quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Os pinóquios contemporâneos


Os pinóquios contemporâneos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo o provérbio “Prevenir é melhor do que remediar”! E de mamando a caducando, todos já deveriam saber disso! Acontece que, em plena contemporaneidade, a sanha em esticar a corda, para ver o malfeito emergir, anda solta por aí.  Sobretudo, quando assunto é de natureza político-partidária. O recente imbróglio que colocou o PIX no centro do falatório nacional, dá bem a dimensão do problema.

Não é preciso dizer, que esses são tempos de Fake News, de manipulação e distorção de conteúdos, de criações diversas por Inteligência Artificial (I.A.), enfim. Instrumentos que não fazem parte do cotidiano desse ou daquele grupo social; mas, de todos. Seja de forma direta ou indireta. Sendo assim, diante da gravidade das repercussões e desdobramentos de tais práticas, não se pode permitir que a classe política brasileira utilize do argumento da sua atribuição parlamentar para promoção e divulgação de inverdades.

Há aproximadamente uma década, a escalada de notícias falsas vem acontecendo, no país, e interferindo no equilíbrio das relações sociais, sob diferentes vieses, sem que medidas jurídicas sejam tomadas a contento e na velocidade necessária. Recentemente, nas eleições municipais, em 2024, o Brasil assistiu a um verdadeiro festival de absurdos, nesse contexto, sem que uma atitude contundente e responsável, por parte dos Tribunais Regionais Eleitorais, ocorresse.

Temos que concordar que a inação é uma licença para a permissividade. Se nem mesmo o período eleitoral foi capaz de frear os arroubos desse desvirtuamento ético tecnológico, o que se pode esperar? Sim, porque ao estabelecer uma prerrogativa de distinção que obstaculiza a responsabilização dos ocupantes dos cargos representativos do poder político, sobre a disseminação de Fake News ou de manipulação e distorção de conteúdos, por exemplo, abre-se um precedente no princípio da igualdade cidadã. Afinal, todos não são iguais perante a lei?!

De modo que esse comportamento permissivo fragiliza diretamente o Estado Democrático de Direito; bem como, a identidade cidadã. É preciso lembrar que esse tipo de atitude já nasce a luz do ilícito, da má intenção, do prejuízo social. Ninguém mente, distorce, inventa, em nome do altruísmo! Dentre tantas más intenções a povoar o cérebro dessa máquina da maldade contemporânea estão as políticas do medo, do ódio, da violência, da segregação, idealizadas por verdadeiros lobos em peles de cordeiro.

Bom, não é difícil que eles consigam êxito, tendo em vista a própria realidade contemporânea. A humanidade está cada vez mais à mercê da própria sorte, sem algum elemento que lhe restitua a sensação de segurança social. Portanto, ela está frágil, vulnerável, susceptível aos discursos inflamados e manipuladores, que lhes soam como ecos de sua própria consciência. Então, elas se rendem, crédulas àquelas palavras que ressoam em sua alma atormentada.

Daí a necessidade de se questionar a responsabilidade do Judiciário brasileiro, em todas as suas instâncias, em relação ao conjunto de atos ilícitos praticados por gente que defende o fomento e à disseminação de Fake News, de manipulação e distorção de conteúdos, de criações diversas por Inteligência Artificial (I.A.). Já passou da hora de cortar o mal pela raiz! Não se pode esquecer que o poder também é exercido pela influência, pelo exemplo, de modo que os responsáveis por essa onda de desinformação e de alienação social, precisam ser contidos pelos limites da Justiça.

