Violência...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não adiantou fechar os olhos, tampar os ouvidos,
ou desconversar. A realidade é sempre implacável
e desbanca quaisquer divergências sobre a verdade; ela é um espelho sem distorções. E há tempos, bastante consideráveis, ela é o
retrato sobreposto de todas as mazelas sociais, ressaltado na figura da violência.
Aonde carece o diálogo prevalece à violência. Aonde
os abismos sociais se agigantam floresce a violência. Aonde persiste a desassistência
se inflama a violência. Aonde os direitos e os deveres são legendas em papel
oportunam-se novas ordens pela violência. ... Onde o Estado se omite as
relações sociais se manifestam pela violência.
E quantas não são as omissões? Os milhões de pesos e medidas no trato da
população são combustíveis fáceis para inflamar a violência; na medida em que,
abrem precedentes para o acirramento da desigualdade, enquanto ensina o
desrespeito, o descompromisso, a irresponsabilidade diante da própria
cidadania.
Sim, as omissões nutrem um eterno sentimento de
orfandade social, cuja violência se torna o ápice, o ato desesperado de
confronto com a indiferença. Por isso, os cárceres nacionais estão cheios. De fora
ou entre as grades, o abandono social é o mesmo. Para milhões de brasileiros
tanto faz ser cidadão ou não, porque de uma maneira ou de outra a realidade
lhes pune com descaso, como já dizia Rui Barbosa 1.
A violência que se vive é fruto da própria sociedade
construída. Quanto mais indiferentes nos portamos diante do cotidiano da vida,
mais à beira do colapso nos colocamos. A incapacidade de se transportar para
situações extremas e opostas à sua própria realidade desenvolve nas pessoas uma
blindagem social ilusória, que as impede de enxergar os perigos e os desafios
dessas “muralhas” erguidas ao seu redor. Sem contar que o viver de migalhas, ou
de “pão e circo”, um dia emite a fatura, também, na forma da violência.
Isso porque sempre chega a hora em que as migalhas
se tornam insuficientes. Que a barriga e os bolsos vazios se tornam os piores
conselheiros. Quando não há remédio
parar curar a dor do corpo, um lampejo de dignidade começa a pulsar. De repente,
a vida plebeia de indigência não parece mais satisfazer as míseras aspirações e
o jeito parece ser a violência.
Essa violência, a do desvalido, do esquecido, do
maltratado pela sociedade é, de algum modo, compreensível. Mas, a violência silenciosa
cometida nas esferas do poder, essa não há compreensão. Corrupção, tráfico de
influências, usurpação do dinheiro público, má administração,... são violências
que abrem precedentes para outras tantas em efeito cascata por toda a
sociedade. Enquanto permite a proliferação desse tipo de violência, o Estado se
omite nas suas responsabilidades constitucionais, éticas e morais.
Ter um efetivo de segurança bem equipado, bem
treinado, com salários justos e em dia, por exemplo, não é medida para apagar “incêndios”;
mas, obrigação estatal prevista em lei. Do mesmo modo que “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; e, promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”
2. Não há, portanto, como dissociar os caminhos
da violência.
É preciso admitir que se arrastaram correntes
por décadas, sem que nada fosse efetivamente resolvido, enquanto o excessivo contingente
de precedentes nocivos era aberto na sociedade. Estancar a sangria da violência
instituída é uma medida de extrema urgência; mas, só estancar não basta. Se não
houver uma transformação profunda na práxis das relações sociais, a tendência é
comprometer o frágil equilíbrio ainda existente.
Exemplos próximos e distantes geograficamente
apontam para os riscos do Estado se abster de suas responsabilidades,
promovendo o espetáculo do caos de suas mazelas. Seres humanos. Seres humanos que
precisam fugir se esconder. Seres humanos que perdem a sua identidade. Seres humanos
que se tornam a linha de frente da violência. Seres humanos...
Como dizia o dramaturgo e poeta alemão do século XX, Bertolt
Brecht, “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz
violentas as margens que o comprimem”. Então,
não nos esqueçamos de que a violência não é obra do
acaso. Ela é tecida lenta e
incessantemente. A impotência, a desigualdade, a luz da realidade são a sua
força motriz e todos, no frigir dos ovos, são sim responsáveis direta ou
indiretamente por ela.
1 “De tanto ver triunfar
as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a
injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem
chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser
honesto”.
2
Constituição Federal (1988), art. 3°.