quinta-feira, 13 de junho de 2024

A tragédia humana em linguagens e números


A tragédia humana em linguagens e números

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando para o Brasil se descobre que

§  104.548.325 (51,5%) cidadãos são mulheres e 98.532.431 (48,5%) são homens 1;

§  Mais de 700 mil presos estão em regime fechado 2;

§  Mais de 140 mil adolescentes cumprem medidas de liberdade assistida, semiliberdade, internação estrita ou prestação de serviços à comunidade 3;

§  Mais de 30 mil crianças e adolescentes em situação de acolhimento no país 4;

§  Mais de 2 milhões de crianças sem vagas em creches 5;

§  Mais de 9 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade 6;

§  Mais de 9 milhões de alunos não conseguiram terminar o Ensino Médio – 58,1% (homens) e 41,9% (mulheres) 7;

§  Quase 700 mil crianças e jovens, de 6 a 14 anos, fora da escola em 2023 8;

§  Quase 600 mil crianças de 0 a 4 anos e 1,765 milhão de crianças e adolescentes, de 5 a 17 anos, atingidas pela insegurança alimentar grave (fome) no país 9;

§  Mais de 260 mil pessoas vivem nas ruas do país 10; ...

Mahatma Gandhi perguntava: “O que destrói o ser humano? Política sem princípios, prazer sem compromissos, riqueza sem trabalho, sabedoria sem caráter, negócios sem moral, ciência sem humanidade, oração sem caridade”. Para uns e outros, por aí, a frieza bruta das estatísticas pode não dizer absolutamente nada. No entanto, isso não apaga, não invisibiliza, não diminui, o seu significado e a sua importância. Ao contrário do que possam imaginar, a linguagem expressa por esses números dialoga muito além.

Cada número em si mesmo já carrega o ônus da tragédia humana, da perversidade social embutida nas suas linhas e entrelinhas, as perspectivas e expectativas do futuro do país, enfim. Acontece que não para por aí. O olhar precisa decompor as inúmeras camadas presentes, para perceber como vivemos a esbarrar em pontas de iceberg, os quais desconhecemos, ou optamos por não conhecer, a devida dimensão.

Antes de Cristo, Platão, um filósofo e matemático grego, considerava que “Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam”. Mas, em pleno século XXI, a questão merece ser revista, na medida em que esse não gostar tem levado ao contexto político-partidário representativo, figuras que também não dispõem de apreço pela discussão política e, nem tampouco, pelo seu exercício.

O exemplo mais recente, a respeito, foi dado, ontem, quando o Projeto de Lei (PL) n.º 1904/2024 11, teve a tramitação aprovada em regime de urgência, na Câmara dos Deputados, em votação simbólica relâmpago, em apenas 23 segundos, sem maiores debates ou referências  ao tema. O que não significa que essa apresentação dos fatos consiga sintetizar a inteireza da infâmia parlamentar. Afinal, nem os silêncios, nem abstenções, nem as desculpas esfarrapadas, conseguem esconder o grau de ignorância, seja ela voluntária ou não, de certos membros do parlamento.

Os (as) nobres deputados (as) desconsideraram um princípio básico da dinâmica social. A vida é recortada e atravessada por questões diversas o tempo todo. Então, quando se pensa na proposta de equiparar o aborto ao homicídio, não dá para se desconsiderar, por exemplo, as estatísticas apresentadas no início dessa reflexão. Simplesmente, porque o impacto de uma decisão assim, sobre a dinâmica do país, é gigantesca e reverbera, por gerações, os problemas e desafios que passam a ser constituídos e acrescidos aos que já existem e, como se vê, não foram resolvidos.

Fica, então, visível o grau de despreparo dos (as) nossos (as) legisladores (as). Eles (as) parecem realmente acreditar que o seu papel representativo é retirar ideias mirabolantes da cartola, como fazem os mágicos no circo. Depois de uma longa e árdua jornada para a consolidação do exercício cidadão, através do voto, é profundamente decepcionante o nível de distanciamento dos representantes do povo em relação ao compromisso de atuar pelos interesses do eleitor, sem exceções de quaisquer naturezas, como prega a Constituição Federal.  

No entanto, o que se vê, cada vez com mais frequência, é exatamente o contrário. O ser político, no Brasil, está cada vez mais ensimesmado no seu individualismo narcísico. São eles (as) em primeiro lugar. Os seus interesses. As suas prioridades. O que significa que as mazelas seculares desse país vão se aprofundando de maneira abissal e sem nenhuma esperança de melhoria, de uma transformação positiva.  

Diante do exposto, lembremos das palavras de Eduardo Galeano: “Hoje as torturas são chamadas de ‘procedimento legal’, a traição se chama ‘realismo’, o oportunismo se chama ‘pragmatismo’, o imperialismo se chama ‘globalização’ e as vítimas do imperialismo se chamam ‘países em via de desenvolvimento’. O dicionário também foi assassinado pela organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou não sabemos o que dizem” 12.

E esse não saber é o sinal, mais claro, de como estamos presos às teias necropolíticas. No mundo das aparências que travestem a realidade, para torná-la mais digerível, mais palatável, o ser humano é induzido a não perceber como o uso do poder político e social, age ou se omite, a fim de determinar as importâncias e as desimportâncias em uma sociedade, na qual alguns podem permanecer vivos e outros devem morrer.



1 Dados do Censo Demográfico (2022) realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

7 Idem 6.

8 Idem 6.

9 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Segurança Alimentar 2023, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

12 GAELANO, E. De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999.