sexta-feira, 30 de maio de 2025

PL 320/2025 - O mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas?


PL 320/2025 - O mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Afinal, o mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas? O motivo da pergunta é o Projeto de Lei (PL) 320/2025, aprovado pela Comissão de Agricultura (CRA) do Senado brasileiro, que “autoriza a renegociação de até R$ 60 bilhões em dívidas de produtores rurais impactados por eventos climáticos extremos desde 2021” 1. Afinal de contas, entre os nobres legisladores da República, uma parcela bastante significativa é enfaticamente negacionista em relação aos eventos extremos do clima.

Assim, por uma coerência ética, é fundamental que eles esclareçam os fatos. Especialmente, considerando que o texto desse PL prevê a securitização dessas dívidas, convertendo-as em títulos garantidos pelo Tesouro Nacional, com prazos de até 20 anos e carência de três anos para o início dos pagamentos. A redução das taxas de juros, que poderão variar entre 1% e 3% ao ano, além de bônus por adimplência e prorrogação automática das prestações em caso de novos desastres naturais. A criação de uma linha especial de crédito pelo BNDES, com juros de até 5% ao ano, voltada à recuperação de solos e sistemas de irrigação.

Considerando o velho ranço colonial brasileiro, não é de se espantar que esse PL se mostre visivelmente uma homogeneização da questão, abstendo-se de uma análise criteriosa, dentro do espectro do agronegócio nacional, a fim de estabelecer aqueles produtores verdadeiramente impossibilitados de enfrentarem autonomamente os impactos causados por eventos climáticos.  O que significa abranger a todos, sem distinção; mas, beneficiando direta e prioritariamente a elite representada pelos grandes proprietários de terras, no país. Sem contar, que não há quaisquer menções no sentido de estabelecer uma contrapartida, em termos de ações socioambientalmente responsáveis e capazes de uma mitigação sistemática às emergências climáticas.

Queiram ou não admitir, tal ideia representa um poço sem fundo. Haja vista que a manutenção do descompromisso em relação às políticas de desenvolvimento sustentável, as quais se alicerçam pelo tripé do crescimento econômico, da inclusão social e da proteção ambiental, fará desse PL um veio de desperdício orçamentário, sem precedentes. É preciso entender que toda atividade econômica tem os seus riscos inerentes. No caso do agronegócio, independentemente do recrudescimento das mudanças climáticas, as condições naturais em si, já representam um risco. Obter benefícios governamentais sem assumir compromissos e responsabilidades para o enfrentamento da nova realidade climática global é simplesmente imoral.

Sobretudo, porque quaisquer que sejam os montantes de recursos capitais empenhados, por si só eles não têm quaisquer capacidades de reversão dos agravos no quadro ambiental vigente. A máquina do agronegócio depende, necessariamente, da manutenção do equilíbrio ecossistêmico. De modo que a superexploração de recursos naturais, como irrigação excessiva, desmatamento, utilização de queimadas e contaminação do solo por agentes poluidores, gera impactos negativos, comprometendo a sustentabilidade e a viabilidade das atividades do setor. No caso específico das temperaturas extremas e dos eventos climáticos, cada vez mais frequentes, eles tensionam diretamente a capacidade produtiva, gerando oscilações de mercado, ou seja, variações de preços, lei da oferta e da procura e mudanças nas políticas de comércio exterior 2.

Ao que tudo indica, então, o PL 320/2025 não só se abstém do apoio e do engajamento às políticas de desenvolvimento sustentável, para o setor do agronegócio; mas, também, da preocupação com a suficiência da produção nacional e, por consequência, com a segurança alimentar da população. Aliados e simpatizantes ao setor do agronegócio, no legislativo federal brasileiro, estão sim, preocupados com a manutenção das suas regalias e privilégios históricos ainda que isso signifique se beneficiar de recursos governamentais apesar do cenário improdutivo, ou de baixa produção, decorrente do seu arraigamento ideológico negacionista.   


quinta-feira, 29 de maio de 2025

Qual é a sua visão de DESENVOLVIMENTO?


Qual é a sua visão de DESENVOLVIMENTO?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A contemporaneidade tem nos imposto uma análise reflexiva, a qual precisa dissecar camada por camada dos fatos e acontecimentos, para ser efetivamente compreensível. Talvez, por isso, a grande maioria das pessoas não se disponha a atuar nesse sentido, porque isso demanda algum tempo. Quando o assunto diz respeito às questões socioambientais, isso fica muito evidente!

