segunda-feira, 1 de junho de 2020

#COVID-19_Reflexões

Um sujeito desconhecido




Por Alessandra Leles Rocha




Com extrema objetividade já é possível considerar 2020 como um ano de ruptura dentro da Pós-Modernidade. Todas as divisões e antagonismos sociais, as quais faziam emergir diversas posições de sujeito para os indivíduos, a partir de agora sofrerão um realinhamento profundo ditado pela existência de um inimigo invisível que transita pelo ar. Um vírus veio dizer como quando e por que se deve agir ou fazer.
Por enquanto, a paralisia imposta pelos acontecimentos ressoa seu silêncio inquietante. A realidade ainda não pode ser metodologicamente teorizada, pois os desdobramentos estão em curso, como uma avalanche que corre sobre montanhas e desfiladeiros diversos.
Aliás, disso já se percebe a fragilização iminente das fronteiras reais e imaginárias. O chamado “realizar sem limites”, segundo a própria vontade e exercício da liberdade, provou-se impossível diante das conjunturas. Uma sombra que clama a segurança se faz cada vez mais real e intransigente, talvez, movida pelo próprio instinto de sobrevivência intrínseco a condição humana que “decidiu” acordar.
Viver e morrer sempre foram os dois lados de uma mesma moeda; mas, brincar de lançá-la aos céus pode, agora, trazer o fatal para uma condição muito mais real. De modo que o individualismo se esgarça diante da morte batendo à porta. A solidão por escolha perdeu seu espaço para o isolamento social forçado, trazendo à tona a obrigação de conviverem e coexistirem as individualidades dentro de um mesmo espaço.
De repente, a necessidade de sustentar as inúmeras identidades cotidianas se sublima em único propósito existencial: ser. Redescobrir-se a si mesmo, para ser capaz de sobreviver às adversidades do momento. O jogo está sendo zerado. Há uma desconstrução da realidade em curso. Não faz sentido algum se apegar as antigas alegorias e adereços para desembarcar no novo e plenamente desconhecido.
Por isso o fundamental é ser, como uma argila pronta para modelagem. Nesse sentido, os espaços para revelar as emoções, os sentimentos, os valores, os princípios estão abertos para dar sustentação ao movimento metamórfico vigente. Somente lidando com a realidade interior, a qual sustenta cada indivíduo, é que as pessoas poderão se desapegar de todas as pseudo conquistas e triunfos, das frustrações, das futilidades, dos medos e da ansiedade.  
Depois de um vírus desconhecido aparecerá um sujeito desconhecido. Um sujeito oriundo da necessidade, não mais da escolha. Um sujeito inteiro e consciente, mas não completo. Um sujeito sem expectativas, mas esperançoso. Um sujeito que terá diante de si o esforço de construir novas bases para o mundo, tanto individuais quanto coletivas.
Aliás, nesse contexto a globalização tende a se projetar em uma perspectiva muito menos competitiva e mercantil. Na medida em que o impacto da Pandemia propagou-se em ondas pelo mundo, afetando a todos com severidade, o reiniciar implicará em uma disposição coletiva de organização social cooperativa. Diante de recursos escassos, para que a logística desse processo seja operacionalizada, tudo dependerá de diálogo e senso comum para evoluir.
De certo modo, a Pandemia trouxe mais visibilidade a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável 1, proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU). As demandas que se impuseram determinantes nessa cruzada contra o COVID-19 estão diretamente relacionadas aos 17 objetivos de desenvolvimento presentes nessa agenda, os quais têm até aqui se apresentado aquém do esperado.
Até o momento o mundo computa aproximadamente 4,6 milhões de casos e 313 mil mortes pelo COVID-19. Isso significa que a partir desses números ele já conseguiu expor a pobreza em todas as suas formas, a fome e o desequilíbrio alimentar, a insalubridade no contexto da escassez de água e saneamento básico, os desafios educacionais, a violência doméstica, o custo energético, as desigualdades econômicas, o consumo insustentável, as mudanças climáticas e a necessidade de implementação das parcerias globais para o desenvolvimento sustentável.   
A Terra não parou; enquanto seu casulo de metamorfose é fiado, tal aparência estática apenas esconde uma transformação em ebulição. Por isso, cabe a cada cidadão refletir conscientemente sobre o que acontece dentro e fora de seus muros. Há uma crise global em curso, de dimensões tão surreais, que impede qualquer um de se ater aos limites do próprio umbigo.  Uma crise que se desdobra em diferentes formas e contextos, reordenando as importâncias e prioridades enquanto desconstrói os privilégios e pretensões. O mundo não está simplesmente trocando de pele, de imagem, de identidade; mas, de sentido, de significância e de valor.