sábado, 19 de setembro de 2020

Tempos (quase) Pós-Modernos


Tempos (quase) Pós-Modernos

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

A pergunta a se fazer na atual conjuntura é: estamos no século XVI ou no século XXI? Afinal, parece haver uma resistência tão arraigada movendo as correntes de ideias, ações e comportamentos em direção ao passado compreendido entre esses pouco mais de 500 anos, que o mundo ficou de cabeça para baixo e o cotidiano totalmente sem sentido.

Práticas colonialistas e neocolonialistas, então, se proliferam a torto e a direito, desalinhando-se por completo da realidade contemporânea (Pós-Moderna) não importando os prejuízos de todas as ordens que se pode alcançar com esse modus operandi.

Dentro desse contexto, o modelo econômico que compõe a coluna vertebral de qualquer país se mostra absurdamente impreciso e equivocado, colocando em risco todo o arcabouço da dinâmica social. A opção apegada aos preceitos de uma economia (ultra)liberal ameaça o equilíbrio e a sobrevivência das relações, muito antes de ser surpreendida pela imprevisibilidade da Pandemia.

Por isso, ela não responde por todos os desajustes e desalinhos presentes no mundo contemporâneo. Há tempos que o modelo econômico vigente dá sinais que caminha a passos largos para a sua falência existencial, na medida em que se manteve caminhando na direção da garantia do lucro e da riqueza à custa de sacrifícios humanos, favorecendo alguns poucos em detrimento de milhares. O que significou, inevitavelmente, a desaceleração do desenvolvimento de maneira inversamente proporcional as desigualdades sociais.

Ao invés de se estabelecerem políticas e práticas garantidoras da dignidade, da autonomia, do bem estar, da cidadania, a fim de manter as pessoas com o mínimo de dependência do Estado, muitas nações vêm agindo no contraponto dessa expectativa. De modo que, a expansão do contingente vulnerável da população leva esses países, como é o caso do Brasil, a ocupar-se cada vez mais em assisti-las dentro de suas demandas fundamentais.

Isso significa que os recursos passam a ser repartidos entre cifras cada vez mais numerosas e gradativamente vão se tornando insuficientes, mesmo considerando a existência de inúmeros outros vieses e descaminhos de ordem político-orçamentária, para que essa assistência supra efetivamente o necessário e contemple a qualidade esperada.

Como consequência, constrói-se um ciclo de insuficiência crônica do Estado, o qual resulta em uma precarização visível da população que a impede de alcançar melhorias dentro da sua condição social, passando a viver de pseudo benesses e migalhas, sempre as margens dos seus direitos constitucionais mais elementares.

Nesse contexto, do ponto de vista dos meios de produção se estabelece uma ampla oferta de mão-de-obra com baixa escolaridade e qualificação, a qual diante de tantas impossibilidades não impõe resistência às baixas remunerações e insatisfatórias condições de trabalho. Muito semelhante ao que o mundo assistiu durante a 1ª e a 2ª Revoluções Industriais. Quem assistiu ao filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin, recorda-se da discussão sobre os modelos de produção (Taylorismo1 e Fordismo2) e toda a alienação física e ideológica por eles fomentada.

Sem contar que o acúmulo de riquezas produzido desde então, possibilitou que a 3ª e a 4ª Revoluções Industriais desenvolvessem o que há de mais contemporâneo em termos de tecnologia. Portanto, suficientemente, capaz de reduzir ainda mais as oportunidades de emprego e renda, ou seja, extinguindo por completo inúmeros postos de trabalho e funções profissionais e tornando fundamental o investimento em Educação e Profissionalização para se sobreviver no contexto dessa nova realidade. No entanto, isso não se refletiu como acontecimento para a grande massa da população. Mais uma vez, ela se viu marginalizada e preterida.

Certamente, o que a Pandemia provocou nesse cenário econômico foi, tão somente, a visibilização do próprio modelo vigente, escancarando a quem o interessa beneficiar e sob quais plataformas ele está fixado. Mas, ao fazer isso, ela também revelou o total despreparo e ausência de planejamento e organização para trabalhar sobre a pauta de interesses coletivos da sociedade e, não mais, de alguns poucos grupos privilegiados. Na hora de desapegar de teorias e práticas ultrapassadas, para contextualizar-se no agora, emergiram todos os conflitos. Não tem sido uma tarefa fácil flexibilizar posicionamentos tão incrustrados, tão frios e calculistas para olhar o mundo com mais clemência e humanidade.

E enquanto os ventos da tempestade perpassam entre nós, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), coletados entre 2017 e 2018 (e divulgados agora em 2020), apontam que a fome atinge cerca de 10,3 milhões de pessoas no país, especialmente nas áreas rurais. Chegou-se ao menor patamar de pessoas com alimentação plena e regular no país. Bem como, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (PNAD Covid-19), obtidos também pelo IBGE (e divulgados hoje), apontam para um aumento na taxa de desemprego nacional de 13,2% na terceira semana de agosto para 14,3% na quarta semana do mês, ou seja, 13,7 milhões de pessoas.

Como já manifestaram diversos economistas e pensadores das Ciências Econômicas, há tempos que esse tal  modelo econômico desfavorece as demandas do grande contingente motriz das nações, impedindo que se estabeleçam mecanismos e oportunidades de promoção e desenvolvimento humano, os quais satisfaçam os seus direitos sociais fundamentais – educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Contrariando a muitos, o ser humano ainda é o ator principal dessa história. Independentemente de gênero, raça, credo, escolaridade, faixa etária ou status, as perdas e os ganhos orbitam suas relações; vejam, o que a própria Pandemia vem exibindo na sua democrática ação devastadora.  Direta e/ou indiretamente tudo é produzido pelo e para o ser humano.

Como escreveu o filósofo Immanuel Kant, “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”. Por isso, engana-se quem opta por acreditar que as legiões de desafortunados que vagam pelo mundo se comprazem numa existência eterna de dependência, de subserviência, de restos...  

O que esses milhões de pessoas anseiam nesse momento é que sejam integradas para se tornarem efetivamente integrantes da dinâmica social. Afinal de contas, só elas compreendem com exatidão a velocidade com a qual o mundo gira e faz as obrigações, os deveres e as necessidades se avolumarem a espera de uma solução.

E para isso, meus caros, não se precisam fórmulas mágicas, frases de efeito ou novos projetos. Bastaria começar pelo princípio, ou seja, materializando os direitos sociais previstos na Constituição Federal; desconstruindo, então, a narrativa já tão desgastada pelo tempo e que só insiste em fazer deles meros instrumentos da “caridade” alheia.



1 Enfatiza a eficiência operacional das tarefas realizadas, nas quais se busca extrair o melhor rendimento de cada funcionário. Fonte:https://www.todamateria.com.br/taylorismo/ 

2 Enfatiza o sistema de produção em série, no qual há uma racionalização do sistema produtivo que favorece a fabricação de baixo custo e amplia a acumulação de capital. Fonte: https://www.todamateria.com.br/fordismo/


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