segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Luz. Câmera. Ação. ...


Luz. Câmera. Ação. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quase não consegui dormir, tamanha a euforia depois de Fernanda Torres se tornar a primeira brasileira a ganhar o prêmio de melhor atriz de drama no Globo de Ouro, por sua atuação em “Ainda estou aqui”. Fiquei pensando a respeito de tudo o que essa premiação representa além de si mesma.

Começando pelo fato de que ela provoca um tipo de ruptura com a nossa herança colonial eurocêntrica, que sempre buscou a validação do outro, na figura das metrópoles, inclusive, nos aspectos culturais, para apontar o bom, o belo, o importante. Bem, parece que, finalmente, no campo do cinema, rompemos essa bolha histórica. O talento indiscutível dos nossos atores, atrizes, diretores e demais profissionais da 7ª Arte, personificado por Fernanda Torres, nessa madrugada, em Los Angeles, foi levado em consideração e aclamado fora da sua zona de conforto nacional.  

E isso é incrível porque traz o olhar do próprio brasileiro para a grandiosidade que compõe a sua cultura, ou seja, ele passa a tecer uma nova percepção a respeito da sua identidade nacional. A compreender o que é cultura. Como ela atravessa as nossas vidas. Como ela nos representa enquanto sociedade plural e diversa. Como ela nos oferta um lugar de fala para as nossas crenças, valores, emoções e sentimentos, ainda que preservando delicadamente a nossa privacidade.

Contudo, a lição mais valiosa oportunizada pelo filme de Walter Salles foi tão sutil que passou despercebida por muitos. Simplesmente, porque ela não começa no filme; mas, na sensibilidade do autor Marcelo Rubens Paiva em transcrever em palavras o registro da sua história familiar, a luz do olhar de sua mãe Eunice. Uma história que se alinhava do início ao fim pela força oriunda do afeto mais genuíno que pode caber em um ser humano.

De modo que aquela família brutalmente dilacerada pelo desaparecimento do pai, por força da política ditatorial vigente no Brasil, durante o Regime Militar, só se torna capaz de resistir aos acontecimentos, em razão de um afeto incondicional que a mantinha unida. Na ausência do pai, Eunice reuniu em si esse afeto e fez dele a ligação perfeita com cada um de seus cinco filhos, para sobreviver aos desdobramentos daquele processo terrível.

Portanto, essa história que, agora, lota as salas de cinema, dentro e fora do país, não só descortina a crueldade e a perversidade autorizada pelo Estado brasileiro contra diversos de seus cidadãos, contrários ao regime político vigente entre 1964 e 1985; mas, demonstra a necessidade do afeto para não se deixar jamais embrutecer pela realidade. E olhando para a contemporaneidade esses vieses são essenciais.

Primeiro, pelo distanciamento temporal que impede às novas gerações de perceberem, em profundidade, a dimensão histórica de certos acontecimentos. A partir de uma construção autobiográfica, como é o livro de Marcelo, se torna possível contribuir significativamente para esse resgate da cidadania nacional sob diferentes aspectos, promovendo uma abertura dialógica entre gerações.

Segundo, pelo fato de que a contemporaneidade vem consolidando uma sociedade pautada pelo tripé do individualismo, do narcisismo e do egoísmo. Fechados em suas bolhas, os indivíduos estão sim, avessos às manifestações do afeto. Estão menos empáticos, solidários, fraternos, amorosos, ... Algo que não repercute apenas nas suas relações com o mundo; mas, dentro do próprio núcleo familiar. Um sinal claro de que estão vivendo sob uma fragilidade e uma vulnerabilidade extrema no que diz respeito a construir o seu porto seguro, o seu alicerce afetivo-emocional.

Então, quando a história do livro se transporta para as telas dos cinemas e passa a ser contada para milhares de espectadores, é como se a cultura brasileira fizesse as pazes com a sua gente. Um laço de afeto se restabelece, a partir da possibilidade de se perceber a importância cultural para a construção da nossa identidade, da nossa historicidade. De repente, se descobre que a cultura do outro não nos satisfaz inteiramente. Precisamos da nossa! Precisamos saber quem somos!

Porque, “A cultura é um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da interação social entre indivíduos. Esse processo é mediado pela língua, que permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as gerações, daí compreendemos que a cultura de um povo constitui-se como um todo que é realizado por cada indivíduo, afinal, cada um é peça importante na construção cultural, uma vez que é portador, disseminador, mas também criador de cultura” (Coelho; Mesquita, 2013, p.27 1).

Desse modo, só me cabe dizer que o prêmio recebido por Fernanda Torres simboliza sim, um arauto de libertação cultural contra o domínio de uma cultura sobre todas as outras e de uma desconstrução do nosso complexo de vira-lata, pela força de um afeto que afaga a nossa identidade nacional. Provou-se, de uma vez por todas, que “A evidência de que o mundo é culturalmente diverso não pode mais ser ignorada, nem mesmo por aqueles que não gostam dessa realidade e até lutam contra ela” (Agustí Nicolau Coll, 2002  2). Portanto, somos bons! Muito bons! Talentosos e competentes! Nossa cultura não está aquém de nenhuma outra!



1 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013. 

2 COLL, A. N. Proposta para uma diversidade intercultural na era da globalização. São Paulo: Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de proposições para o Século XXI, 2).