A
abolição não libertou os brasileiros da “Casa
Grande e Senzala”
Por
Alessandra Leles Rocha
Mais um 13 de maio, no Brasil. A
grande questão que deveria nos mover a reflexão, portanto, não é o fato
histórico da abolição da escravatura, em 1888; mas, como pode a humanidade se
render ao sistema econômico baseado na servidão cativa de seres humanos. Aliás,
bem antes do Colonialismo se configurar na história do mundo, quantos não foram
os seres humanos submetidos a tal prática 1?
A garantia do controle social, da
manutenção do poder e da consolidação da opulência, por parte dos estratos
sociais dominantes, em todos os tempos e lugares, ao contrário de constranger e
de indigná-los os fez, apenas, absorver o escravagismo como um movimento genuíno
e natural dentro da sociedade. O que não
surpreende pelo fato de estar alicerçado no trivialismo da estratificação
social.
De modo que todos os esforços contrários,
manifestos principalmente pelas vítimas da escravidão, se mostrarem inúteis na dissipação
desse movimento atemporal. Apesar das inúmeras revoltas contra a escravidão relatadas
na história da humanidade e a luta contínua que permanece, ainda vigente, em
plena contemporaneidade, há uma necessidade indubitável de que certas questões
precisam vir à tona para abrir caminhos de rupturas paradigmáticas na
sociedade.
Sabemos que muitas abolições, sob
diferentes formas e conteúdos, existiram. Mas, e daí? A escravidão no contexto
da humanidade nunca foi só uma ideia, um conceito. Escravidão foi sempre um
sistema socioeconômico, um modo de vida, uma prática integrante e integrada ao
poder dentro de um dado recorte histórico.
Assim, do ponto de vista
documental ela foi abolida, ou seja, na teoria. No entanto, essa não era a
questão. Palavras escritas ou ditas são visivelmente inúteis e insuficientes
diante de algo que se trata da vida e da dignidade de seres humanos. Alterar,
de uma hora para outra, o seu status no perfil social não resume e nem resolve
o assunto.
Mas, a abolição representou sim, nesses
moldes terrivelmente teóricos, um lançar inadvertido e irresponsável de
milhares de pessoas a uma nova vida sem quaisquer redes de proteção social.
Lhes foi dada uma liberdade que
não os permitia serem livres, de fato e de direito. Porque a sua identidade
havia sido subjetivamente marcada a ferro para a servidão. A celebração da
abolição foi a celebração do infortúnio, da desgraça anunciada.
Escravos libertos não tinham mais
do que a roupa do corpo para recomeçar a vida longe dos cativeiros. Estavam,
então, fadados a viver das esmolas, das benesses, das quireras, não diferindo
muito da recém-abandonada realidade escravagista.
Sua reinserção social foi,
portanto, uma legitimação da inferioridade que aprenderam a carregar nos tempos
da escravatura. Vieram a compor um estrato social de última classe, sujeito a
todo tipo de descaso, de invisibilização, de negligência, de preconceito e de violência.
No caso brasileiro, por exemplo,
eles foram expostos às intempéries, muito maiores e devastadoras, do que aquelas
que estavam acostumados na rotina das senzalas rurais. Sim, porque a abolição
da escravidão, aqui, fez emergir as senzalas urbanas, na forma das favelas, das
palafitas, das malocas ou dos guetos.
Foi assim, então, que a linha divisória
das desigualdades foi traçada. Uma linha que não pode ser considerada
imaginária, porque ela prova de todas as formas, e diariamente, o quanto a
identidade de escravos e escravocratas pulsa no país.
Seja nas manifestações brutais do
racismo estrutural. Seja na precarização do trabalho. Seja nas práticas trabalhistas
análogas à escravidão colonial. Seja no enviesamento da justiça que abandona as
camadas menos favorecidas da população, as quais são majoritariamente negras. Seja nos índices de defasagem escolar que atingem
diretamente esses indivíduos. Seja na expressão mais absurda da violência cometida
contra essas pessoas. Enfim...
Isso significa que nas
entrelinhas dessa visão romantizada, idealizada, que se estabeleceu em torno da
abolição da escravatura há uma realidade bárbara a ser efetivamente
descortinada e discutida.
Simplesmente, porque a escravidão
continuou cabendo e se perpetuando na sociedade brasileira. De modo que a Lei Áurea
não passou de uma carta de intenção malsucedida, na medida em que ela não
cumpriu a função para a qual se destinava cumprir. Fez-se um gesto. Apenas isso.
Pois é, não podemos discordar de Darcy
Ribeiro, quando disse: “O espantoso é que
os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, ‘democracia
racial’, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos
sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo,
porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se
fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira
de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram
ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” 2.
Portanto, é preciso entender que
a abolição soou como um apagamento linguístico, uma estratégia de invisibilização
da palavra escravidão; só isso. A abolição não acabou com a expressão máxima,
direta e materializada da escravidão que se fundamenta na relação presente no
ideário da “Casa Grande e Senzala”.
Estamos nela. Vivemos nela. Respiramos
a sua toxicidade a cada segundo. De modo que todas as gerações que se sucederam,
daí em diante, permanecem lutando e sonhando com a sua liberdade da escravidão,
com a sua inserção identitária, sem rótulos ou estereótipos, no contexto
cidadão.