Tempos (quase) Pós-Modernos
Por Alessandra Leles Rocha
A pergunta a se fazer na atual conjuntura é:
estamos no século XVI ou no século XXI? Afinal, parece haver uma resistência
tão arraigada movendo as correntes de ideias, ações e comportamentos em direção
ao passado compreendido entre esses pouco mais de 500 anos, que o mundo ficou
de cabeça para baixo e o cotidiano totalmente sem sentido.
Práticas colonialistas e neocolonialistas, então,
se proliferam a torto e a direito, desalinhando-se por completo da realidade
contemporânea (Pós-Moderna) não importando os prejuízos de todas as ordens que
se pode alcançar com esse modus operandi.
Dentro desse contexto, o modelo econômico que
compõe a coluna vertebral de qualquer país se mostra absurdamente impreciso e
equivocado, colocando em risco todo o arcabouço da dinâmica social. A opção
apegada aos preceitos de uma economia (ultra)liberal ameaça o equilíbrio e a
sobrevivência das relações, muito antes de ser surpreendida pela
imprevisibilidade da Pandemia.
Por isso, ela não responde por todos os desajustes
e desalinhos presentes no mundo contemporâneo. Há tempos que o modelo econômico
vigente dá sinais que caminha a passos largos para a sua falência existencial,
na medida em que se manteve caminhando na direção da garantia do lucro e da
riqueza à custa de sacrifícios humanos, favorecendo alguns poucos em detrimento
de milhares. O que significou, inevitavelmente, a desaceleração do
desenvolvimento de maneira inversamente proporcional as desigualdades sociais.
Ao invés de se estabelecerem políticas e práticas
garantidoras da dignidade, da autonomia, do bem estar, da cidadania, a fim de
manter as pessoas com o mínimo de dependência do Estado, muitas nações vêm
agindo no contraponto dessa expectativa. De modo que, a expansão do contingente
vulnerável da população leva esses países, como é o caso do Brasil, a ocupar-se
cada vez mais em assisti-las dentro de suas demandas fundamentais.
Isso significa que os recursos passam a ser
repartidos entre cifras cada vez mais numerosas e gradativamente vão se
tornando insuficientes, mesmo considerando a existência de inúmeros outros
vieses e descaminhos de ordem político-orçamentária, para que essa assistência
supra efetivamente o necessário e contemple a qualidade esperada.
Como consequência, constrói-se um ciclo de
insuficiência crônica do Estado, o qual resulta em uma precarização visível da
população que a impede de alcançar melhorias dentro da sua condição social,
passando a viver de pseudo benesses e migalhas, sempre as margens dos seus
direitos constitucionais mais elementares.
Nesse contexto, do ponto de vista dos meios de
produção se estabelece uma ampla oferta de mão-de-obra com baixa escolaridade e
qualificação, a qual diante de tantas impossibilidades não impõe resistência às
baixas remunerações e insatisfatórias condições de trabalho. Muito semelhante
ao que o mundo assistiu durante a 1ª e a 2ª Revoluções Industriais. Quem
assistiu ao filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin,
recorda-se da discussão sobre os modelos de produção (Taylorismo1 e Fordismo2) e toda a alienação física e ideológica
por eles fomentada.
Sem contar que o acúmulo de riquezas produzido
desde então, possibilitou que a 3ª e a 4ª Revoluções Industriais desenvolvessem
o que há de mais contemporâneo em termos de tecnologia. Portanto,
suficientemente, capaz de reduzir ainda mais as oportunidades de emprego e
renda, ou seja, extinguindo por completo inúmeros postos de trabalho e funções
profissionais e tornando fundamental o investimento em Educação e
Profissionalização para se sobreviver no contexto dessa nova realidade. No
entanto, isso não se refletiu como acontecimento para a grande massa da
população. Mais uma vez, ela se viu marginalizada e preterida.
Certamente, o que a Pandemia provocou nesse cenário
econômico foi, tão somente, a visibilização do próprio modelo vigente,
escancarando a quem o interessa beneficiar e sob quais plataformas ele está
fixado. Mas, ao fazer isso, ela também revelou o total despreparo e ausência de
planejamento e organização para trabalhar sobre a pauta de interesses coletivos
da sociedade e, não mais, de alguns poucos grupos privilegiados. Na hora de
desapegar de teorias e práticas ultrapassadas, para contextualizar-se no agora,
emergiram todos os conflitos. Não tem sido uma tarefa fácil flexibilizar
posicionamentos tão incrustrados, tão frios e calculistas para olhar o mundo
com mais clemência e humanidade.
E enquanto os ventos da tempestade perpassam entre
nós, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados
entre 2017 e 2018 (e divulgados agora em 2020), apontam que a fome atinge cerca
de 10,3 milhões de pessoas no país, especialmente nas áreas rurais. Chegou-se
ao menor patamar de pessoas com alimentação plena e regular no país. Bem como,
os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (PNAD Covid-19),
obtidos também pelo IBGE (e divulgados hoje), apontam para um aumento na taxa
de desemprego nacional de 13,2% na terceira semana de agosto para 14,3% na
quarta semana do mês, ou seja, 13,7 milhões de pessoas.
Como já manifestaram diversos economistas e
pensadores das Ciências Econômicas, há tempos que esse tal modelo
econômico desfavorece as demandas do grande contingente motriz das nações,
impedindo que se estabeleçam mecanismos e oportunidades de promoção e
desenvolvimento humano, os quais satisfaçam os seus direitos sociais
fundamentais – educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência,
proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
Contrariando a muitos, o ser humano ainda é o ator
principal dessa história. Independentemente de gênero, raça, credo,
escolaridade, faixa etária ou status, as perdas e os ganhos orbitam
suas relações; vejam, o que a própria Pandemia vem exibindo na sua democrática
ação devastadora. Direta e/ou indiretamente tudo é produzido pelo e para
o ser humano.
Como escreveu o filósofo Immanuel Kant, “No
reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem
preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que
se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência,
compreende uma dignidade”. Por isso, engana-se quem opta por acreditar que
as legiões de desafortunados que vagam pelo mundo se comprazem numa existência
eterna de dependência, de subserviência, de restos...
O que esses milhões de pessoas anseiam nesse
momento é que sejam integradas para se tornarem efetivamente integrantes da
dinâmica social. Afinal de contas, só elas compreendem com exatidão a
velocidade com a qual o mundo gira e faz as obrigações, os deveres e as
necessidades se avolumarem a espera de uma solução.
E para isso, meus caros, não se precisam fórmulas
mágicas, frases de efeito ou novos projetos. Bastaria começar pelo princípio, ou
seja, materializando os direitos sociais previstos na Constituição Federal;
desconstruindo, então, a narrativa já tão desgastada pelo tempo e que só
insiste em fazer deles meros instrumentos da “caridade” alheia.
1 Enfatiza a eficiência operacional das tarefas realizadas, nas quais se busca extrair o melhor rendimento de cada funcionário. Fonte:https://www.todamateria.com.br/taylorismo/
2 Enfatiza o sistema de produção em série, no qual há uma racionalização do sistema produtivo que favorece a fabricação de baixo custo e amplia a acumulação de capital. Fonte: https://www.todamateria.com.br/fordismo/