segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A morte não finaliza tudo...


A morte não finaliza tudo...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto muita gente, por aí, tenta fazer parecer que o retorno a uma velha normalidade social está quase perto, a realidade estatística joga um banho de água fria nas expectativas e abre espaço para uma discussão bem mais indigesta a respeito do retrato da mortalidade brasileira.

Se a COVID-19, as Pneumonias e a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) foram importantes causas para engrossar as fileiras da letalidade no Brasil, nesses últimos dois anos, no frigir dos ovos, o que realmente importa e merece reflexão é constatar que “Ao todo, foram contabilizados 137.253 óbitos no país em janeiro de 2022, um aumento de 2,79% em relação ao mesmo período de 2021 (quando houve o registro de 133.523 mortes no total)” 1, ou seja, algo que ultrapassa em 39,98% os dados de janeiro de 2020, antes da chegada da pandemia no país.

Afinal, isso nos confronta em relação as atitudes e comportamentos nocivos que a sociedade tem manifesto, como é o caso, por exemplo, do movimento de negação científica e antivacinas, que extrapola a imunização contra o Sars-Cov-2 (e variantes) e se estende para outras doenças.

Mas, também, quanto em relação a todas as mazelas socioeconômicas, as quais está exposta a grande massa da população brasileira. O que significa a miséria, a insegurança alimentar, a ausência de água tratada e saneamento básico, a precariedade habitacional, ... Em suma, a inacessibilidade aos direitos humanos fundamentais.

E a morte, dentro dessas conjunturas, leva justamente os mais desassistidos, os mais vulneráveis. De todas as idades, gêneros e credos. Basta que estejam nivelados por uma linha imaginária de total abandono e descaso social e, por essa razão, tenham suas partidas antecipadas pela incapacidade de resistir a tantas investidas das adversidades.

Até o surgimento da pandemia, ninguém se dava conta disso, ou pelo menos, parecia que não. A morte existia como figura abstrata que entra e sai dos lugares sem que seja interpelada. De modo que ela caia na trivialização da sua condição de elemento intrínseco a existência humana. Quem nasce, um dia morre.

Pena que não seja tão simples assim. Seria se todos se despedissem por causas naturais. No entanto, esses são pouquíssimos afortunados. A grande maioria morre de causas externas (violências e acidentes de trânsito, por exemplo), ou de doenças crônicas não transmissíveis (doenças cardiovasculares, pulmonares, renais, hepáticas, neurodegenerativas) ou de doenças transmissíveis, maternas, neonatais e nutricionais.

O que reflete a participação social direta no processo de letalidade, o que faz com que o assunto seja inevitavelmente lançado sob o tapete da história. Mas ao agirem assim, se esquecem de que a morte é um fator de desestruturação social importantíssimo.

Não importa se ela foi repentina ou gradual. Ninguém é um ser sozinho e por isso, as perdas se desdobram sobre as relações humanas. A morte gera a orfandade. Gera uma diversidade de vícios. Gera suicídios. Gera doenças e transtornos psicoemocionais diversos. A morte desloca centenas de milhares de pessoas para uma zona de total instabilidade existencial e produtiva, que contribui para o aparecimento e fortalecimento de espirais sociais caóticas.

Então, quando se invisibiliza e silencia essa discussão, a sociedade está jogando contra si mesma. É preciso entender que se a população global está em franco processo de envelhecimento, como apontam os dados do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA)2, e a morte tem dilapidado contingentes jovens importantes, como equacionar o equilíbrio da sobrevivência e desenvolvimento das nações?

Esse é o ponto que torna a discussão sobre direitos humanos, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental, tão essencial e não, um mimimi como muitos querem afirmar. Desconsiderar as desigualdades sociais como instrumentos promotores e fomentadores dessa ascensão funesta é um imenso desserviço para toda a humanidade, sem exceção.

Já existem inúmeros gargalos no campo profissional decorrentes da insuficiência de mão-de-obra, qualificada ou não, por exemplo. O que faz a economia em muitos países e setores já demonstrar lentidão e até certo travamento, repercutindo na insuficiência de recursos que possam ser investidos em políticas públicas. Sim, porque é essa máquina social que gera todos os impostos e tributos que posteriormente serão convertidos para as demandas da própria população.

Então, isso significa que tudo se conecta. Tudo está interligado. Esse é o princípio básico da existência biológica e não biológica no planeta. Já dizia o químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier, no século XVIII, “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, porque tudo foi feito para se agregar e se ressignificar a fim de atender e garantir os interesses e as necessidades da humanidade. Quando há uma ruptura em qualquer estágio desse processo, os resultados ficam automaticamente comprometidos e os desequilíbrios começam a se destacar e alterar a dinâmica do fluxo.

Portanto, não olhemos para a morte com a simplicidade de um ponto final. A morte não finaliza tudo. Talvez, não finalize nada. Porque ela diz bem mais do que a perda, a ausência, a tristeza, a dor, o sofrimento, a angústia. Ela nos desconforta o suficiente para enxergar aquilo que não se quer ver.

E ela age dessa forma, justamente, para nos comprometer dentro daquilo que nos cabe como inação, imobilismo, indiferença voluntária e gratuita. Assim, ela fica martelando, pulsando, ad aeternum no fundo da consciência. Considerando tudo o que não foi e poderia ter sido, se o curso da história tivesse sido traçado de outra maneira, por outras mãos, por outras ideias, por outras atitudes e comportamentos.