A fim de que a população, em geral, entenda que o mundo tecnológico também é regido por leis, e ninguém está acima delas. Sem controle, sem limites, essa situação pode resultar em situações graves e irremediáveis. Porque não se pode dimensionar o grau de impacto de uma Fake News ou de uma manipulação e distorção de conteúdos sobre a população, na sua totalidade ou não. Quem nunca ouviu falar sobre uma transmissão de rádio, em 1938, pela Columbia Broadcasting System (CBS), nos EUA, que levou preocupação e pânico aos milhões de ouvintes daquela rádio 1? E nem eram os tempos das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), como agora!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

A judicialização da vida em tempos tecnologizados

A judicialização da vida em tempos tecnologizados

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Vivemos tempos em que o distanciamento dos valores éticos e morais na sociedade acaba por estabelecer novos caminhos para as mediações e as soluções de conflitos. Pois é, estamos em um tempo no qual a vida, na dinâmica do seu cotidiano, precisa ser judicializada, o tempo todo.

Acontece que para fazer valer os direitos, nesse contexto, o cidadão é levado a sentir na pele o desânimo causado pela morosidade judicial e as consequências de uma Justiça abarrotada de processos, os quais muitos não precisariam existir se a conduta humana fosse mais responsável. É assim, ou sofrer calado a injustiça!

E pensando a respeito, eis que ao expandir meu olhar sobre o mundo contemporâneo, me deparei com uma situação que tem tudo para dar um verdadeiro nó na judicialização.  Até aqui, não vejo que a humanidade venha se preparando e/ou se atentando para os desafios sociais que a Inteligência Artificial (I.A.) irá impor no campo jurídico.

Na medida em que a tecnologização do mundo deu saltos de inovação gigantescos, já começamos a experimentar problemas sérios, em questões de criminalidade. Ao ponto de as Ciências Jurídicas precisarem se debruçar sobre os vieses dessa temática e serem criadas delegacias e promotorias especializadas nos chamados Crimes Cibernéticos. Uma resposta importantíssima para aqueles que acreditavam que o mundo virtual é “terra de ninguém”.

Porém, o mundo não para e as Tecnologias da Comunicação e da Informação (TICs), também, não. E o ponto alto, do momento, é a Inteligência Artificial (IA), ou seja, uma área da ciência da informática destinada a criar programas e mecanismos capazes de exibir comportamentos tidos como inteligentes. Na verdade, a I.A. utiliza de algoritmos e de um conjunto de técnicas de aprendizado de máquina para análise de dados, tomada de decisões e resolução de problemas.

E com toda essa expertise, infelizmente, ela pode ser usada em benefício ou malefício da sociedade, em geral.  Basta a existência de interesses escusos, para que através da I.A. seja feita a manipulação ou adulteração de fotos, vídeos, sons e/ou documentos, a fim de causar constrangimento, humilhação, assédio, ameaça ou qualquer outro tipo de violência. O que pode levar a certas consequências irreparáveis, como o suicídio de uma vítima.

Mas a questão não para por aí. O Brasil, por exemplo, ainda não dispõe de uma legislação reguladora para o assunto. Enquanto isso, o tempo urge! Porque não se trata de qualquer legislação, tendo em vista que a I.A. funciona como antídoto de si mesma. Ora, medidas como a autenticação por voz ou a validação de imagem em tempo real se tornam ineficientes. Daí as ações criminosas, utilizando a I.A., se tornarem um gigantesco problema de judicialização no país.

Sem legislação sobre o assunto e sem um conjunto de ferramentas tecnológicas para distinguir a veracidade dos materiais comprobatórios, o judiciário demandará muito mais tempo para dar uma resposta aos que ingressarão com ações de reparação por crimes cometidos através da I.A., no país. O que fará a sensação de impunidade recrudescer dentro da sociedade. Será a conquista do caos.

Por isso, é preciso que o assunto seja pauta de ampla discussão, o mais rápido possível. Sem qualquer controle e/ou fiscalização, a I.A. pode tomar a sociedade brasileira de assalto e promover o seu fracasso civilizatório, em um piscar de olhos. Essa é uma grave ameaça não só à Democracia e ao Estado de Direito; mas, à sobrevivência de cada cidadão que possa ser vítima das violências delituosas de origem tecnológica. Qualquer um pode ser a bola da vez desse contexto de insegurança e ódio que se dissemina entre nós. 

sábado, 11 de janeiro de 2025

Instinto de Sobrevivência ...


