sábado, 26 de março de 2011

Crônica para o fim de semana!!!

Bons tempos...

Por Alessandra Leles Rocha

            É! Cada dia que passa está mais difícil não ser tocado por uma pitada gostosa de nostalgia e imediatamente se questionar por onde andaria aquele tempo em que a vida parecia ter tudo no seu devido lugar; quase um retrato bucólico do cotidiano de cidade pequena do interior.
        Bons tempos aqueles em que as horas seguiam tranquilas o seu curso e dava tempo para sentar no alpendre e trocar bons dedos de prosa. Quando faltava um “cadinho” de alguma coisa para finalizar a receita era só se aproximar do muro da vizinha, que geralmente era baixo e não dispunha de grades, e pedir socorro; que depois, certamente era retribuído com o carinho em um prato de quitute delicioso. As crianças brincavam na porta de casa até o entardecer. Os jovens se reuniam para estudar, ouvir música e promover festinhas nos fins de semana. Copa do mundo, festa junina, carnaval, tudo era motivo para que os vizinhos se unissem e organizassem uma festança. A vizinhança era sim extensão da família; todos se conheciam, se queriam bem, se desentendiam, mas no fim das contas estavam sempre juntos, nos bons e nos maus momentos.
        Hoje, nem mesmo as pequenas cidades interioranas conseguem reeditar essa história. Os rigores da vida contemporânea no seu ritmo frenético e impessoal mudaram radicalmente o rumo da prosa. Dentro do próprio núcleo familiar a conjuntura se desconfigurou bastante; pais e filhos padecem entristecidos por não poderem compartilhar as refeições conjuntamente, não disporem de tempo suficiente para conversar sobre importâncias e frivolidades, não estarem à disposição uns dos outros sempre que precisassem. Do lado de fora do portão, que hoje é alto, com cerca elétrica e interfone, a situação é ainda pior. Nossos vizinhos, ressalvo raríssimas exceções, não vivem por décadas entre nós; a mudança opcional ou imposta pelas circunstâncias da vida fez deles figuras errantes e dificultou a fiação dos laços de amizade e companheirismo. Cada um correndo atrás de “matar o seu leão por dia” e o silêncio impositivo do cansaço e dos milhares de afazeres foi minguando gradativamente as conversas. Mesmo nos grandes condomínios, a dificuldade em se conhecer os vizinhos do próprio andar é assustadora.
        Para não agravar ainda mais o panorama fomos nos acostumando a conviver superficialmente dentro dos círculos que compõem a nossa rotina: trabalho, escola, academia, clube, botequim... Mas, nem de longe, nada que consiga de fato resgatar o que fora esse tempo, no qual o ser humano era o centro da história. Nesse novo modelo de convivência não só a brevidade das horas compartilhadas estraga o fluir das emoções e do sentimento fraterno; mas, o grau de materialismo que muitas pessoas estabelecem para conviver. Com base nos estereótipos fixados pelos bens de consumo, eles determinam quem pode ou não pertencer ao “grupo”; nada de ressonâncias humanas é levado em conta para a vida contemporânea.  Ah! E se você por ventura encontrar com algum amigo daqueles bons tempos, muito cuidado com um eventual discurso nostálgico! É que muitos deles fizeram questão de apagar essas recordações, como se elas pudessem de alguma forma representar um risco a sua sobrevivência na contemporaneidade; então, tocar nesses assuntos os deixa profundamente desconfortáveis, arredios e, até mesmo, agressivos. Infelizmente, você poderá inclusive perder o amigo dependendo do caso.
        Sem que nada fosse escrito e estabelecido formalmente como regra para viver nos dias de hoje, houve sim um rechaçar coletivo ao passado, impingindo a ele uma conotação piegas e fora de moda. Cada tempo tem os seus altos e baixos, suas marcas positivas e negativas, e justamente por isso não podem se perder ou serem sepultadas como se a vida tivesse que recomeçar sempre da estaca zero. O ser humano é por essência um livro de memórias, de registros que o destaca nas suas singularidades. O agir da forma com que tem sido manipulada a sociedade contemporânea já tem mostrado a que ponto chegou a sua perversidade: famílias que não conhecem a sua história além de avós e tios, idosos que apesar de terem alcançado uma expectativa de vida mais longa continuam a ser maltratados por seus familiares e explorados na sua força de trabalho e remuneração, a falta de diálogo entre as pessoas chegou a limites intoleráveis de violência e a intolerância ao ser humano alcançou todos os segmentos sociais, enfim...
        Aqueles tempos eram bons porque simplesmente éramos humanos; cheios de defeitos e qualidades, mas sem armaduras e dispostos a viver as alegrias e desventuras do dia, na esperança que a noite nos desse abrigo e nos restaurasse os ânimos para um novo ciclo. Essa saudade que se apresenta no pulsar doído da decepção, da desesperança, da falta de razões para acreditar num resgate humano, talvez seja maior pelo fato de que essa metamorfose em nome do progresso, na verdade não precisava ter acontecido. A adaptação a qual o ser humano é submetido ao longo de sua existência não implica na necessidade de transformar os seus valores, os seus princípios, as suas virtudes. Quando você aceita se submeter a essa invasão da sua alma, você deixa de reconhecer a sua própria imagem e passa a vagar sem rumo, sem pouso, subserviente a tantas outras imposições que se apresentem.