Um
pouco de vida, de literatura, de reflexão...
Por
Alessandra Leles Rocha
Quanto mais o Brasil chafurda no
seu próprio caos instituído, mais distante ele se coloca do restante do mundo. A
notícia de que o romancista tanzaniano Abdulrazak
Gurnah é o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura deste ano é bastante
significativo dentro desse contexto. Afinal, de acordo com as próprias palavras
da Academia Sueca, responsável pela premiação, a escolha se deu pelo fato do
autor possuir uma “penetração
intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino do
refugiado no abismo entre culturas e continentes”1.
E nada mais importante para o
mundo contemporâneo do que as discussões pós-colonialistas, que vêm tentando desconstruir
e ressignificar as marcas dos absurdos e atrocidades cometidas durante o Regime
Colonial, ao redor do planeta. Tratam-se de dívidas sociais históricas que vêm
se perpetuando ao longo de séculos e não só reafirmando; mas, aprofundando as desigualdades,
as intolerâncias, os preconceitos, as violências. Acontece que dentro dessa
conjuntura está o Brasil, uma ex-colônia portuguesa.
Daí a importância de parar e
refletir sobre essa escolha; mas, também, de conhecer mais a obra desse autor e
de tantos outros dedicados à literatura pós-colonial. Na medida em que busca dissecar
a relação colonial, ela possibilita a construção de caminhos de resistência às
perspectivas colonialistas. Portanto, ela visibiliza as fraturas criadas pela
exclusão e a dicotomia cultural durante o domínio dos impérios metropolitanos;
bem como, as tentativas de aculturação pelos europeus e os conflitos
decorrentes desses processos.
Como explica Coll (2002), “Vivemos durante séculos influenciados pela
ilusão da miscigenação sem conflitos, mascarando uma realidade onde a dominação
e a discriminação racial e social diminuem consideravelmente as possibilidades
de realização cultural plena para uma enorme parcela da população. População,
aliás, que nunca deixou de lutar pela formação de uma sociedade na qual os
direitos de minorias sejam respeitados e incorporados a uma identidade nacional
reconhecidamente plural. Como resultado dessa luta, vivemos hoje um importante
processo de democratização das relações sociais no Brasil, e um cenário
político que certamente exigirá a incorporação de uma série de demandas reprimidas.
Devemos aproveitar a oportunidade para promover o incentivo ao diálogo, ferramenta
fundamental para a construção de uma cultura da paz, que se solidifica com base
na interculturalidade” 2.
Mas, a realidade brasileira,
especialmente nos últimos três anos, decidiu se lançar na contramão de tudo
isso e reacender o pior da herança colonial, no que diz respeito a valores,
crenças, princípios e comportamentos. Com o poder nas mãos da extrema-direita,
o que se assiste é uma incorporação da relação que existiu entre a Metrópole Portuguesa
e o Brasil Colônia. De modo que a cada dia se percebe uma exacerbação da
aporofobia, por meio de ações que intensificam o repúdio, a aversão e o
desprezo pelos pobres ou desfavorecidos.
Haja vista o mais recente veto do
Presidente da República à proposta tramitada no Congresso Nacional, de distribuição
gratuita de absorventes femininos para estudantes de baixa renda de escolas
públicas e mulheres em situação de vulnerabilidade social. Mas, não para por
aí. Outros episódios e estatísticas destacam, também, o racismo, a homofobia, a
xenofobia e a misoginia, no país. De certa forma, inclusive, trivializando
essas manifestações como parte da história brasileira desde o período colonial.
O que precisa ficar claro com
tudo isso é que essas questões não se concentram somente no âmbito ideológico e
comportamental propriamente dito. Elas alcançam a vida cotidiana na sua totalidade,
a tal ponto, que interferem no desenvolvimento do país sob a perspectiva da
educação, do mercado de trabalho, da distribuição de renda, da acessibilidade
cultural, da manifestação das violências, enfim... O que gera inevitavelmente a
pergunta incômoda, em que Brasil vivemos? O do século XVI ou do século XXI?
Já dizia a estilista francesa
Coco Chanel, “Não importa o lugar de onde
você vem. O que importa é quem você é! E quem você é? Você sabe? ”. O
Brasil não sabe. O Brasil convive com um turbilhão de dúvidas sobre si mesmo há
séculos. Às vezes, parece lutar desesperadamente para esquecer o seu passado
colonial; mas, para isso utiliza do próprio veneno que lhe foi empregado. Com o
peso das velhas práxis sob o comando do governo atual e não mais da Metrópole.
Como se os mais de 500 anos de
história não tivessem sido suficientes para entender, ressignificar e
reconstruir suas bases, fazendo emergir uma identidade própria e pujante. Quanto
mais ele resiste a esse processo metamórfico, mais ele visibiliza a sua imagem “vira-lata”. No fim das contas, acaba
como a personagem Viúva Porcina, da novela Roque Santeiro, de 1985, que era
conhecida como “aquela que foi sem nunca
ter sido”.
Portanto, todas essas
considerações só se fazem possíveis porque “[...]ler
significa descortinar, mudar de horizontes, interagir com o real,
interpretá-lo, compreendê-lo e decidir sobre ele. Desde o início a leitura deve
contar com o leitor, sua contribuição ao texto, sua observação ao contexto, sua
percepção do entorno [...]” (YUNES, 1995)3.
Assim, o Prêmio Nobel de Literatura deste ano traz sua contribuição para lançar
luz sobre o fato de que as identidades nacionais são formadas e transformadas
no interior desse sistema de representação. Por essa razão é que não basta um
olhar crítico para a Globalização do ponto de vista capital, do mercado de
trabalho, das relações comerciais, da distribuição do consumo de bens e
serviços.
Há de se entender, de uma vez por
todas, que todo esse processo socioeconômico sempre esteve atrelado a um
movimento de imitação servil, a padrões colonizadores, os quais imperam sobre o
mundo desde o século XV. Daí o fato de que se precisa muita atenção sobre as
interações entre as pessoas e suas culturas; visto que, elas vêm sendo subjugadas
e dicotomizadas com um rigor sem precedentes, até mesmo, nos dias atuais.
1
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2021/10/07/abdulrazak-gurnah-ganha-premio-nobel-de-literatura-2021.ghtml
2 COLL, A. N.
Propostas para uma diversidade cultural
intercultural na era da globalização. São Paulo: Instituto Pólis, 2002.
124p. (Cadernos de Proposições para o Século XXI, 2).
3 YUNES, E. Pelo avesso: a leitura e o leitor. Curitiba: Editora da UFPR, 1995. p.184. n.44.