Instinto de Sobrevivência ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma passada de olhos nas matérias exibidas essa semana e a sensação é de um total descolamento da realidade. Assuntos que orbitam necessariamente os interesses capitais seriam relevantes se não houvesse um contexto muito mais urgente e significativo para a sobrevivência humana.

Nada é mais fundamental do que a vida! Todo o resto existe por conta dela. E não adianta que A, B ou C, queiram subverter essa lógica. É assim e ponto final. Portanto, nesse momento, não há como fugir da realidade que impera soberana sobre a raça humana. Em cada canto do globo terrestre operam manifestações extremas do clima, as quais vão muito além de si mesmas.

São as reverberações desses acontecimentos que afetam a dinâmica social, em suas mais diversas instâncias, e colocam abaixo a força das decisões impositivas, as tensões políticas, os interesses econômicos. Depois de tanto fazer e acontecer, estamos diante de algo à revelia de nossas escolhas e ou da capacidade de subjugá-lo. O que torna as discussões totalmente non sense, na medida em que o mundo começa a se reestabelecer sob uma nova ordem.

O ideário da Revolução Industrial que veio determinando os parâmetros e os objetivos da vida, não se sustenta mais. A negligência e a inobservância em relação ao seu rastro de consequências e desdobramentos nefastos, exige uma mudança urgente de rumos na história. Afinal, a lei da sobrevivência é implacável e inflexível. E queiram ou não admitir, o TER está se tornando cada vez mais relativizado. Ele não é mais um sinônimo de certeza.

A raça humana está sendo nivelada a um mesmo patamar. Não importa o gênero, a raça, a idade, a escolaridade, o status, ... De uma hora para outra os indivíduos são confrontados pela escassez. Seja de água, de alimentos, de moradia, de medicamentos, ... De uma hora para outra os seres humanos podem perder todo o seu recurso.  Haja vista os recentes incêndios na Califórnia. Assim, de repente! A vida como ela é deixa de ser.

De modo que a apologia do caos através da busca pela monetização do ódio nas redes sociais, ou das políticas imperialistas beligerantes, ou dos comportamentos anticidadãos e antidemocráticos, ... demonstra o seu imenso distanciamento do que realmente importa. Não está nas mãos de nenhuma dessas práxis a manutenção da sobrevivência e da dignidade coletiva da raça humana. Muito pelo contrário. Elas acabam por funcionar como catalizadores da destruição. Os cavaleiros do apocalipse. Que se comprazem com a peste, a guerra, a fome e a morte.

Se deixar levar por essa teia distópica, que obedece aos interesses de uns e outros, apegados às materialidades da vida, é inútil. É preciso agir, de maneira consciente e responsável, em nome do resgate do planeta aos seus verdadeiros trilhos. Conter a propagação dos prejuízos socioambientais já consolidados. A voz da maioria tem que soar mais alto e mais consistente o seu instinto de sobrevivência. Nada mais importa se não tivermos meios de suprir nossas necessidades humanas fundamentais.  

Diante dessa breve leitura, nos permitamos refletir sobre as seguintes palavras, “Não é a paz que lhes interessa. Eles se preocupam é com a ordem, o regime desse mundo. (...) O problema deles é manter a ordem que lhes faz serem patrões. Essa ordem é uma doença em nossa história” (Mia Couto - O Último Voo do Flamingo, 2000). Contudo, “Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem – a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta” (Eduardo Galeano). Por isso é preciso agir!  

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Em nome de quais interesses, hein?!


Em nome de quais interesses, hein?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A sustentação do poder não é para qualquer um. É preciso ter know-how para não acabar se deixando levar pela arrogância desmedida e se transformando em escada das pretensões alheias. Antes mesmo do presidente eleito, dos EUA, tomar posse, em 20 de janeiro, seu governo dá sinais de que caminha para o início do fim.

Certas megalomanias que vem sendo divulgadas, algumas delas de viva voz por ele, parecem transpirar influências externas ao contrário de ideias próprias. Inclusive, porque ele tem escolhido o seu staff a dedo, indivíduos de vieses radicalizados ideologicamente, o que já causou diversos ruídos com sua base político-partidária.

