quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Um pouco de vida, de literatura, de reflexão...


Um pouco de vida, de literatura, de reflexão...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quanto mais o Brasil chafurda no seu próprio caos instituído, mais distante ele se coloca do restante do mundo. A notícia de que o romancista tanzaniano Abdulrazak Gurnah é o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura deste ano é bastante significativo dentro desse contexto. Afinal, de acordo com as próprias palavras da Academia Sueca, responsável pela premiação, a escolha se deu pelo fato do autor possuir uma “penetração intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes”1.

E nada mais importante para o mundo contemporâneo do que as discussões pós-colonialistas, que vêm tentando desconstruir e ressignificar as marcas dos absurdos e atrocidades cometidas durante o Regime Colonial, ao redor do planeta. Tratam-se de dívidas sociais históricas que vêm se perpetuando ao longo de séculos e não só reafirmando; mas, aprofundando as desigualdades, as intolerâncias, os preconceitos, as violências. Acontece que dentro dessa conjuntura está o Brasil, uma ex-colônia portuguesa.

Daí a importância de parar e refletir sobre essa escolha; mas, também, de conhecer mais a obra desse autor e de tantos outros dedicados à literatura pós-colonial. Na medida em que busca dissecar a relação colonial, ela possibilita a construção de caminhos de resistência às perspectivas colonialistas. Portanto, ela visibiliza as fraturas criadas pela exclusão e a dicotomia cultural durante o domínio dos impérios metropolitanos; bem como, as tentativas de aculturação pelos europeus e os conflitos decorrentes desses processos.

Como explica Coll (2002), “Vivemos durante séculos influenciados pela ilusão da miscigenação sem conflitos, mascarando uma realidade onde a dominação e a discriminação racial e social diminuem consideravelmente as possibilidades de realização cultural plena para uma enorme parcela da população. População, aliás, que nunca deixou de lutar pela formação de uma sociedade na qual os direitos de minorias sejam respeitados e incorporados a uma identidade nacional reconhecidamente plural. Como resultado dessa luta, vivemos hoje um importante processo de democratização das relações sociais no Brasil, e um cenário político que certamente exigirá a incorporação de uma série de demandas reprimidas. Devemos aproveitar a oportunidade para promover o incentivo ao diálogo, ferramenta fundamental para a construção de uma cultura da paz, que se solidifica com base na interculturalidade” 2.

Mas, a realidade brasileira, especialmente nos últimos três anos, decidiu se lançar na contramão de tudo isso e reacender o pior da herança colonial, no que diz respeito a valores, crenças, princípios e comportamentos. Com o poder nas mãos da extrema-direita, o que se assiste é uma incorporação da relação que existiu entre a Metrópole Portuguesa e o Brasil Colônia. De modo que a cada dia se percebe uma exacerbação da aporofobia, por meio de ações que intensificam o repúdio, a aversão e o desprezo pelos pobres ou desfavorecidos.

Haja vista o mais recente veto do Presidente da República à proposta tramitada no Congresso Nacional, de distribuição gratuita de absorventes femininos para estudantes de baixa renda de escolas públicas e mulheres em situação de vulnerabilidade social. Mas, não para por aí. Outros episódios e estatísticas destacam, também, o racismo, a homofobia, a xenofobia e a misoginia, no país. De certa forma, inclusive, trivializando essas manifestações como parte da história brasileira desde o período colonial.

O que precisa ficar claro com tudo isso é que essas questões não se concentram somente no âmbito ideológico e comportamental propriamente dito. Elas alcançam a vida cotidiana na sua totalidade, a tal ponto, que interferem no desenvolvimento do país sob a perspectiva da educação, do mercado de trabalho, da distribuição de renda, da acessibilidade cultural, da manifestação das violências, enfim... O que gera inevitavelmente a pergunta incômoda, em que Brasil vivemos? O do século XVI ou do século XXI?

Já dizia a estilista francesa Coco Chanel, “Não importa o lugar de onde você vem. O que importa é quem você é! E quem você é? Você sabe? ”. O Brasil não sabe. O Brasil convive com um turbilhão de dúvidas sobre si mesmo há séculos. Às vezes, parece lutar desesperadamente para esquecer o seu passado colonial; mas, para isso utiliza do próprio veneno que lhe foi empregado. Com o peso das velhas práxis sob o comando do governo atual e não mais da Metrópole.

Como se os mais de 500 anos de história não tivessem sido suficientes para entender, ressignificar e reconstruir suas bases, fazendo emergir uma identidade própria e pujante. Quanto mais ele resiste a esse processo metamórfico, mais ele visibiliza a sua imagem “vira-lata”. No fim das contas, acaba como a personagem Viúva Porcina, da novela Roque Santeiro, de 1985, que era conhecida como “aquela que foi sem nunca ter sido”.

Portanto, todas essas considerações só se fazem possíveis porque “[...]ler significa descortinar, mudar de horizontes, interagir com o real, interpretá-lo, compreendê-lo e decidir sobre ele. Desde o início a leitura deve contar com o leitor, sua contribuição ao texto, sua observação ao contexto, sua percepção do entorno [...]” (YUNES, 1995)3. Assim, o Prêmio Nobel de Literatura deste ano traz sua contribuição para lançar luz sobre o fato de que as identidades nacionais são formadas e transformadas no interior desse sistema de representação. Por essa razão é que não basta um olhar crítico para a Globalização do ponto de vista capital, do mercado de trabalho, das relações comerciais, da distribuição do consumo de bens e serviços.

Há de se entender, de uma vez por todas, que todo esse processo socioeconômico sempre esteve atrelado a um movimento de imitação servil, a padrões colonizadores, os quais imperam sobre o mundo desde o século XV. Daí o fato de que se precisa muita atenção sobre as interações entre as pessoas e suas culturas; visto que, elas vêm sendo subjugadas e dicotomizadas com um rigor sem precedentes, até mesmo, nos dias atuais.

 



2 COLL, A. N. Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. São Paulo: Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de Proposições para o Século XXI, 2).

3 YUNES, E. Pelo avesso: a leitura e o leitor. Curitiba: Editora da UFPR, 1995. p.184. n.44.