É pegar ou largar!
Por Alessandra Leles Rocha
Mais uma data onze para marcar a história da humanidade com dor, tristeza e destruição. Dessa vez, não foram as mãos e os pensamentos maléficos, primitivos, do próprio ser humano os responsáveis pela catástrofe; mas, a natureza enfurecida a tremer o solo e a elevar as ondas do mar do Pacífico em gigantesco tsunami, que varreu a costa nordeste do Japão1.
Embora acostumados a conviver e a lidar com tais fenômenos naturais, em razão da própria geografia local, os japoneses, como quaisquer seres humanos, estão assustados com a vivência desse recente acontecimento. Por mais metódicos, disciplinados, organizados, equipados e treinados para enfrentar esse tipo de situação, não há pessoa em sã consciência que passe por tudo isso sem o menor grau de desespero, de estresse, de medo. O limite entre sobreviver ou não é demasiadamente estreito diante de tantas variáveis de peso a confrontar o próprio instinto de sobrevivência. Nessas horas, o funil da vida é muito delgado e mesmo que não queiram admitir, apenas os mais aptos prosseguirão a jornada.
Diante dos escombros, da torrente de água negra que arrastou violentamente o que estava em seu caminho, da destruição material incalculável, são as vidas que sobreviveram ao caos o retrato mais fidedigno da dimensão da tragédia. Ainda que mantendo a tradicional postura oriental, contida e reservada, os olhos e as vozes refletem incontestavelmente esse horror. O imenso desespero para acalmar os parentes e amigos afirmando-se salvo e seguro, em meio à angústia pela consciência da perda de outras tantas pessoas próximas ou não; sentimento humano, mas fortemente característico no patriotismo japonês.
Filhos de uma grande guerra insana, a qual lhes fizera pagar o preço da própria vida e renascer a partir do desfalecer do grande cogumelo atômico, os japoneses ainda trazem na alma a nobreza dos grandes samurais2 para seguir em frente. Cientes de que terão que ser guerreiros em um espaço geográfico bem mais reduzido, já que a fatalidade certamente conduzirá o governo japonês a limitar o uso e ocupação de determinadas áreas mais vulneráveis do território; disciplina, lealdade e coragem não há de lhes faltar. Essa reorganização geográfica tem sim nuances bem mais amarga do que se possa imaginar; trata-se de reavaliar princípios, necessidades, e estabelecer prioridades diante da imposição da sobrevivência. Por mais forte e importante que sejam os valores culturais, sociais de um povo, as grandes calamidades tem comprimido cada dia mais a construção de um quadro de refugiados no planeta. Entender essa dinâmica e aceitar os ditames dessa nova ordem mundial é o grande desafio para os que estão diante, literalmente, do “olho desse furacão”. Como equilibrar cidadania, soberania, terra, poder e interesses diversos, quando se tem apenas a si mesmo?
Se para um povo de tamanha hombridade, como é o japonês, um golpe como esse é difícil de assimilar; fica para o restante do planeta mais um aviso de peso: a humanidade está diante de sua mais profunda metamorfose. O que parece chacoalhar as ideias, romper meros paradigmas sociais, alterar a estrutura externa; na verdade, está transformando o cerne da alma humana. O que nenhuma guerra ou revolução foi capaz de atingir metamorficamente a humanidade no seu contexto coletivo, a natureza em poucas décadas o fará com maestria. Do fútil, do inútil, dos olhares e comportamentos blasés ao radicalismo da perplexidade frontal diante das misérias humanas, da consciência dilacerante das necessidades vitais que nos sustentam de pé, tais como a água potável, os alimentos e o abrigo; sem exigências ou restrições, será a sobrevivência vencendo a soberba, a indiferença, o descaso, a omissão. Ou passamos a ser “um por todos e todos por um”, ou morreremos à míngua, à mercê da benevolência divina; é pegar ou largar!