Mas, considerando que apesar de sua experiência anterior, na Casa Branca, ele não é um ser político. Ele gosta do poder e do que esse pode lhe proporcionar; mas, não da política e da governança. Exatamente como um de seus principais indicados para o governo, que pensa estar fazendo um excelente negócio para si mesmo. Só que não.

A nível de discurso, a sede expansionista que tem marcado as falas do presidente eleito, dos EUA, demonstra a total inabilidade e desconhecimento geopolítico, no contexto contemporâneo. O que torna esse tipo de jogo extremamente temerário aos interesses estadunidenses; sobretudo, ao favorecer seus principais oponentes globais.

Desfazendo-se da dialogia para utilizar da beligerância como estratégia, os EUA constroem barreiras de isolamento em relação ao mundo, o que, ao menos em tese, abre oportunidades aos que assistem de camarote a sua radicalização discursiva.  

Bem, relembrando as sábias palavras de Carl Gustav Jung, “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”, enquanto o novo governo dos EUA se inebria com seus delírios expansionistas, fomentados pelas influências alheias, à revelia do que pensam os seus cidadãos, talvez, o despertar possa vir de maneira caótica.

E aí cabe dois aspectos de análise. Primeiro, porque essa estratégia esgarça qualquer intenção de favorecer a popularidade da ultradireita no cenário mundial. Pesquisas e estudos acadêmicos dão conta da impopularidade da beligerância no mundo contemporâneo. A insatisfação é geral, quando se trata de comportamentos autoritários, opressores, tirânicos.

Segundo, porque não só pela dinâmica social que eles representam; mas, pelas consequências desastrosas, de natureza político-econômica, que a beligerância, em si, produz. Com os olhos e os interesses voltados para conflagração externa, o país fica à deriva, à mercê da própria sorte. Especialmente, do ponto de vista econômico, tendo em vista os vultosos montantes destinados à manutenção dos conflitos.

Mas, ainda caberia um terceiro aspecto. Considerando o lema da campanha eleitoral vencedora, “Fazer a América Grande Outra vez” (Make America Great Again – MAGA), parece haver uma dissonância de ideias. Rupturas dialógicas e diplomáticas; bem como, estratégias de caráter imperialista, não são um caminho no sentido de fortalecer os EUA.  A política da pós-verdade, do medo social, pode sim, surpreender com um efeito totalmente reverso, em relação a eles mesmos.

Começando pelo próprio país. Por mais que o Partido Republicano tenha vencido às últimas eleições, os estadunidenses não estão coesos politicamente. Há diversas questões que apontam a existência de fraturas na sociedade, sendo uma delas a guerra. Os EUA são um país marcado historicamente pela belicosidade, dentro e fora do seu território; mas, ainda não conseguiram superar todas as arestas, nesse sentido.

Além disso, o cenário atual do planeta não é dos melhores. Há duas guerras em curso. Há uma série de países envolvidos, dentro de um nível de complexidade diplomática bastante importante. Qualquer movimento errático dos EUA, nessas alturas do campeonato, pode catalisar desdobramentos inimagináveis, afetando diretamente a estrutura de governança estadunidense.

Ora, lembremo-nos as palavras de Nicolau Maquiavel, “Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”. E nisso reside o início do fim. Ao deixar-se envolver pelas lisonjas, os apertos de mãos, as trocas de favores, a vaidade deturpa e arruína o poder do governante. No entanto, não foi a essas pessoas que a Democracia, através do pleito eleitoral, elegeu.

O que significa que as malfadadas consequências, que possam vir dessa gestão, na verdade, são de responsabilidade do presidente. Das suas escolhas. Das suas decisões. Afinal, ele assumiu um compromisso constitucional com seu país. Se uns e outros o influenciaram, o persuadiram, isso não muda a realidade dos fatos; mas, de certa forma, pode sim, ser um sinal do tamanho das pretensões e das ambições desses indivíduos, em relação ao poder.     

