A
morte não finaliza tudo...
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto muita gente, por aí,
tenta fazer parecer que o retorno a uma velha normalidade social está quase
perto, a realidade estatística joga um banho de água fria nas expectativas e
abre espaço para uma discussão bem mais indigesta a respeito do retrato da
mortalidade brasileira.
Se a COVID-19, as Pneumonias e a
Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) foram importantes causas para
engrossar as fileiras da letalidade no Brasil, nesses últimos dois anos, no
frigir dos ovos, o que realmente importa e merece reflexão é constatar que “Ao todo, foram contabilizados 137.253
óbitos no país em janeiro de 2022, um aumento de 2,79% em relação ao mesmo
período de 2021 (quando houve o registro de 133.523 mortes no total)” 1, ou seja, algo que ultrapassa em
39,98% os dados de janeiro de 2020, antes da chegada da pandemia no país.
Afinal, isso nos confronta em
relação as atitudes e comportamentos nocivos que a sociedade tem manifesto,
como é o caso, por exemplo, do movimento de negação científica e antivacinas,
que extrapola a imunização contra o Sars-Cov-2 (e variantes) e se estende para
outras doenças.
Mas, também, quanto em relação a
todas as mazelas socioeconômicas, as quais está exposta a grande massa da
população brasileira. O que significa a miséria, a insegurança alimentar, a ausência
de água tratada e saneamento básico, a precariedade habitacional, ... Em suma,
a inacessibilidade aos direitos humanos fundamentais.
E a morte, dentro dessas
conjunturas, leva justamente os mais desassistidos, os mais vulneráveis. De todas
as idades, gêneros e credos. Basta que estejam nivelados por uma linha
imaginária de total abandono e descaso social e, por essa razão, tenham suas partidas
antecipadas pela incapacidade de resistir a tantas investidas das adversidades.
Até o surgimento da pandemia,
ninguém se dava conta disso, ou pelo menos, parecia que não. A morte existia
como figura abstrata que entra e sai dos lugares sem que seja interpelada. De modo
que ela caia na trivialização da sua condição de elemento intrínseco a existência
humana. Quem nasce, um dia morre.
Pena que não seja tão simples
assim. Seria se todos se despedissem por causas naturais. No entanto, esses são
pouquíssimos afortunados. A grande maioria morre de causas externas (violências
e acidentes de trânsito, por exemplo), ou de doenças crônicas não transmissíveis
(doenças cardiovasculares, pulmonares, renais, hepáticas, neurodegenerativas) ou
de doenças transmissíveis, maternas, neonatais e nutricionais.
O que reflete a participação
social direta no processo de letalidade, o que faz com que o assunto seja inevitavelmente
lançado sob o tapete da história. Mas ao agirem assim, se esquecem de que a
morte é um fator de desestruturação social importantíssimo.
Não importa se ela foi repentina
ou gradual. Ninguém é um ser sozinho e por isso, as perdas se desdobram sobre
as relações humanas. A morte gera a orfandade. Gera uma diversidade de vícios. Gera
suicídios. Gera doenças e transtornos psicoemocionais diversos. A morte desloca
centenas de milhares de pessoas para uma zona de total instabilidade
existencial e produtiva, que contribui para o aparecimento e fortalecimento de
espirais sociais caóticas.
Então, quando se invisibiliza e
silencia essa discussão, a sociedade está jogando contra si mesma. É preciso
entender que se a população global está em franco processo de envelhecimento,
como apontam os dados do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA)2, e a morte tem dilapidado contingentes
jovens importantes, como equacionar o equilíbrio da sobrevivência e
desenvolvimento das nações?
Esse é o ponto que torna a
discussão sobre direitos humanos, qualidade de vida e sustentabilidade
ambiental, tão essencial e não, um mimimi
como muitos querem afirmar. Desconsiderar as desigualdades sociais como instrumentos
promotores e fomentadores dessa ascensão funesta é um imenso desserviço para
toda a humanidade, sem exceção.
Já existem inúmeros gargalos no
campo profissional decorrentes da insuficiência de mão-de-obra, qualificada ou
não, por exemplo. O que faz a economia em muitos países e setores já demonstrar
lentidão e até certo travamento, repercutindo na insuficiência de recursos que
possam ser investidos em políticas públicas. Sim, porque é essa máquina social
que gera todos os impostos e tributos que posteriormente serão convertidos para
as demandas da própria população.
Então, isso significa que tudo se
conecta. Tudo está interligado. Esse é o princípio básico da existência biológica
e não biológica no planeta. Já dizia o químico francês Antoine-Laurent de
Lavoisier, no século XVIII, “Na natureza
nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, porque tudo foi feito
para se agregar e se ressignificar a fim de atender e garantir os interesses e
as necessidades da humanidade. Quando há uma ruptura em qualquer estágio desse
processo, os resultados ficam automaticamente comprometidos e os desequilíbrios
começam a se destacar e alterar a dinâmica do fluxo.
Portanto, não olhemos para a
morte com a simplicidade de um ponto final. A morte não finaliza tudo. Talvez,
não finalize nada. Porque ela diz bem mais do que a perda, a ausência, a
tristeza, a dor, o sofrimento, a angústia. Ela nos desconforta o suficiente
para enxergar aquilo que não se quer ver.
E ela age dessa forma, justamente, para nos comprometer dentro daquilo que nos cabe como inação, imobilismo, indiferença voluntária e gratuita. Assim, ela fica martelando, pulsando, ad aeternum no fundo da consciência. Considerando tudo o que não foi e poderia ter sido, se o curso da história tivesse sido traçado de outra maneira, por outras mãos, por outras ideias, por outras atitudes e comportamentos.