quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sobre brioches, pães e farelos...


Por Alessandra Leles Rocha


Franceses e não franceses, hoje é 14 de julho. Dia de celebrar a Revolução Francesa, no tocante à Tomada da Bastilha? Pode ser. Mas, talvez celebrarmos nossas próprias revoluções, ou nos inspirarmos para elas, a partir do instante em que somos capazes de nos indignar diante das mazelas do mundo. Mazelas essas que nem sempre estão tão distante de nós, como gostaríamos.
Lá se vão alguns séculos desde que os franceses ousaram lutar pela célebre tríade de direitos humanos: IGUALDADE, LIBERDADE e FRATERNIDADE. Que Jean-Jacques Rousseau, pensador daquela geração, escrevia sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os homens 1 e inspirava a postulação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional constituinte francesa, em 26 de agosto de 1789; a qual inspiraria, no século XX, o estabelecimento da Declaração Universal dos Direitos humanos (DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
Pois é, o tempo passou; mas, a humanidade permanece ainda ansiosa pela consolidação de seus direitos mais fundamentais, os quais continuam a esbarrar na tirania e na indiferença de novos modelos de corte espalhados por aí. Daí, a importância desses ventos históricos que sopram sobre nós sempre que estamos em 14 de julho. A história volta para nos refrescar a memória, para reacender a antiga chama de cidadania que, por incrível que possa parecer, habita em cada um de nós.
Ah, e como é preciso esse resgate! Infelizmente, nos permitimos acreditar nas pequenas conquistas como se fossem a totalidade da satisfação plena de nossas demandas. Entretemo-nos, como crianças, com os adventos da Revolução Industrial e seus desdobramentos de progresso e tecnologia; sem nos darmos conta de que tudo isso nos escravizaria tão absurdamente quanto fizeram os desvarios das cortes absolutistas. E década a década a sociedade tornou-se servil ao capital e mendicante de suas migalhas. Chegamos ao século XXI sem brioches e, certamente, sem pão. Presos em masmorras diversificadamente constituídas.
Assim, cada dia mais o ser humano está distante da sua liberdade e da sua igualdade, na medida em que perde, também, o seu senso da fraternidade. Em um estranho e bizarro movimento de dominação, indivíduos continuam a não se constranger em subjugar seus semelhantes a partir de verdadeiras ditaduras. Gênero, beleza, consumo, poder,... tudo é rapidamente transformado em moeda de dominação; de modo que determinados indivíduos possam sentir-se superiores e mais importantes na sociedade do que outros. O valor da vida ainda permanece como sempre foi, ranqueado na escala de prioridades da pirâmide social.
Só que, em pleno século XXI, nenhum Absoluto perderá a sua cabeça, por conta da indignação aflorada entre a população. Pelo menos é o que esperamos que não aconteça; já que, a barbárie sangrenta não traduz nenhuma metamorfose social. Também, não podemos nos esquecer de que nossa ‘corte’ é de meia pataca, não é legitimada e nem legalizada pela Teoria do Direito Divino dos Reis 2; ela é apenas fruto de nossas equivocadas escolhas.
No entanto, o ímpeto revolucionário não pode permanecer silencioso. O que significa dizer que através da manifestação ideológica e pacífica, todo ser humano é sim, convocado por sua consciência cidadã a atuar continuamente contestando os absurdos e arbitrariedades; bem como, reafirmando a legalidade e a legitimidade de seus direitos. Como manifesto por Rui Barbosa, “Se os fracos não tem a força das armas, que se armem com a força do seu direito, com a afirmação do seu direito, entregando-se por ele a todos os sacrifícios necessários para que o mundo não lhes desconheça o caráter de entidades dignas de existência na comunhão internacional” 3.
Diante disso, a humanidade já deveria ter entendido que esperar comodamente pela iniciativa de alguns não remove os entraves que tanto a atrapalham de se desenvolver e existir. O mundo pertence a todos. Ele é erguido pela ação de cada ser humano sobre sua face. Um mundo melhor também. É lamentável que estejamos sempre à espera, que alguém faça por nós, por um milagre. É essa inércia voluntária (e consciente) que nos torna eternos praticantes de abstenções em relação à nossa própria vida.
É nesse abster de nos comprometermos, de ousarmos, de agirmos como cidadãos, que estamos sempre referendando todas as escolhas e caminhos que mais cedo ou mais tarde nos farão verter lágrimas de sangue e de dor.  Afinal de contas, todo individuo sabe muito bem o que é certo e o que é errado. Assim, deveríamos ao menos reconhecer que ao desfiarmos nossos rosários de queixas, elas são também nossa responsabilidade. Não, não somos tão vítimas do mundo quanto queremos fazer parecer. Ele, às vezes, é sim, cruel, perverso, terrível; mas, nós, que fazemos parte dele, não somos também?
“Avante, filhos da Pátria, o dia da Glória chegou” 4. E esse dia, esse 14 de julho, é todos os dias, de todos os anos. Basta que sejamos revolucionários o suficiente para não aceitar mais a história como fato imutável, a nossa insegurança como fator limitante, os descalabros como normalidade. E uma boa razão para isso pode estar no que disse o próprio Rousseau, Povos livres, lembrai-vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada”.