Assim, diante dessa breve reflexão, guardemos na memória que “O Príncipe que depende de muitos costuma não ter sucesso”; pois, “Existe uma distância tão grande entre como se age e como se deveria agir, que aquele que despreza o mundo real para viver num mundo imaginário encontrará antes sua ruína do que sua salvação”.  Afinal de contas, ele acabará descobrindo, da pior forma, que “É fácil persuadir o povo de algo, difícil é manter essa persuasão” (Nicolau Maquiavel – O Príncipe, 1532)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Luz. Câmera. Ação. ...


Luz. Câmera. Ação. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quase não consegui dormir, tamanha a euforia depois de Fernanda Torres se tornar a primeira brasileira a ganhar o prêmio de melhor atriz de drama no Globo de Ouro, por sua atuação em “Ainda estou aqui”. Fiquei pensando a respeito de tudo o que essa premiação representa além de si mesma.

Começando pelo fato de que ela provoca um tipo de ruptura com a nossa herança colonial eurocêntrica, que sempre buscou a validação do outro, na figura das metrópoles, inclusive, nos aspectos culturais, para apontar o bom, o belo, o importante. Bem, parece que, finalmente, no campo do cinema, rompemos essa bolha histórica. O talento indiscutível dos nossos atores, atrizes, diretores e demais profissionais da 7ª Arte, personificado por Fernanda Torres, nessa madrugada, em Los Angeles, foi levado em consideração e aclamado fora da sua zona de conforto nacional.  

E isso é incrível porque traz o olhar do próprio brasileiro para a grandiosidade que compõe a sua cultura, ou seja, ele passa a tecer uma nova percepção a respeito da sua identidade nacional. A compreender o que é cultura. Como ela atravessa as nossas vidas. Como ela nos representa enquanto sociedade plural e diversa. Como ela nos oferta um lugar de fala para as nossas crenças, valores, emoções e sentimentos, ainda que preservando delicadamente a nossa privacidade.

Contudo, a lição mais valiosa oportunizada pelo filme de Walter Salles foi tão sutil que passou despercebida por muitos. Simplesmente, porque ela não começa no filme; mas, na sensibilidade do autor Marcelo Rubens Paiva em transcrever em palavras o registro da sua história familiar, a luz do olhar de sua mãe Eunice. Uma história que se alinhava do início ao fim pela força oriunda do afeto mais genuíno que pode caber em um ser humano.

De modo que aquela família brutalmente dilacerada pelo desaparecimento do pai, por força da política ditatorial vigente no Brasil, durante o Regime Militar, só se torna capaz de resistir aos acontecimentos, em razão de um afeto incondicional que a mantinha unida. Na ausência do pai, Eunice reuniu em si esse afeto e fez dele a ligação perfeita com cada um de seus cinco filhos, para sobreviver aos desdobramentos daquele processo terrível.

Portanto, essa história que, agora, lota as salas de cinema, dentro e fora do país, não só descortina a crueldade e a perversidade autorizada pelo Estado brasileiro contra diversos de seus cidadãos, contrários ao regime político vigente entre 1964 e 1985; mas, demonstra a necessidade do afeto para não se deixar jamais embrutecer pela realidade. E olhando para a contemporaneidade esses vieses são essenciais.

Primeiro, pelo distanciamento temporal que impede às novas gerações de perceberem, em profundidade, a dimensão histórica de certos acontecimentos. A partir de uma construção autobiográfica, como é o livro de Marcelo, se torna possível contribuir significativamente para esse resgate da cidadania nacional sob diferentes aspectos, promovendo uma abertura dialógica entre gerações.

Segundo, pelo fato de que a contemporaneidade vem consolidando uma sociedade pautada pelo tripé do individualismo, do narcisismo e do egoísmo. Fechados em suas bolhas, os indivíduos estão sim, avessos às manifestações do afeto. Estão menos empáticos, solidários, fraternos, amorosos, ... Algo que não repercute apenas nas suas relações com o mundo; mas, dentro do próprio núcleo familiar. Um sinal claro de que estão vivendo sob uma fragilidade e uma vulnerabilidade extrema no que diz respeito a construir o seu porto seguro, o seu alicerce afetivo-emocional.

