Um sujeito desconhecido
Por Alessandra Leles Rocha
Com
extrema objetividade já é possível considerar 2020 como um ano de ruptura
dentro da Pós-Modernidade. Todas as divisões e antagonismos sociais, as quais
faziam emergir diversas posições de sujeito para os indivíduos, a partir de
agora sofrerão um realinhamento profundo ditado pela existência de um inimigo
invisível que transita pelo ar. Um vírus veio dizer como quando e por que se
deve agir ou fazer.
Por
enquanto, a paralisia imposta pelos acontecimentos ressoa seu silêncio
inquietante. A realidade ainda não pode ser metodologicamente teorizada, pois
os desdobramentos estão em curso, como uma avalanche que corre sobre montanhas
e desfiladeiros diversos.
Aliás,
disso já se percebe a fragilização iminente das fronteiras reais e imaginárias.
O chamado “realizar sem limites”, segundo a própria vontade e
exercício da liberdade, provou-se impossível diante das conjunturas. Uma sombra
que clama a segurança se faz cada vez mais real e intransigente, talvez, movida
pelo próprio instinto de sobrevivência intrínseco a condição humana que
“decidiu” acordar.
Viver e
morrer sempre foram os dois lados de uma mesma moeda; mas, brincar de lançá-la
aos céus pode, agora, trazer o fatal para uma condição muito mais real. De modo
que o individualismo se esgarça diante da morte batendo à porta. A solidão por
escolha perdeu seu espaço para o isolamento social forçado, trazendo à tona a
obrigação de conviverem e coexistirem as individualidades dentro de um mesmo
espaço.
De
repente, a necessidade de sustentar as inúmeras identidades cotidianas se
sublima em único propósito existencial: ser. Redescobrir-se a si mesmo, para
ser capaz de sobreviver às adversidades do momento. O jogo está sendo zerado.
Há uma desconstrução da realidade em curso. Não faz sentido algum se apegar as
antigas alegorias e adereços para desembarcar no novo e plenamente
desconhecido.
Por isso
o fundamental é ser, como uma argila pronta para modelagem. Nesse sentido, os
espaços para revelar as emoções, os sentimentos, os valores, os princípios
estão abertos para dar sustentação ao movimento metamórfico vigente. Somente
lidando com a realidade interior, a qual sustenta cada indivíduo, é que as
pessoas poderão se desapegar de todas as pseudo conquistas e triunfos, das
frustrações, das futilidades, dos medos e da ansiedade.
Depois de
um vírus desconhecido aparecerá um sujeito desconhecido. Um sujeito oriundo da
necessidade, não mais da escolha. Um sujeito inteiro e consciente, mas não
completo. Um sujeito sem expectativas, mas esperançoso. Um sujeito que terá
diante de si o esforço de construir novas bases para o mundo, tanto individuais
quanto coletivas.
Aliás,
nesse contexto a globalização tende a se projetar em uma perspectiva muito
menos competitiva e mercantil. Na medida em que o impacto da Pandemia
propagou-se em ondas pelo mundo, afetando a todos com severidade, o reiniciar
implicará em uma disposição coletiva de organização social cooperativa. Diante
de recursos escassos, para que a logística desse processo seja
operacionalizada, tudo dependerá de diálogo e senso comum para evoluir.
De certo
modo, a Pandemia trouxe mais visibilidade a Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável 1, proposta pela Organização das Nações
Unidas (ONU). As demandas que se impuseram determinantes nessa cruzada contra o
COVID-19 estão diretamente relacionadas aos 17 objetivos de desenvolvimento
presentes nessa agenda, os quais têm até aqui se apresentado aquém do esperado.
Até o
momento o mundo computa aproximadamente 4,6 milhões de casos e 313 mil mortes
pelo COVID-19. Isso significa que a partir desses números ele já conseguiu
expor a pobreza em todas as suas formas, a fome e o desequilíbrio alimentar, a
insalubridade no contexto da escassez de água e saneamento básico, os desafios
educacionais, a violência doméstica, o custo energético, as desigualdades
econômicas, o consumo insustentável, as mudanças climáticas e a necessidade de
implementação das parcerias globais para o desenvolvimento
sustentável.
A Terra
não parou; enquanto seu casulo de metamorfose é fiado, tal aparência estática
apenas esconde uma transformação em ebulição. Por isso, cabe a cada cidadão
refletir conscientemente sobre o que acontece dentro e fora de seus muros. Há
uma crise global em curso, de dimensões tão surreais, que impede qualquer um de
se ater aos limites do próprio umbigo. Uma crise que se desdobra em
diferentes formas e contextos, reordenando as importâncias e prioridades
enquanto desconstrói os privilégios e pretensões. O mundo não está simplesmente
trocando de pele, de imagem, de identidade; mas, de sentido, de significância e
de valor.