Entre notórios e
esquecidos, assim se constrói o poder do Capital
Por Alessandra Leles
Rocha
O poder do capital é mesmo intrigante. Ao ponto de entorpecer
os sentidos humanos e impedir-lhes de perceber o que é realmente importante, o
que está em jogo quando se trata da manutenção da espécie humana sobre a Terra,
pelo o que realmente se deve lutar.
Cada dia se reafirma uma perversa estratificação e hierarquização
da vida, o que significa que esse direito fundamental está mais e mais inacessível
a todos. Não, os seres humanos não são iguais em direitos e deveres;
subliminarmente esse é o recado.
Enquanto nos inebriamos diante das cifras milionárias, da profusão
de oportunidades para poucos em detrimento de muitos, inconscientemente (ou
não) estamos referendando os caminhos da indignidade humana e deixando de admitir
quais os verdadeiros parâmetros nos são de fato necessários à sobrevivência.
Será que ainda nos recordamos o que permeia a nossa dignidade
humana? Educação, Saúde, Trabalho, Lazer, Segurança, Liberdade, Igualdade estão
entre os chamados elementos fundamentais. Mas, quando excedemos sobremaneira os
limites que os garantem, passamos a nos defrontar com o supérfluo, o não essencial.
A própria natureza ensina que os excessos têm como fim a formação
de resíduos, de lixo, ou seja, deixam de ser uma coisa boa, proveitosa, para de
certa forma transformar-se em problema, na medida em que, geralmente, não sabemos
lidar com eles. No entanto, no caso da
riqueza desmedida o problema é que ela faz com que o ser humano perca a sua
identidade humanista, fraterna, responsável em relação a si e aos outros.
Há um deslumbramento, um afloramento da sua vaidade, uma capitalização
da sua essência no contexto do “vale quanto pesa”, o que inevitavelmente faz
com que se perca a noção social da própria existência. Aí, as pessoas ou
começam a distribuir migalhas do seu excesso para aplacar a própria consciência
ou se fecham nos labirintos sombrios da indiferença, se colocando sempre
distantes dos reflexos da desigualdade presentes no mundo.
Está aí o perigo em nos encantarmos com a reafirmação de episódios
assim. Enquanto se afunila os privilégios, há uma manipulação discursiva implícita
para que deixemos de perceber o aprofundamento dos abismos que apartam os seres
humanos. Os afortunados pelas grandes oportunidades do mundo deveriam ser mais responsáveis
no sentido de se engajarem na transformação social daqueles que são diariamente
esquecidos. Isso não significa uma mera questão filantrópica; mas, um senso de
responsabilidade social que visa tomar partido, de forma incisiva, nas discussões
e ações que repercutem sobre a dignidade de milhões de seres humanos.
Pensar na sobrevivência de um planeta com mais de sete bilhões
de pessoas, não é uma questão meramente ambiental. Trata-se antes de tudo de
uma questão social. Quando se reduzem as diferenças, transformam-se pessoas em cidadãos,
em seres humanos conscientes do seu papel na sociedade. As desigualdades só
fazem proliferar a invisibilidade, a exclusão, a intolerância e todas as demais
formas de violência existentes. Inclusive, quando nos admiramos extasiados
diante da riqueza atribuída a um único individuo, nem sempre nos damos conta de
que se trata de um homem. A própria distribuição da riqueza é seletiva e renega
a igualdade de gênero, estabelecendo mais um critério de apartamento social.
Todo ser humano merece desfrutar da dignidade de ver atendida
as suas necessidades vitais básicas e as de sua família; bem como, de construir
sem espoliar ou dilapidar o outro um patrimônio capaz de garantir-lhe esse
usufruto, quando não puder mais colaborar produtivamente com a sociedade. Mas, enquanto não existir o despertar dessa consciência,
veremos a proliferação de campos de refugiados pelo mundo, ou pessoas desassistidas
nos corredores de hospitais públicos a mercê da própria sorte, ou nas filas do
desemprego; enfim...
Portanto, quando banalizamos a perversidade e a crueldade
humana, só ressaltamos o nosso primitivismo bestial e nos afastamos da
dignidade de sermos considerados humanos, racionais, inteligentes. Como dizia
George Eliot 1, “Nunca é tarde demais
para ser aquilo que você deveria ser”, então?
1 George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans, foi uma
romancista autodidata britânica. Usava um nom
de plume masculino para que seus trabalhos fossem levados a sério.
(Saiba mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Eliot)