A tragédia
humana em linguagens e números
Por Alessandra
Leles Rocha
Olhando para o Brasil se descobre
que
§ 104.548.325
(51,5%) cidadãos são mulheres e 98.532.431 (48,5%) são homens 1;
§ Mais de
700 mil presos estão em regime fechado 2;
§ Mais de
140 mil adolescentes cumprem medidas de liberdade assistida, semiliberdade,
internação estrita ou prestação de serviços à comunidade 3;
§ Mais de
30 mil crianças e adolescentes em situação de acolhimento no país 4;
§ Mais de 2
milhões de crianças sem vagas em creches 5;
§ Mais de 9
milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade 6;
§ Mais de 9
milhões de alunos não conseguiram terminar o Ensino Médio – 58,1% (homens) e
41,9% (mulheres) 7;
§ Quase 700
mil crianças e jovens, de 6 a 14 anos, fora da escola em 2023 8;
§ Quase 600
mil crianças de 0 a 4 anos e 1,765 milhão de crianças e adolescentes, de 5 a 17
anos, atingidas pela insegurança alimentar grave (fome) no país 9;
§ Mais de
260 mil pessoas vivem nas ruas do país 10;
...
Mahatma Gandhi perguntava: “O
que destrói o ser humano? Política sem princípios, prazer sem compromissos,
riqueza sem trabalho, sabedoria sem caráter, negócios sem moral, ciência sem humanidade,
oração sem caridade”. Para uns e outros, por aí, a frieza bruta das
estatísticas pode não dizer absolutamente nada. No entanto, isso não apaga, não
invisibiliza, não diminui, o seu significado e a sua importância. Ao contrário
do que possam imaginar, a linguagem expressa por esses números dialoga muito
além.
Cada número em si mesmo já carrega o ônus
da tragédia humana, da perversidade social embutida nas suas linhas e
entrelinhas, as perspectivas e expectativas do futuro do país, enfim. Acontece que
não para por aí. O olhar precisa decompor as inúmeras camadas presentes, para
perceber como vivemos a esbarrar em pontas de iceberg, os quais desconhecemos,
ou optamos por não conhecer, a devida dimensão.
Antes de Cristo, Platão, um filósofo
e matemático grego, considerava que “Não há nada de errado com aqueles que
não gostam de política, simplesmente serão governados por aqueles que gostam”.
Mas, em pleno século XXI, a questão merece ser revista, na medida em que esse
não gostar tem levado ao contexto político-partidário representativo, figuras que
também não dispõem de apreço pela discussão política e, nem tampouco, pelo seu
exercício.
O exemplo mais recente, a
respeito, foi dado, ontem, quando o Projeto de Lei (PL) n.º 1904/2024 11, teve a tramitação aprovada em regime
de urgência, na Câmara dos Deputados, em votação simbólica relâmpago, em
apenas 23 segundos, sem maiores debates ou referências ao tema. O que não significa que essa
apresentação dos fatos consiga sintetizar a inteireza da infâmia parlamentar. Afinal,
nem os silêncios, nem abstenções, nem as desculpas esfarrapadas, conseguem
esconder o grau de ignorância, seja ela voluntária ou não, de certos membros do
parlamento.
Os (as) nobres deputados (as)
desconsideraram um princípio básico da dinâmica social. A vida é recortada e
atravessada por questões diversas o tempo todo. Então, quando se pensa na
proposta de equiparar o aborto ao homicídio, não dá para se desconsiderar, por
exemplo, as estatísticas apresentadas no início dessa reflexão. Simplesmente, porque
o impacto de uma decisão assim, sobre a dinâmica do país, é gigantesca e
reverbera, por gerações, os problemas e desafios que passam a ser constituídos
e acrescidos aos que já existem e, como se vê, não foram resolvidos.
Fica, então, visível o grau de
despreparo dos (as) nossos (as) legisladores (as). Eles (as) parecem realmente
acreditar que o seu papel representativo é retirar ideias mirabolantes da
cartola, como fazem os mágicos no circo. Depois de uma longa e árdua jornada
para a consolidação do exercício cidadão, através do voto, é profundamente
decepcionante o nível de distanciamento dos representantes do povo em relação
ao compromisso de atuar pelos interesses do eleitor, sem exceções de quaisquer
naturezas, como prega a Constituição Federal.
No entanto, o que se vê, cada vez
com mais frequência, é exatamente o contrário. O ser político, no Brasil, está
cada vez mais ensimesmado no seu individualismo narcísico. São eles (as) em
primeiro lugar. Os seus interesses. As suas prioridades. O que significa que as
mazelas seculares desse país vão se aprofundando de maneira abissal e sem
nenhuma esperança de melhoria, de uma transformação positiva.
Diante do exposto, lembremos das
palavras de Eduardo Galeano: “Hoje as torturas são chamadas de ‘procedimento
legal’, a traição se chama ‘realismo’, o oportunismo se chama ‘pragmatismo’, o
imperialismo se chama ‘globalização’ e as vítimas do imperialismo se chamam
‘países em via de desenvolvimento’. O dicionário também foi assassinado pela
organização criminosa do mundo. As palavras já não dizem o que dizem ou não
sabemos o que dizem” 12.
E esse não saber é o sinal, mais claro,
de como estamos presos às teias necropolíticas. No mundo das aparências que
travestem a realidade, para torná-la mais digerível, mais palatável, o ser
humano é induzido a não perceber como o uso do poder político e social, age ou
se omite, a fim de determinar as importâncias e as desimportâncias em uma sociedade,
na qual alguns podem permanecer vivos e outros devem morrer.
1
Dados do Censo Demográfico (2022) realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
3 https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/geral/audio/2023-04/estudo-mostra-perfil-de-jovens-infratores-no-brasil
4 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/10/22/casos-abandono-de-criancas-e-adolescentes-brasil.htm
5 https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2024-04/mais-de-2-milhoes-de-criancas-no-pais-estao-sem-vagas-em-creches
6 https://www.cartacapital.com.br/educacao/abandono-escolar-atinge-recorde-historico-entre-criancas-e-adolescentes-do-ensino-fundamental-mostra-ibge/
7 Idem
6.
8 Idem
6.
9
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Segurança Alimentar 2023,
realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
10
https://www12.senado.leg.br/tv/programas/cidadania-1/2024/03/mais-de-260-mil-pessoas-vivem-em-situacao-de-rua-brasil
11
https://www.brasildefato.com.br/2024/06/12/lira-faz-votacao-relampago-e-camara-aprova-urgencia-no-pl-que-equipara-aborto-a-homicidio-movimentos-falam-em-desonestidade
12 GAELANO, E. De Pernas pro Ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 1999.