Para início de conversa, é impossível entrar nessa seara, desconsiderando os impactos que o DESENVOLVIMENTO, impulsionado pelas Revoluções Industriais, apresenta. É certo que, nos idos do século XVIII, não se dispunha de uma compreensão ampla e aprofundada a respeito das reverberações e consequências que emergiriam da industrialização.

No entanto, seus apoiadores e financiadores se apressaram a propagar, de maneira maciça, uma visão idealizada e enviesada do assunto. O que significava estar alinhada a contemplar prioritariamente os benefícios, invisibilizando e/ou excluindo os malefícios. E esse é o ponto chave, que atormenta a realidade contemporânea.

As acaloradas e desrespeitosas discussões, que vêm acontecendo, nos últimos dias, no cenário político-partidário nacional, é prova cabal dessa situação1. A visão dissociativa entre DESENVOLVIMENTO, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE, revela como esse discurso foi secularmente moldado no inconsciente coletivo.

Com base na própria historicidade nacional, ou seja, o Brasil como ex-colônia de exploração da metrópole portuguesa, se entende por quais caminhos a noção de DESENVOLVIMENTO foi formulada, no país. Um DESENVOLVIMENTO voltado exclusivamente para a produção de riqueza, de lucro. Algo que, diante do passar do tempo, foi justificado por um fim. Qual seria ele? A geração de emprego e renda, o que para um país, com uma flagrante desigualdade socioeconômica, parece bastante convincente.

Só que não. Basta um breve passar de olhos pelos veículos de informação e de comunicação, diariamente, para ser confrontado com as marcas das desigualdades nacionais. Um sinal claro de que o DESENVOLVIMENTO, por aqui, dentro desses moldes, permanece satisfazendo aos interesses diretos das elites e seus meios de produção.

Por essas e por outras, esses indivíduos estão se manifestando de maneira belicosamente histriônica. A histórica conquista brasileira, a qual parecia se consagrar como uma reparação à irracionalidade dos ciclos exploratórios ocorridos no país, o LICENCIAMENTO AMBIENTAL não só impõe uma nova visão de DESENVOLVIMENTO; mas, incomoda a permanência das velhas práxis garantidoras dos interesses desse estrato social.

Vejam, a ausência de licenças para instalação, ampliação, modificação e operação de atividades que utilizam recursos naturais ou que podem causar impactos ambientais, é uma obstaculização gratuita ao DESENVOLVIMENTO. Com base nos exemplos retratados nos filmes MINAMATA (2021) 2, O PREÇO DA VERDADE (2019) 3 e ERIN BROCKOVICH (2000) 4, se torna facilmente compreensível o papel fundamental das licenças ambientais para evitar consequências e desdobramentos irreparáveis, capazes de impactar negativamente outros setores da sociedade.

Licenças ambientais não se baseiam em ideologias! Elas são instrumentos de natureza técnico-científica. Seu objetivo primordial é garantir a compatibilidade entre o desenvolvimento econômico-social e a proteção do meio ambiente, a partir da regulamentação das atividades que possam ser direta e/ou indiretamente causadoras de impactos negativos, inclusive, letais.

Mesmo com sua existência, no Brasil, não podemos jamais esquecer de episódios como os ocorridos em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019). Cujos processos judiciais ainda se arrastam, repercutindo o sofrido e angustiante desalento dos atingidos; bem como, se mantêm expostos à força do poder capital dos responsáveis para não só postergar, mas inviabilizar as reparações e os ressarcimentos materiais estabelecidos pela Justiça.

Nada surpreendente se observado o modelo de DESENVOLVIMENTO presente na realidade brasileira, e que vem sendo defendido raivosa e estridentemente nos palcos político-representativos, a fim de gerar uma adesão social rasa e irreflexiva.  Relembrando Fernando Pessoa, o famoso poeta português, “O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte do desenvolvimento superior dela - em segui-la pois mimeticamente com uma insubordinação inconsciente e feliz”.

Assim, diante do cenário do século XXI, o que está em discussão é o DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, “o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades” (Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega e líder internacional em desenvolvimento sustentável). O que significa que “A sustentabilidade é uma questão de vida ou morte para a humanidade” (Jacques Cousteau - oceanógrafo, cineasta e autor francês).