Então, quando a história do livro se transporta para as telas dos cinemas e passa a ser contada para milhares de espectadores, é como se a cultura brasileira fizesse as pazes com a sua gente. Um laço de afeto se restabelece, a partir da possibilidade de se perceber a importância cultural para a construção da nossa identidade, da nossa historicidade. De repente, se descobre que a cultura do outro não nos satisfaz inteiramente. Precisamos da nossa! Precisamos saber quem somos!

Porque, “A cultura é um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da interação social entre indivíduos. Esse processo é mediado pela língua, que permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as gerações, daí compreendemos que a cultura de um povo constitui-se como um todo que é realizado por cada indivíduo, afinal, cada um é peça importante na construção cultural, uma vez que é portador, disseminador, mas também criador de cultura” (Coelho; Mesquita, 2013, p.27 1).

Desse modo, só me cabe dizer que o prêmio recebido por Fernanda Torres simboliza sim, um arauto de libertação cultural contra o domínio de uma cultura sobre todas as outras e de uma desconstrução do nosso complexo de vira-lata, pela força de um afeto que afaga a nossa identidade nacional. Provou-se, de uma vez por todas, que “A evidência de que o mundo é culturalmente diverso não pode mais ser ignorada, nem mesmo por aqueles que não gostam dessa realidade e até lutam contra ela” (Agustí Nicolau Coll, 2002  2). Portanto, somos bons! Muito bons! Talentosos e competentes! Nossa cultura não está aquém de nenhuma outra!



1 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013. 

2 COLL, A. N. Proposta para uma diversidade intercultural na era da globalização. São Paulo: Instituto Pólis, 2002. 124p. (Cadernos de proposições para o Século XXI, 2).

domingo, 5 de janeiro de 2025

A Medicalização da “Felicidade”


A Medicalização da “Felicidade”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é necessário ser nenhum expert para perceber o nível de pressões e tensionamentos sociais, as quais vivem a população contemporânea. Sob diferentes formas, milhões de seres humanos são levados a se equilibrar, diariamente, por conta de uma extenuante jornada de tarefas, obrigações e compromissos, imersos em uma teia invisível de ritos e protocolos sociais a serem seguidos.  

Ora, o resultado disso não poderia ser outro! A população global está adoecendo; sobretudo, do ponto de vista mental. Ao comprometer a sua saúde identitária, essas pessoas tendem a reverberar uma série de consequências, altamente perigosas. De modo que elas vão perdendo a sua capacidade de se manter, muitas vezes, inseridas e aceitas socialmente. E para evitar esse dissabor social, muitas delas acabam recorrendo à chamada medicalização.

É, ao invés de estabelecerem um balanço a respeito da sua realidade, indo ao cerne das questões que, de fato, desestabilizam a sua estrutura psicoemocional, elas vão pelo atalho arriscado de substâncias psicoativas de uso farmacológico, tais como os opioides e os ansiolíticos. No entanto, o uso contínuo e prolongado desses medicamentos leva à dependência, com uma série de consequências adversas ao seu estado de saúde e às suas relações interpessoais. Estabelecendo um ciclo difícil de ser rompido.

Assim, estamos diante de uma medicalização da “felicidade”. Para fazer frente à frenética busca pela aceitação, pertencimento, reconhecimento, produtividade e sucesso, o ser humano recorre às substâncias psicoativas. Inclusive, porque elas lhe conferem uma certa proteção, quanto à estigmatização conferida ao uso de outras substâncias, tais como o álcool, a maconha, a cocaína, o crack. O uso de medicamentos acontece, geralmente, de maneira discreta e privada, sem a presença de outras pessoas.

Então, o usuário tem a falsa impressão de que não está transitando pelo caminho do vício, apenas está se medicando em relação a certas manifestações de transtorno mental, ou seja, depressão, bipolaridade, estresse pós-traumático, transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares, ...  Ele acredita estar se tratando de questões que ele próprio identificou, que o incomodam e precisam ser resolvidas de algum modo; mas, de maneira bastante particular.

