sexta-feira, 4 de agosto de 2017

“Quem trabalha e mata a fome não come o pão de ninguém, mas quem ganha mais do que come sempre come o pão de alguém...” - Padre Reno

Entre notórios e esquecidos, assim se constrói o poder do Capital


Por Alessandra Leles Rocha


O poder do capital é mesmo intrigante. Ao ponto de entorpecer os sentidos humanos e impedir-lhes de perceber o que é realmente importante, o que está em jogo quando se trata da manutenção da espécie humana sobre a Terra, pelo o que realmente se deve lutar.
Cada dia se reafirma uma perversa estratificação e hierarquização da vida, o que significa que esse direito fundamental está mais e mais inacessível a todos. Não, os seres humanos não são iguais em direitos e deveres; subliminarmente esse é o recado.
Enquanto nos inebriamos diante das cifras milionárias, da profusão de oportunidades para poucos em detrimento de muitos, inconscientemente (ou não) estamos referendando os caminhos da indignidade humana e deixando de admitir quais os verdadeiros parâmetros nos são de fato necessários à sobrevivência.
Será que ainda nos recordamos o que permeia a nossa dignidade humana? Educação, Saúde, Trabalho, Lazer, Segurança, Liberdade, Igualdade estão entre os chamados elementos fundamentais. Mas, quando excedemos sobremaneira os limites que os garantem, passamos a nos defrontar com o supérfluo, o não essencial.
A própria natureza ensina que os excessos têm como fim a formação de resíduos, de lixo, ou seja, deixam de ser uma coisa boa, proveitosa, para de certa forma transformar-se em problema, na medida em que, geralmente, não sabemos lidar com eles.  No entanto, no caso da riqueza desmedida o problema é que ela faz com que o ser humano perca a sua identidade humanista, fraterna, responsável em relação a si e aos outros.
Há um deslumbramento, um afloramento da sua vaidade, uma capitalização da sua essência no contexto do “vale quanto pesa”, o que inevitavelmente faz com que se perca a noção social da própria existência. Aí, as pessoas ou começam a distribuir migalhas do seu excesso para aplacar a própria consciência ou se fecham nos labirintos sombrios da indiferença, se colocando sempre distantes dos reflexos da desigualdade presentes no mundo.
Está aí o perigo em nos encantarmos com a reafirmação de episódios assim. Enquanto se afunila os privilégios, há uma manipulação discursiva implícita para que deixemos de perceber o aprofundamento dos abismos que apartam os seres humanos. Os afortunados pelas grandes oportunidades do mundo deveriam ser mais responsáveis no sentido de se engajarem na transformação social daqueles que são diariamente esquecidos. Isso não significa uma mera questão filantrópica; mas, um senso de responsabilidade social que visa tomar partido, de forma incisiva, nas discussões e ações que repercutem sobre a dignidade de milhões de seres humanos.
Pensar na sobrevivência de um planeta com mais de sete bilhões de pessoas, não é uma questão meramente ambiental. Trata-se antes de tudo de uma questão social. Quando se reduzem as diferenças, transformam-se pessoas em cidadãos, em seres humanos conscientes do seu papel na sociedade. As desigualdades só fazem proliferar a invisibilidade, a exclusão, a intolerância e todas as demais formas de violência existentes. Inclusive, quando nos admiramos extasiados diante da riqueza atribuída a um único individuo, nem sempre nos damos conta de que se trata de um homem. A própria distribuição da riqueza é seletiva e renega a igualdade de gênero, estabelecendo mais um critério de apartamento social.
Todo ser humano merece desfrutar da dignidade de ver atendida as suas necessidades vitais básicas e as de sua família; bem como, de construir sem espoliar ou dilapidar o outro um patrimônio capaz de garantir-lhe esse usufruto, quando não puder mais colaborar produtivamente com a sociedade.  Mas, enquanto não existir o despertar dessa consciência, veremos a proliferação de campos de refugiados pelo mundo, ou pessoas desassistidas nos corredores de hospitais públicos a mercê da própria sorte, ou nas filas do desemprego; enfim...
Portanto, quando banalizamos a perversidade e a crueldade humana, só ressaltamos o nosso primitivismo bestial e nos afastamos da dignidade de sermos considerados humanos, racionais, inteligentes. Como dizia George Eliot 1, “Nunca é tarde demais para ser aquilo que você deveria ser”, então?


1 George Eliot, pseudônimo de Mary Ann Evans, foi uma romancista autodidata britânica. Usava um nom de plume masculino para que seus trabalhos fossem levados a sério. (Saiba mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Eliot