A terceira
margem ... do Rio  
Por Alessandra
Leles Rocha
Não pude deixar de estabelecer uma
conexão com o conto “A terceira margem do rio”, publicado em 1962, no livro Primeiras
estórias, de João Guimarães Rosa. 
Afinal de contas, o dia foi marcado
pelos dilemas entre a vida e a morte, o concreto e o abstrato, e a busca por um
sentido para uma existência que gostaria de transcender a realidade comum, como
acontece no texto de Guimarães Rosa.  
É uma pena que, certos veículos de
comunicação e de informação nacionais, se coloquem na posição de simplesmente enviesar
a questão da criminalidade, no Rio de Janeiro, para o campo da mera divergência
político-ideológica. 
As facções criminosas no Rio de
Janeiro tiveram início na segunda metade dos anos 1970. Assim, entra governo e
sai governo, desde então, e a situação parece insolúvel, requentando mais do
mesmo, comprometendo a qualidade de vida da população e tornando cada vez mais
distante o acesso ao direito fundamental à segurança.
Então, eis que, hoje, uma megaoperação
policial foi deflagrada, por iniciativa do Governo do Estado, que contabilizou a
morte de 60 criminosos e 4 policiais, sendo considerada a mais letal da
história do Rio de Janeiro. 
Para os que pensam que esse é o
caminho para erradicar a criminalidade, ledo engano! O terror de hoje já terá
sido superado amanhã, dada a dimensão da organização existente nas facções
criminosas contemporâneas há tantas décadas. 
Acontece que a segurança pública,
há muito, deixou de ser um direito social, como previsto no artigo 6º da
Constituição Federal de 1988, para ser transformada em moeda de barganha político-ideológica.
Basta traçar uma linha do tempo
para entender a dinâmica desse processo. O surgimento das facções criminosas está
associado a uma resposta de sobrevivência ao sistema prisional, de natureza
violenta e desumana, no Brasil. Assim, elas ao criarem um sistema de regras
próprias dentro dos presídios, passaram a desafiar diretamente o poder do
Estado.
Para tal, elas perceberam que organizando-se
de forma hierárquica, com líderes, membros e funções específicas, teriam um
poder de articulação e execução de atividades ilícitas, muito mais eficiente do
que em relação aos indivíduos criminosos isolados.
Nesse cenário, ao longo do tempo,
elas alcançaram a consolidação de um poder econômico gerado pelo tráfico de
drogas e outros ilícitos, o que lhes permitiu se infiltrar em setores lícitos
da economia e influenciar processos políticos e eleitorais para proteger seus
interesses.
Haja vista o recente caso de
lavagem de dinheiro por uma facção criminosa paulista, por meio de fundos de
investimento na Avenida Faria Lima, em São Paulo, revelando a crescente
sofisticação do crime organizado e a permeabilidade das instituições
financeiras formais, o que expôs a fragilidade das fronteiras sociais e a
íntima relação entre o mercado financeiro e as atividades ilícitas no Brasil. 
Algo que evidencia o cinismo e a
hipocrisia de uma sociedade que tolera a desigualdade social enquanto as elites
financeiras e o crime organizado se encontram na mesma avenida. Além disso, a
falácia do sucesso por esforço próprio, estereotipado através do "coração
financeiro do país”, foi desmistificado quando se expôs que o dinheiro que
circula ali pode ter origem criminosa. Afinal, o sucesso de alguns pode estar
diretamente ligado à miséria e à violência gerada pelas atividades do crime
organizado. 
Mas, não para por aí. As recentes
descobertas trazem à tona a suspeita de que exista nesse imbróglio o
envolvimento de agentes públicos e políticos, permitindo que as facções se
perpetuem e se fortaleçam, prejudicando a imagem e a confiança das instituições
nacionais. 
Portanto, esse é o ponto de reflexão.
O interesse pelas facções criminosas se manifesta em múltiplas dimensões,
incluindo a financeira, a política e a social. O sucesso de uma facção depende
de sua capacidade em manter e expandir sua influência para gerar mais receita.
Desse modo, elas buscam áreas
específicas, especialmente em periferias e presídios, para garantir o monopólio
de suas operações criminosas e impor sua própria ordem social, conhecida como
"estado paralelo"; bem como, utilizam a lavagem de dinheiro, muitas
vezes por meio de empresas de fachada para dar uma aparência de legalidade aos
seus ganhos ilegais.
Infelizmente, é dessa forma que o
crime organizado se infiltrou em grandes setores da economia brasileira e encontrou
a possibilidade de influenciar o sistema político e eleitoral, enviando seus
representantes aos departamentos de contratos públicos e se aliando a partidos
políticos, principalmente em nível local. 
Diante disso torna-se óbvio o
fato de que a criminalidade é uma manifestação que se autorreproduz, sendo um
problema que se perpetua através das gerações e das interações sociais, na
medida em que ela ultrapassa limites e desrespeita acordos e normas sociais. Daí
ela se tornar um fenômeno complexo e cíclico, onde as causas estruturais e
contextuais se entrelaçam e se retroalimentam, tornando-se um grande desafio
social e político.
Sobretudo, quando se abstém de analisá-la
pela perspectiva de que a segurança pública e o combate à corrupção, no Brasil,
são elementos interligados e que não podem ser dissociados, quando se busca uma
solução efetiva. 
Desse modo, eles precisam de ações
que vão desde a repressão criminal e a inteligência policial até as políticas
de prevenção, transparência e controle social, com foco na cooperação entre os
diferentes níveis de governo (federal, estadual e municipal) e na utilização de
tecnologias, tais como inteligência artificial/big data e o aprimoramento da
legislação e dos mecanismos de responsabilização.
Feitas essas breves considerações,
resta a certeza de que a banalização da criminalidade, como vem se repetindo há
décadas, no Brasil, tem permitido que os crimes e atos de violência se tornem
corriqueiros e percam o seu impacto humano e social nefasto, sendo tratados
como fatos normais do cotidiano. 
Acontece que esse processo culmina tanto na criação de um clima de medo quanto na desvalorização dos direitos humanos. E essa atmosfera de violência estabelece uma incomunicabilidade que prejudica a organização social e a busca por soluções coletivas, impedindo os indivíduos de se apropriarem plenamente da sua realidade harmônica, humana e pacífica.
