Eu lamento, tu choras, ele morre, nós POSTERGAMOS!
Por Alessandra Leles Rocha
Postergar. Essa parece mesmo ser a palavra de ordem entre os seres humanos. Postergamos as obrigações, os compromissos, as preocupações, as necessidades,... a vida. Quando nos damos conta, aquilo que tanto amedronta e que não temos de fato jeito algum de postergar nos bate a porta: a morte. É! Nesse postergar sem grande malícia que o retardar das ações sempre culmina em negligência regada a muito choro e pesar.
A começar da própria saúde esse mal se conta. Sabemos que o corpo envelhece todos os dias, independente da idade, e por essa razão, cuidar e prevenir é sempre importante para não permitir que o desgaste tome conta das “peças”, muitas delas sem nenhum tipo de reposição. Mas o medo, a ignorância e tantas outras razões para não agir a tempo e à hora dispersam nosso consciente, deixando-nos vulneráveis as obras da fatalidade. Não cabe aos outros a inspeção regular e criteriosa de nossa saúde; cabe a nós, todos os dias, reparar com mais atenção no modo como anda funcionando a nossa “carcaça”, desde as avarias externas e visíveis até os mal-estares internos e desconfortantes, e ir a busca de solução para os problemas.
Na mesma toada, segue a vida cotidiana em outras vertentes. O que aconteceu no centro histórico do Rio de Janeiro, na noite de ontem 1, descreve bem o nosso “pouco caso” generalizado. Enceguecidos há tempos pela pujança do progresso deixamos de lado a história das cidades, seu patrimônio artístico-cultural, suas lembranças materiais, registros de um tempo que direta ou indiretamente se reflete sobre nós, se perder entre o descaso, a omissão, a pouca vontade em intervir e proteger contra as ações impensadas do ser humano e/ou ao próprio metamorfismo do tempo. Mas diferentemente do corpo humano, o patrimônio mobiliário (ou material) não tem voz ou consciência para manifestar os desgastes que lhe afligem externa e/ou internamente; eles estão lá, visíveis ou não, esperando que o ser humano, no alto de sua capacidade intelectual, possa percebê-los e tomar as devidas providências. E aí, seja o cidadão, transeunte comum do lugar, ou os responsáveis técnicos pelo atendimento a essa demanda de serviços, para atuar periodicamente sem espaços para a protelação.
Muito interessante o olhar humano sobre essas questões, porque ainda que a urbanização atual nos imprima em seus códigos de ética, de postura, de legislação uma infinitude de orientações sobre o certo e o errado, os limites que atendam ao nosso bem estar e segurança, tudo parece ser pertinente apenas ao novo, ao contemporâneo, ao âmbito de vigência destes. Entretanto, nesse conveniente “lapso de memória”, a vida se constrói entrelaçada entre o passado, o presente e as aspirações de futuro em uma miscelânea de interesses, de necessidades, de prioridades na organização do espaço geográfico. O fato de não cuidarmos “disso” ou “daquilo” nos coloca sempre em posição de risco iminente. Como prever se naquele fatídico momento A, B ou C estaria transitando na via pública ou mesmo dentro de um dos imóveis destruídos? Como prever se a queda de um edifício não ceifaria de nós a presença de alguém muito especial? Como prever?...
É! Discutimos com veemência e propriedade sobre a atitude “inesperada” dos terroristas que destruíram em 2001, as Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, colocando abaixo toneladas de concreto e vidas, sem que nada pudesse ser de fato feito em prol de salvá-las (em razão da mais absoluta surpresa da ação); mas, bem debaixo dos nossos olhos, não nos preocupamos Brasil afora que centenas de milhares de edificações, que podem a qualquer momento vir ao solo, sejam utilizadas e ocupadas (com ou sem autorização dos órgãos competentes) por milhares de pessoas, todos os dias, e não sejam fiscalizadas periodicamente e/ou postas em adequação aos padrões de segurança exigidos.
O fato de sermos postergadores crônicos, infelizmente não nos isenta das nossas responsabilidades humanas e cidadãs. Ao nos posicionarmos “em cima do muro”, acreditando que de lá temos a melhor visão e estamos a salvo das “intempéries”, nos declaramos absolutamente vulneráveis, desprotegidos e ingenuamente crédulos por delegar aos outros o som da nossa própria voz; tornamo-nos vítimas de nossas “fatalidades construídas”.
Tanta gente acha engraçado colocar o poder econômico como condição sine qua non para poder cobrar o direito de satisfação e qualidade sobre um determinado produto ou serviço; mas, se esquece que diariamente, independente da classe social, todos pagamos caríssimo a nossa existência sobre a Terra e não cumprimos verdadeira e satisfatoriamente essa função fiscalizadora sobre os nossos “investimentos”. Poucos são os que enxergam os problemas, antecipam as catástrofes (sejam elas em menor ou maior escala) e saem em busca de garantir o cumprimento dos direitos (tão parcos frente às obrigações), seja nos órgãos de defesa do consumidor ou do cidadão. A grande maioria posterga amparada na reconhecida morosidade da justiça; que apesar de real, não significa que a lei os deixará sem resposta. E se podemos postergar tudo, a demora em uma resposta da lei não deveria incomodar, não é mesmo?