Por
Alessandra Leles Rocha
Regulamentado pela Lei nº 185 de janeiro
de 1936 e o Decreto-Lei nº 399 de abril de 1938, o salário mínimo se estabeleceu no país com o objetivo de garantir ao trabalhador as suas necessidades vitais básicas e às de sua família, ou seja, moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.
No entanto, tendo em vista, os constantes desequilíbrios na
economia nacional e os impactos do processo inflacionário, a partir de 1951, o
Presidente Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei nº 30342 reajustando os valores
do salário mínimo, dando início a um período em que reajustes mais frequentes
garantiram a manutenção, e até alguma elevação, do poder de compra do salário
mínimo; prática que acabou absorvida por outras administrações públicas, de
modo que os reajustes permanecem até os dias atuais.
Assim, a Constituição de 1988, aponta em seu artigo 7° os
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, que visem à melhoria de sua condição
social, destacando, por exemplo, a questão dos reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo (inciso IV), do piso salarial proporcional à
extensão e à complexidade do trabalho (inciso V), da irredutibilidade do
salário salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo (inciso VI) e da
garantia de salário (nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração
variável).
Lá se vão, aproximadamente, 80 anos de história do salário
mínimo no Brasil e o que se vê é um distanciamento cada vez maior do seu objetivo
inicial, mesmo com esses reajustes anuais. A dignidade do cidadão que tem sua
renda mensal estabelecida no prisma desse salário vive ameaçada pela
realidade da insuficiência.
Observe
que o valor aprovado pelo Congresso
Nacional para o Orçamento desse ano, era de R$ 965, mas o decreto presidencial estabeleceu R$ 954,
um aumento de R$ 17 (1,81%) em relação a 2017. Porém, para o Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que divulga
mensalmente uma estimativa de quanto deveria ser o salário mínimo para atender
as necessidades básicas do trabalhador e de sua família, conforme estabelecido
na Constituição de 1988, o ideal no mês de dezembro de 2017
deveria ter sido R$3.585,05, ou seja, 3,83 vezes o salário vigente na ocasião, que
era R$937,00.
De repente, nos damos
conta da dimensão dessa “perversidade” social, quando percebemos a existência da
outra ponta desse problema. Se há insuficiência para milhões de pessoas há
excesso para outras. Isso ocorre, porque há cidadãos que vivem a realidade de pisos salariais proporcionais à extensão e
à complexidade do trabalho, recebendo remunerações demasiadamente superiores
aos que lutam para sobreviver com um salário mínimo, e podem, também, desfrutar
de reajustes, geralmente, superiores aos oferecidos para a maioria da população. E não
bastasse a ostentação dos salários vultosos, alguns ofícios ainda desfrutam de privilégios
que contabilizam recursos extras aos seus rendimentos mensais.
Em tempos de tecnologia
da informação, as notícias dessas discrepâncias sociais circulam com tamanha velocidade
que chegam ao domínio público, reafirmando com severidade um sentimento de
abandono social sem precedentes. Apesar de viverem sob o mesmo céu, o mesmo
sol, o assalariado comum sente-se remando contra marés instransponíveis, enquanto
alguns privilegiados navegam em mares de profunda calmaria.
Talvez, o desalento
maior esteja em perceber como as leis, os códigos e todos os mecanismos jurídicos
de regulação permitam a legalidade da existência desses abismos, justificando
tais práticas de maneira irrefutável. Entretanto, se tais instrumentos são obras
do ser humano para servir ao norteamento do equilíbrio das relações sociais, a
moral que lhes habita a alma deveria servir como freio e contrapeso diante dos
arroubos de eventuais irreflexões. Afinal de contas, nem sempre o que é legal é,
também, moral; especialmente, quando se está diante de uma realidade que abraça
uma taxa de desemprego de
12,7% (dados do último trimestre de 2017, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE).
A paga justa pelo
trabalho é o que garante a dignidade. Para almejar um futuro de ordem e progresso
é imperativo que o cidadão seja, portanto, pleno em sua dignidade. Por isso, me
parece tão absurdo perceber a existência de quem prefira fechar os olhos à
realidade e/ou não se importe com tamanha cisão social. Nenhuma “bolha de
proteção” é suficientemente capaz de nos blindar, na medida em que os excessos
da desigualdade não se constrangem na fúria de se proliferar.
Nesse contexto é que
a busca pela equidade econômica, dentro dos países e entre eles, se faz tão urgente
que se tornou um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da
Organização das Nações Unidas (ONU) 1.
A explicação para isso, talvez, esteja
no que já dizia Mahatma Gandhi, “Um homem
não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o
errado em outra. A vida é um todo indivisível”.
Em tempos nos quais a
sociedade vive a clamar por transformações, por justiça e direitos humanos, a consciência
do papel individual nesse processo é extremamente importante. Os pensamentos,
as atitudes, os comportamentos, os valores e princípios de cada um são decisivos
para constituir um denominador comum, positivo ou negativo, para a sociedade.
Isso sempre me faz
recordar uma cena de telenovela em que a personagem, um homem simples, catador
de caranguejos, se mata e deixa um bilhete com as seguintes palavras: “Quem trabalha e mata a fome não come o pão
de ninguém. Quem ganha mais do que come sempre come o pão de alguém”. Uma reflexão
e tanto, especialmente, para aqueles que ainda acreditam que podem
desqualificar ou minimizar a importância desse assunto, só para aplacar a dor
da própria consciência.