Melindrosas?!
Por Alessandra Leles Rocha
Já cansei
de ler artigos e ouvir comentários a respeito de um excessivo “melindre
feminino”, por conta de recorrentes situações de discriminação e violência
sofridas pelas mulheres. Diante dessas situações, sempre me recordo de uma
frase de Anne Frank, a qual cabe muito bem para explicar os sentimentos ocultos
presentes nesse tal “melindre”: “Criticam
tudo, e quero dizer mesmo tudo, sobre mim: o meu comportamento, a minha
personalidade, as minhas maneiras; cada centímetro de mim, da cabeça aos pés,
dos pés à cabeça, é objeto de mexericos e debates. São-me constantemente
lançadas palavras duras e gritos, embora eu não esteja habituada a isso.
Segundo as autoridades definidas, eu devia sorrir e aguentar”.
Como se
vê não se trata de “melindre”. O que acontece, com mais ênfase nesses tempos
pós-modernos, é uma necessidade cada vez mais pulsante de afirmação do próprio
discurso, do respeito, da dignidade,... tão somente, a manifestação pública de um
direito que cabe a qualquer ser humano, independente de gênero, credo, etnia,
escolaridade ou status, e que vem sendo negado às mulheres, há séculos, por uma
aceitação social em relação à objetificação feminina.
Nesse
âmbito do olhar que entende a mulher como objeto, propriedade ou mercadoria, ao
contrário de um sujeito social legítimo, é que se tem construído a sua
inferiorização, a sua indignidade e calado a sua possibilidade de ser e existir
em todos os aspectos das suas habilidades e competências humanas.
Distorcendo
os fatos para uma mera questão de luta por igualdade, os que despendem toda a
sua fúria e desdém nessa qualificação de “melindre feminino”, apenas se furtam
a compreender a profundidade e a complexidade que envolve a existência da mulher
no mundo. Sim, porque a igualdade de direitos e deveres, teoricamente, já lhe
foi assegurada através da Declaração dos Direitos Humanos; no entanto, a sua
história como sujeito social ainda não.
Tudo o
que foi dito e escrito sobre as mulheres ao longo da história da humanidade
saiu das percepções e julgamentos masculinos. Se você ainda tem dúvidas sobre
isso procure nos livros, na literatura, nas ciências,... Foi assim que a
perpetuação e consolidação ideológica em relação à incapacidade e a fragilidade
feminina para o exercício do seu protagonismo social foi absorvido e
incorporado ao inconsciente coletivo. Por isso, passar essas ideias a limpo a
partir de uma reescrita feminina ou, simplesmente, tomar as rédeas do processo
de agora em diante é um desafio maior do que a própria aceitação da igualdade.
A
imposição desse silêncio existencial, dessa negação e invisibilização às
mulheres decorrem do fato de que as palavras têm poder e o discurso liberta. A
opressão feminina não é senão uma das mais brutais formas de escravidão e
cativeiro humano, na medida em que mal trata e mata o indivíduo no cerne da sua
subjetividade, da sua vontade, do seu querer.
Penso,
então, que a acuidade visual da sociedade anda comprometida ou um tanto quanto
seletiva, pois dentre as inúmeras barbáries do mundo pós-moderno, ela não
enxerga o que acontece, embaixo do próprio nariz, no contexto da
representatividade feminina.
Não se
trata apenas das estatísticas da violência física e da carnificina que acometem
milhares de mulheres diariamente; mas, da desqualificação e exclusão que violam
à sua sobrevivência social, quando são consideradas fora dos “padrões
estabelecidos para elas” , fora de um modelo de divisão social baseado
conservadoramente nas questões de gênero.
Isso
significa o quanto somos condescendentes com o uso do poder que uns exercem sobre os outros e permitimos reafirmar isso a cada segundo,
quando consideramos as mulheres como seres que se orientam apenas por “melindres”. Essa é a dimensão do quanto estamos presos às
hierarquias e critérios que nos impedem de enxergar o ser humano apenas como
tal, sem abismos, sem diferenças existenciais.
É assim
que as máscaras caem. É assim que os milhares de pesos para milhões de medidas
ganham forma. Os tais “melindres” utilizados para diminuí-las e desqualificá-las
socialmente, no fundo, só demonstram a sua ineficácia para encobrir a verdade
dos fatos.
Não está
numa eventual “fragilidade” delas o incômodo; mas, sim, na resistente força que
desempenham, desde sempre, em prol da sua verdadeira identidade social e que
ameaça as intenções de poder daqueles, cujas identidades não são firmes o
bastante para resistir aos desafios.
Por isso,
o discurso é “Dedos em riste às mulheres”; quando, na verdade deveria ser “Dedos
em riste a nós mesmos”, a nossa frágil e inconfessável existência humana. Talvez
um dia, a razão seja capaz de despertar; pois, segundo o filósofo Sêneca, “O perigo não nos é externo, nenhum muro nos
separa do inimigo. Ao contrário, os perigos mortais estão dentro de nós”.