terça-feira, 28 de outubro de 2025

A terceira margem ... do Rio


A terceira margem ... do Rio  

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não pude deixar de estabelecer uma conexão com o conto “A terceira margem do rio”, publicado em 1962, no livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa.

Afinal de contas, o dia foi marcado pelos dilemas entre a vida e a morte, o concreto e o abstrato, e a busca por um sentido para uma existência que gostaria de transcender a realidade comum, como acontece no texto de Guimarães Rosa.  

É uma pena que, certos veículos de comunicação e de informação nacionais, se coloquem na posição de simplesmente enviesar a questão da criminalidade, no Rio de Janeiro, para o campo da mera divergência político-ideológica.

As facções criminosas no Rio de Janeiro tiveram início na segunda metade dos anos 1970. Assim, entra governo e sai governo, desde então, e a situação parece insolúvel, requentando mais do mesmo, comprometendo a qualidade de vida da população e tornando cada vez mais distante o acesso ao direito fundamental à segurança.

Então, eis que, hoje, uma megaoperação policial foi deflagrada, por iniciativa do Governo do Estado, que contabilizou a morte de 60 criminosos e 4 policiais, sendo considerada a mais letal da história do Rio de Janeiro.

Para os que pensam que esse é o caminho para erradicar a criminalidade, ledo engano! O terror de hoje já terá sido superado amanhã, dada a dimensão da organização existente nas facções criminosas contemporâneas há tantas décadas.

Acontece que a segurança pública, há muito, deixou de ser um direito social, como previsto no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, para ser transformada em moeda de barganha político-ideológica.

Basta traçar uma linha do tempo para entender a dinâmica desse processo. O surgimento das facções criminosas está associado a uma resposta de sobrevivência ao sistema prisional, de natureza violenta e desumana, no Brasil. Assim, elas ao criarem um sistema de regras próprias dentro dos presídios, passaram a desafiar diretamente o poder do Estado.

Para tal, elas perceberam que organizando-se de forma hierárquica, com líderes, membros e funções específicas, teriam um poder de articulação e execução de atividades ilícitas, muito mais eficiente do que em relação aos indivíduos criminosos isolados.

Nesse cenário, ao longo do tempo, elas alcançaram a consolidação de um poder econômico gerado pelo tráfico de drogas e outros ilícitos, o que lhes permitiu se infiltrar em setores lícitos da economia e influenciar processos políticos e eleitorais para proteger seus interesses.

Haja vista o recente caso de lavagem de dinheiro por uma facção criminosa paulista, por meio de fundos de investimento na Avenida Faria Lima, em São Paulo, revelando a crescente sofisticação do crime organizado e a permeabilidade das instituições financeiras formais, o que expôs a fragilidade das fronteiras sociais e a íntima relação entre o mercado financeiro e as atividades ilícitas no Brasil.

Algo que evidencia o cinismo e a hipocrisia de uma sociedade que tolera a desigualdade social enquanto as elites financeiras e o crime organizado se encontram na mesma avenida. Além disso, a falácia do sucesso por esforço próprio, estereotipado através do "coração financeiro do país”, foi desmistificado quando se expôs que o dinheiro que circula ali pode ter origem criminosa. Afinal, o sucesso de alguns pode estar diretamente ligado à miséria e à violência gerada pelas atividades do crime organizado.

Mas, não para por aí. As recentes descobertas trazem à tona a suspeita de que exista nesse imbróglio o envolvimento de agentes públicos e políticos, permitindo que as facções se perpetuem e se fortaleçam, prejudicando a imagem e a confiança das instituições nacionais.

Portanto, esse é o ponto de reflexão. O interesse pelas facções criminosas se manifesta em múltiplas dimensões, incluindo a financeira, a política e a social. O sucesso de uma facção depende de sua capacidade em manter e expandir sua influência para gerar mais receita.

Desse modo, elas buscam áreas específicas, especialmente em periferias e presídios, para garantir o monopólio de suas operações criminosas e impor sua própria ordem social, conhecida como "estado paralelo"; bem como, utilizam a lavagem de dinheiro, muitas vezes por meio de empresas de fachada para dar uma aparência de legalidade aos seus ganhos ilegais.

Infelizmente, é dessa forma que o crime organizado se infiltrou em grandes setores da economia brasileira e encontrou a possibilidade de influenciar o sistema político e eleitoral, enviando seus representantes aos departamentos de contratos públicos e se aliando a partidos políticos, principalmente em nível local.

Diante disso torna-se óbvio o fato de que a criminalidade é uma manifestação que se autorreproduz, sendo um problema que se perpetua através das gerações e das interações sociais, na medida em que ela ultrapassa limites e desrespeita acordos e normas sociais. Daí ela se tornar um fenômeno complexo e cíclico, onde as causas estruturais e contextuais se entrelaçam e se retroalimentam, tornando-se um grande desafio social e político.

Sobretudo, quando se abstém de analisá-la pela perspectiva de que a segurança pública e o combate à corrupção, no Brasil, são elementos interligados e que não podem ser dissociados, quando se busca uma solução efetiva.

Desse modo, eles precisam de ações que vão desde a repressão criminal e a inteligência policial até as políticas de prevenção, transparência e controle social, com foco na cooperação entre os diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal) e na utilização de tecnologias, tais como inteligência artificial/big data e o aprimoramento da legislação e dos mecanismos de responsabilização.

Feitas essas breves considerações, resta a certeza de que a banalização da criminalidade, como vem se repetindo há décadas, no Brasil, tem permitido que os crimes e atos de violência se tornem corriqueiros e percam o seu impacto humano e social nefasto, sendo tratados como fatos normais do cotidiano.

Acontece que esse processo culmina tanto na criação de um clima de medo quanto na desvalorização dos direitos humanos. E essa atmosfera de violência estabelece uma incomunicabilidade que prejudica a organização social e a busca por soluções coletivas, impedindo os indivíduos de se apropriarem plenamente da sua realidade harmônica, humana e pacífica.