Acontece que toda medicação produz efeitos colaterais diversos, dependendo do organismo humano. Cada corpo responde de uma maneira específica à quantidade e ao tempo de exposição à uma dada substância química. De modo que esse processo tende a estabelecer uma série de consequências que não podem mais ser ocultadas no campo das relações sociais. De repente o indivíduo, à revelia do seu autocontrole, passa a manifestar mudanças tão abrutas no seu comportamento e nas suas emoções, que essas passam a afetar diretamente na sua inserção social.

O que significa que essa medicalização não só é um problema de Saúde Pública; mas, também, de caráter socioeconômico.  Há uma visível restrição social a essas pessoas, inclusive, no campo de trabalho. Algo que tende a acentuar e a agravar o seu quadro de dependência química. A crise dos opioides, por exemplo, que mata mais de 200 pessoas por dia nos EUA merece total atenção da sociedade e das autoridades mundiais. Porque, “Medicamentos como fentanil, codeína e oxicodona são analgésicos eficazes e seguros quando prescritos por um médico. Mas, sem orientação de especialista ou para uso recreativo, há um alto risco de o indivíduo desenvolver dependência” 1.

Vejam a que ponto a sociedade de consumo chegou! A ideia de que tudo poderia ser adquirido nas melhores lojas do ramo, ao preço acessível de cada bolso, chegou ao limite de fazer milhões de pessoas acreditarem que a sua felicidade, o seu bem-estar, o seu equilíbrio psicoemocional, estaria disponível em cápsulas ou comprimidos. A medicalização da “felicidade” é mais um reflexo da insalubridade mental que toma conta de legiões de seres humanos na contemporaneidade.

Em suma, há uma necessidade urgente a respeito, pois esse processo, o qual transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos, afeta a sociedade como um tudo e sob diferentes maneiras. Já dizia Érico Veríssimo que a “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente”. Portanto, esse é o ponto de análise e reflexão, resgatar a dignidade e os direitos humanos, de maneira plena e profunda, a fim de que o significado e a significância da vida possam transcender ao próprio indivíduo.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Saúde Mental ... (Janeiro Branco - Mês de Conscientização da Saúde Mental)


Saúde mental ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Embora a saúde mental ainda seja um tabu para uma imensa maioria da população, não há como se abster de discutir esse assunto; sobretudo, na contemporaneidade. Distúrbios e transtornos mentais sempre estiveram presentes na historicidade humana; mas, em razão da carência de embasamento científico adequado, foram prejudicados em seus protocolos de cuidados, gerando uma série de preconceitos e estereotipizações, as quais ainda não foram totalmente superadas.

Considerando que nem todos os distúrbios e transtornos mentais têm causa estritamente orgânica, o componente socioambiental vem cada vez mais se tornando objeto de análise e de atenção por diversos campos da ciência. Afinal de contas, a mente exerce sobre as subjetividades humanas um papel fundamental, incluindo, a própria modelagem identitária dentro do contexto social. Todo indivíduo almeja pela aceitação, pelo pertencimento e pelo reconhecimento, ao longo de todo o seu trânsito pelos espaços sociais.

Algo que é bastante desafiador, tendo em vista, o sistema de trocas e abnegações que se tornam necessárias para caber, de alguma forma, dentro dessas estruturas. Isso significa que o indivíduo é levado pelas conjunturas sociais a um processo de manipulação identitária. De modo que ele passa a ser povoado por diferentes personagens, segundo as imposições sociais que se fazem necessárias. O que é, sem dúvida alguma, muito desgastante e doloroso.

E pensando sobre a realidade contemporânea, essas questões se agigantam e se aprofundam consideravelmente. A sociedade de consumo consolidou um perfil de seres humanos despojados totalmente da sua identidade, para servir sob total obediência, aos protocolos sociocomportamentais por ela estabelecidos. Razão pela qual os indivíduos foram aprisionados em uma estrutura de tarefas, obrigações, compromissos, altamente extenuante; mas, essencial para a aquisição de recursos que satisfaçam ao consumo e a ostentação de seus, bens, produtos e serviços.

Acontece que, enquanto o ser humano se torna uma vitrine desse modelo social, ele é destituído, muitas vezes, à revelia de sua própria consciência, da sua condição humana existencial. O que sente, o que pensa, o que sofre, o que deseja, o que sonha, ... deixou de ser prioridade para milhões de pessoas. Elas vivem uma identidade, ou várias, dependendo da situação, que não traduz quem realmente são. Suas crenças, seus valores, seus princípios, seus sentimentos, suas emoções, tudo está condicionado às imposições das materialidades do mundo. Inevitavelmente, isso irá produzir vazios existenciais que refletem fastios, frustrações, melancolias, angústias, ... difíceis de serem curadas.

Não é à toa que essa violência, produzida contra si mesmo, é tão perigosa! Ora, o ser humano está tão incorporado ao frenesi do mundo contemporâneo, que ele desaprendeu a ser. Tudo o que ele faz e pensa é em função do TER, que lhe parece ser o único passaporte capaz de assegurar a aceitação, o pertencimento e o reconhecimento social. Afinal, esse é o ópio que anestesia os seus vazios, as suas solidões; visto que, ele não se conhece e, portanto, a sua verdadeira identidade não pode lhe completar. Ela é uma estranha.  E essa percepção aprofunda o seu adoecimento mental. Por isso os vícios, as compulsões, as automutilações, os suicídios.   

Muitos temem as violências do mundo; mas, a violência produzida contra si mesmo não é menos grave ou letal. Veja, “De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), a cada ano, mais de 700 mil pessoas perdem a vida para o suicídio em todo o mundo, sendo que 77% dos casos ocorrem em países de baixa e média renda. O suicídio é a quarta causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos. Para cada suicídio, estima-se que ocorrem outras 20 tentativas. A maioria dos casos está relacionada a transtornos mentais, como a depressão, em primeiro lugar, seguida do transtorno bipolar e do abuso de substâncias” 1.

É inquestionável a necessidade de discussão, ampla e objetiva, sobre a saúde mental na contemporaneidade. Porém, só isso não adianta. É preciso rever as estruturas sociais; sobretudo, aquelas que dão corpo e impulso para as pretensões e objetivos vorazes da sociedade de consumo. O adoecimento mental da população aponta para o iminente extermínio da vida, a partir da engenhosidade obscura de certas práxis necropolíticas.  Os cérebros estão sendo levados à exaustão, tanto quanto os corpos. Depressão. Ansiedade. Síndrome de Burnout. Estresse Ocupacional. ...  As pessoas não desfrutam mais da sua dignidade existencial. E em nome de quê? Como escreveu Jiddu Krishnamurti, “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”.

2025 está só começando e a Campanha do Janeiro Branco 2 pode ser a grande oportunidade de desconstrução do tabu sobre a saúde mental. Falar sobre o tema pode ajudar milhões de pessoas a reconhecerem as suas fragilidades, as suas vulnerabilidades, os seus desconfortos, e a buscar caminhos para superá-los. Aliás, o diálogo é o ponto de partida para desconstruir as barreiras, os obstáculos, não só aproximando uns aos outros; mas, principalmente, resgatando a capacidade de exercitar a empatia, a solidariedade, o afeto, o respeito, a humanidade em si.

Bem, é desse processo que a saúde mental se desmistifica; pois, se torna possível entender que os “Problemas de saúde mental não definem quem você é. Eles podem ser intensos. Eles podem ser esmagadores.  Mas eles são algo que você experimenta – e não quem você é. Do mesmo modo que você pode andar na chuva, sentir a chuva, deixar que ela te encharque até os ossos – mas, ainda assim, você não é a chuva” (Matt Haig). Uma descoberta extremamente pacificadora e libertadora, que acolhe e humaniza qualquer um que dependa desse afago social.