Seja...
Por Alessandra
Leles Rocha
Entre o constrangimento e a reflexão, eu convido a
todos para seguir na segunda opção. Refletir consegue ir muito mais fundo nas
subjetividades humanas e, quem sabe, ressignificar velhos pensamentos, velhos
hábitos, velhos modos.
Não é de hoje que a hipervalorização do TER em
detrimento do SER nos desloca a tal ponto da posição verdadeira que deveríamos
ocupar; que, de repente, não SOMOS apenas ESTAMOS.
Que digam nossas reminiscências coloniais; de tão
profundas, nos impedem de reconhecer a nossa própria identidade, como se
precisássemos de artifícios mil, para existir em pé de igualdade com os demais
no mundo.
Títulos. Posses. Homenagens. Círculos sociais
requintados. Pompa e circunstância. Enfim... Como se valesse tudo a pena para
pertencer, para ser aceito, para desfrutar de uma pseudo visibilidade no High
Society. Uma verdadeira ode à casca ao contrário do fruto; uma apologia ao
“vale quanto pesa”.
Imagino que todos já tenham se dado conta de que
viver não é uma tarefa fácil. Para início de conversa, nascemos nus,
desdentados, sem linguagem definida, dependentes de tudo e de todos. E é assim
que vamos, lentamente, caindo e levantando para aprender o ofício de viver;
mas, sobretudo, de existir.
Nessa jornada sempre iniciada e nunca finda há de
se aprender. Seja na escola da vida ou na escola propriamente dita, a
construção quantitativa e qualitativa do conhecimento é inevitável. Porque
viver não cobra boletins e estrelinhas de mérito; mas, cobra o saber. Saber
pensar. Saber responder. Saber fazer. Saber se comportar. Saber em todas as
formas e sentidos.
Ontem, mudando aleatoriamente de canal na TV, me
deparei com o filme “Tempos de Paz” (2009) 1, já quase no fim. Mesmo assim, parei para
assistir o diálogo envolvente e dramático entre as personagens Clausewitz (Dan
Stulbach) e Segismundo (Tony Ramos). Quando, de repente, Clausewitz num
rompante se manifesta, “[...] Olha, eu sei que o Brasil precisa de braços
para a agricultura, mas eu sou ator. Esta é a minha profissão. Eu ainda não sei
para que serve o Teatro no mundo depois da Guerra. Só sei que eu tenho que
continuar a fazer o que sei fazer. Um dia alguém vai saber para que serve. Se
serve. Para mim basta fazer. Fazer teatro”.
Essa fala da personagem diz muito sobre essa
reflexão, sobre se manter fiel à própria identidade. Ainda que a
Pós-Modernidade venha nos conduzindo a assumir diferentes posições de sujeito
e, por consequência, diferentes identidades; sempre chega o momento em que se
faz necessário assumir aquela que de fato nos representa. Aquela que nos traduz
diante e além do espelho; bem como, para o mundo. Sem retoques. Sem
estereótipos. A nossa identidade que estava conosco quando ainda não tínhamos
nada além da própria subjetividade intrínseca a cada milímetro de
pele.
Eu sei que Clarice Lispector escreveu, “Até
cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito
que sustenta nosso edifício inteiro”. Mas, também sei que muitos deles
nem são defeitos genuínos; são, adornos dessas identidades muitas que se assume
por aí. Por isso, aqui e ali cada um vai se “sustentando” como pode, muitas
vezes, preso por grilhões invisivelmente materializados pelo inquisidor senso
comum da sociedade pós-moderna. Rendidos às vigilâncias e controles que nos
escapam as forças de rechaçá-los com a devida veemência.
Agora, durante a Pandemia, muitas pessoas têm
buscado resgatar a identidade na sua essência e vivê-la de uma maneira plena,
sem amarras impostas pela estrutura coletiva em que vivemos. Porque, como mesmo
afirmou Nelson Rodrigues, na peça “Toda Nudez será Castigada” (1965) 2, a sociedade vive permeada de
conservadorismos e hipocrisias que de tanto, nos asfixiam e podem até matar.
Esse é o momento, então, do desapego, da ruptura,
do desnudar-se das alegorias e adereços e, simplesmente, ser. Assumir-se com
todos os defeitos e qualidades que qualquer ser humano traz no pacote. Com
todas as imperfeições éticas e morais. Com todas as carências e frustrações.
Com todo o gigantismo e pequenismo que habita a alma. Só assim, quem sabe, “toda
nudez possa ser perdoada”.
1 Tempos
de Paz (2009). Baseado na premiada peça teatral “Novas Diretrizes em Tempos de
Paz”, de Bosco Brasil. http://biblioteca.ifc.edu.br/wp-content/uploads/sites/9/2017/06/Tempos-de-paz.pdf