sexta-feira, 13 de maio de 2022

A abolição não libertou os brasileiros da “Casa Grande e Senzala”


A abolição não libertou os brasileiros da “Casa Grande e Senzala”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Mais um 13 de maio, no Brasil. A grande questão que deveria nos mover a reflexão, portanto, não é o fato histórico da abolição da escravatura, em 1888; mas, como pode a humanidade se render ao sistema econômico baseado na servidão cativa de seres humanos. Aliás, bem antes do Colonialismo se configurar na história do mundo, quantos não foram os seres humanos submetidos a tal prática 1?

A garantia do controle social, da manutenção do poder e da consolidação da opulência, por parte dos estratos sociais dominantes, em todos os tempos e lugares, ao contrário de constranger e de indigná-los os fez, apenas, absorver o escravagismo como um movimento genuíno e natural dentro da sociedade.  O que não surpreende pelo fato de estar alicerçado no trivialismo da estratificação social.

De modo que todos os esforços contrários, manifestos principalmente pelas vítimas da escravidão, se mostrarem inúteis na dissipação desse movimento atemporal. Apesar das inúmeras revoltas contra a escravidão relatadas na história da humanidade e a luta contínua que permanece, ainda vigente, em plena contemporaneidade, há uma necessidade indubitável de que certas questões precisam vir à tona para abrir caminhos de rupturas paradigmáticas na sociedade.

Sabemos que muitas abolições, sob diferentes formas e conteúdos, existiram. Mas, e daí? A escravidão no contexto da humanidade nunca foi só uma ideia, um conceito. Escravidão foi sempre um sistema socioeconômico, um modo de vida, uma prática integrante e integrada ao poder dentro de um dado recorte histórico.

Assim, do ponto de vista documental ela foi abolida, ou seja, na teoria. No entanto, essa não era a questão. Palavras escritas ou ditas são visivelmente inúteis e insuficientes diante de algo que se trata da vida e da dignidade de seres humanos. Alterar, de uma hora para outra, o seu status no perfil social não resume e nem resolve o assunto.

Mas, a abolição representou sim, nesses moldes terrivelmente teóricos, um lançar inadvertido e irresponsável de milhares de pessoas a uma nova vida sem quaisquer redes de proteção social.

Lhes foi dada uma liberdade que não os permitia serem livres, de fato e de direito. Porque a sua identidade havia sido subjetivamente marcada a ferro para a servidão. A celebração da abolição foi a celebração do infortúnio, da desgraça anunciada.

Escravos libertos não tinham mais do que a roupa do corpo para recomeçar a vida longe dos cativeiros. Estavam, então, fadados a viver das esmolas, das benesses, das quireras, não diferindo muito da recém-abandonada realidade escravagista.

Sua reinserção social foi, portanto, uma legitimação da inferioridade que aprenderam a carregar nos tempos da escravatura. Vieram a compor um estrato social de última classe, sujeito a todo tipo de descaso, de invisibilização, de negligência, de preconceito e de violência.

No caso brasileiro, por exemplo, eles foram expostos às intempéries, muito maiores e devastadoras, do que aquelas que estavam acostumados na rotina das senzalas rurais. Sim, porque a abolição da escravidão, aqui, fez emergir as senzalas urbanas, na forma das favelas, das palafitas, das malocas ou dos guetos.

Foi assim, então, que a linha divisória das desigualdades foi traçada. Uma linha que não pode ser considerada imaginária, porque ela prova de todas as formas, e diariamente, o quanto a identidade de escravos e escravocratas pulsa no país.

Seja nas manifestações brutais do racismo estrutural. Seja na precarização do trabalho. Seja nas práticas trabalhistas análogas à escravidão colonial. Seja no enviesamento da justiça que abandona as camadas menos favorecidas da população, as quais são majoritariamente negras.  Seja nos índices de defasagem escolar que atingem diretamente esses indivíduos. Seja na expressão mais absurda da violência cometida contra essas pessoas. Enfim...

Isso significa que nas entrelinhas dessa visão romantizada, idealizada, que se estabeleceu em torno da abolição da escravatura há uma realidade bárbara a ser efetivamente descortinada e discutida.

Simplesmente, porque a escravidão continuou cabendo e se perpetuando na sociedade brasileira. De modo que a Lei Áurea não passou de uma carta de intenção malsucedida, na medida em que ela não cumpriu a função para a qual se destinava cumprir. Fez-se um gesto. Apenas isso.

Pois é, não podemos discordar de Darcy Ribeiro, quando disse: “O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” 2.

Portanto, é preciso entender que a abolição soou como um apagamento linguístico, uma estratégia de invisibilização da palavra escravidão; só isso. A abolição não acabou com a expressão máxima, direta e materializada da escravidão que se fundamenta na relação presente no ideário da “Casa Grande e Senzala”.

Estamos nela. Vivemos nela. Respiramos a sua toxicidade a cada segundo. De modo que todas as gerações que se sucederam, daí em diante, permanecem lutando e sonhando com a sua liberdade da escravidão, com a sua inserção identitária, sem rótulos ou estereótipos, no contexto cidadão.  



2 O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil.