verdadeiro “lixão flutuante”.

Enfim, o modo de vida estabelecido pelos seres humanos precisa urgentemente ser repensado. Há de se ter responsabilidade com os mínimos espaços ocupados. Com tudo o que é produzido e depois descartado. Saiba que pior do que o lixo que se vê lançado inadequadamente por aí, é aquele que não se vê, que é resultado de produtos químicos altamente tóxicos a se disseminar pelo solo, pelo ar, pelas águas.

As altas esferas do poder vêm sendo munidas de informações técnico-científicas detalhadas, há tempos. Deveriam perceber que o fim da linha se aproxima, porque chega uma hora em que “Você pode enganar os eleitores, mas não o meio ambiente” (Donella Meadows –  cientista ambiental, professora e escritora coautora do livro “Os limites do crescimento”, traduzido para mais de 28 idiomas).