Sobre
brioches, pães e farelos...
Por
Alessandra Leles Rocha
Franceses e não
franceses, hoje é 14 de julho. Dia de celebrar a Revolução Francesa, no tocante
à Tomada da Bastilha? Pode ser. Mas, talvez celebrarmos nossas próprias revoluções,
ou nos inspirarmos para elas, a partir do instante em que somos capazes de nos
indignar diante das mazelas do mundo. Mazelas essas que nem sempre estão tão
distante de nós, como gostaríamos.
Lá se vão alguns
séculos desde que os franceses ousaram lutar pela célebre tríade de direitos
humanos: IGUALDADE, LIBERDADE e FRATERNIDADE. Que Jean-Jacques Rousseau,
pensador daquela geração, escrevia sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens 1
e inspirava a postulação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada
pela Assembleia Nacional constituinte francesa, em 26 de agosto
de 1789; a qual inspiraria, no século XX,
o estabelecimento da Declaração Universal dos Direitos humanos (DUDH),
adotada pela Organização das Nações Unidas em 10
de dezembro de 1948.
Pois é, o tempo passou;
mas, a humanidade permanece ainda ansiosa pela consolidação de seus direitos
mais fundamentais, os quais continuam a esbarrar na tirania e na indiferença de
novos modelos de corte espalhados por aí. Daí, a importância desses ventos
históricos que sopram sobre nós sempre que estamos em 14 de julho. A história
volta para nos refrescar a memória, para reacender a antiga chama de cidadania
que, por incrível que possa parecer, habita em cada um de nós.
Ah, e como é preciso
esse resgate! Infelizmente, nos permitimos acreditar nas pequenas conquistas
como se fossem a totalidade da satisfação plena de nossas demandas. Entretemo-nos,
como crianças, com os adventos da Revolução Industrial e seus desdobramentos de
progresso e tecnologia; sem nos darmos conta de que tudo isso nos escravizaria
tão absurdamente quanto fizeram os desvarios das cortes absolutistas. E década
a década a sociedade tornou-se servil ao capital e mendicante de suas migalhas.
Chegamos ao século XXI sem brioches e, certamente, sem pão. Presos em masmorras
diversificadamente constituídas.
Assim, cada dia mais o
ser humano está distante da sua liberdade e da sua igualdade, na medida em que
perde, também, o seu senso da fraternidade. Em um estranho e bizarro movimento
de dominação, indivíduos continuam a não se constranger em subjugar seus
semelhantes a partir de verdadeiras ditaduras. Gênero, beleza, consumo,
poder,... tudo é rapidamente transformado em moeda de dominação; de modo que
determinados indivíduos possam sentir-se superiores e mais importantes na
sociedade do que outros. O valor da vida ainda permanece como sempre foi, ranqueado
na escala de prioridades da pirâmide social.
Só que, em pleno século
XXI, nenhum Absoluto perderá a sua cabeça, por conta da indignação aflorada
entre a população. Pelo menos é o que esperamos que não aconteça; já que, a barbárie
sangrenta não traduz nenhuma metamorfose social. Também, não podemos nos esquecer
de que nossa ‘corte’ é de meia pataca, não é legitimada e nem legalizada pela
Teoria do Direito Divino dos Reis 2; ela é apenas
fruto de nossas equivocadas escolhas.
No entanto, o ímpeto revolucionário
não pode permanecer silencioso. O que significa dizer que através da
manifestação ideológica e pacífica, todo ser humano é sim, convocado por sua consciência
cidadã a atuar continuamente contestando os absurdos e arbitrariedades; bem
como, reafirmando a legalidade e a legitimidade de seus direitos. Como manifesto
por Rui Barbosa, “Se
os fracos não tem a força das armas, que se armem com a força do seu direito,
com a afirmação do seu direito, entregando-se por ele a todos os sacrifícios
necessários para que o mundo não lhes desconheça o caráter de entidades dignas
de existência na comunhão internacional” 3.
Diante disso, a humanidade
já deveria ter entendido que esperar comodamente pela iniciativa de alguns não
remove os entraves que tanto a atrapalham de se desenvolver e existir. O mundo
pertence a todos. Ele é erguido pela ação de cada ser humano sobre sua face. Um
mundo melhor também. É lamentável que estejamos sempre à espera, que alguém
faça por nós, por um milagre. É essa inércia voluntária (e consciente) que nos
torna eternos praticantes de abstenções em relação à nossa própria vida.
É nesse abster de nos
comprometermos, de ousarmos, de agirmos como cidadãos, que estamos sempre referendando
todas as escolhas e caminhos que mais cedo ou mais tarde nos farão verter lágrimas
de sangue e de dor. Afinal de contas,
todo individuo sabe muito bem o que é certo e o que é errado. Assim, deveríamos
ao menos reconhecer que ao desfiarmos nossos rosários de queixas, elas são também
nossa responsabilidade. Não, não somos tão vítimas do mundo quanto queremos
fazer parecer. Ele, às vezes, é sim, cruel, perverso, terrível; mas, nós, que
fazemos parte dele, não somos também?
“Avante, filhos da
Pátria, o dia da Glória chegou” 4. E esse
dia, esse 14 de julho, é todos os dias, de todos os anos. Basta que sejamos
revolucionários o suficiente para não aceitar mais a história como fato imutável,
a nossa insegurança como fator limitante, os descalabros como normalidade. E
uma boa razão para isso pode estar no que disse o próprio Rousseau, “Povos livres, lembrai- vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca
recuperada”.
3 Rui Barbosa – A Revogação da Neutralidade Brasileira, p. 33. / http://www.projetomemoria.art.br/RuiBarbosa/periodo4/lamina26/