Lembre-se: “As letras e a ciência só tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelos que as amam e para os que as amam” (Piotr Kropotkin - geógrafo e escritor russo). Somente nesse contexto é que a sociedade entenderá as palavras de Mahatma Gandhi, advogado, nacionalista anticolonial e eticista político indiano, “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”.



3 O Preço da Verdade - Dark Waters | Trailer Legendado - https://www.youtube.com/watch?v=02QZ4fFXaoU

4 Erin Brockovich 2000 Official Trailer - https://www.youtube.com/watch?v=IRPjTMbSEG0


terça-feira, 27 de maio de 2025

O mundo e o ódio


O mundo e o ódio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A saga humana sobre a Terra é sim, marcada pelas idas e vindas do seu fracasso civilizatório. Domar o instinto primitivo, o bárbaro que habita as profundezas da inconsciência humana, não é tarefa fácil! De vez em quando, sob ondas rompantes e tenebrosas, o lado escuro da força se manifesta. O exemplo da ocasião é o ódio. Em todas as suas formas. Sob todos os pretextos. Odiar no mundo virtual. No mundo real.  Odiar...

E apesar de não mudar em nada, no curso da própria história de quem odeia, ele o faz porque o senso deturpado do individualismo lhe aponta esse tipo de comportamento como uma forma de poder. A ideia de poder odiar o outro resulta uma satisfação, um sentimento de coragem infracional, de superioridade social. Mas, não é só isso. O ódio ao outro exerce sempre a função de evitar que se enxergue a própria imagem, na sua devida dimensão factual.  

Assim, a pseudoideia de superioridade, de força, de capacidade, ... se mantém inabalável no indivíduo. Segundo o escritor tcheco Milan Kundera, “O valor de um ser humano reside na capacidade de ir além de ele próprio, de sair de dentro de si próprio, de existir dentro de si próprio e para as outras pessoas”. Talvez, por isso, o ódio seja tão importante para uns e outros, por aí.

Não é à toa que estudiosos no campo do comportamento identificaram a explosão do interesse e do compartilhamento do ódio nas mídias sociais. O ódio lidera na capitalização de recursos. De modo que, na busca de engajamento nesses espaços virtuais, a opção pela disseminação da paleta de manifestações odiosas cresce tão vertiginosamente.  Algo que vem fragmentando a dinâmica existencial em pequenos pretextos para a deflagração do ódio. Racismo. Xenofobia. Homo e Transfobia. Sexismo. Misoginia. Etarismo. Gordofobia. Aporofobia. Classismo. Capacitismo. Intolerância Religiosa. ...   

Daí o ódio ser cada vez mais atemporal e amplo na sua distribuição socioespacial. Não há um dia sequer em que os veículos de informação e de comunicação, tradicionais e alternativos, não exibam registros de ódio aqui, ali ou acolá. Aliás, essa intensificação discursiva, em torno da reverberação do ódio, acaba elevando a hostilidade ao nível de caminho único para a convivência e a coexistência humana.

Acontece que esse processo conduz a sociedade a um silenciamento coletivo, em nome do medo.  Os indivíduos começam a construir, ainda que subjetiva e metaforicamente, os seus muros, os seus guetos, as suas bolhas, as suas ilhas. De modo que somente nesses ambientes predeterminados é que eles se sentem confortáveis para ser, para existir. Ainda que, muitas vezes, pisando em ovos para evitar quaisquer abalos ou rupturas ao seu pertencimento e aceitação social.

Lembrei-me, então, do que escreveu Mia Couto em seu livro O último voo do flamingo (2022), “A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda”. Esse silenciar, dentro do cenário social, não deixa de ser uma práxis mórbida de gestação do ódio. Se você ainda não leu, ou assistiu ao filme, “O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA”, de Angie Thomas, penso deveria fazê-lo. Trata-se de uma obra que aborda especificamente essa dimensão do assunto.

Queiramos ou não admitir, é dentro desse viés que a raça humana está inserida, nesse exato momento. Estamos, até certo ponto, reféns do ódio! Porém, “Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão” (Eduardo Galeano - O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002). Cabe, então, a cada ser humano entender e absorver que “Não importa de onde vim, mas, sim, aonde quero chegar” (Eduardo Galeano - escritor e jornalista uruguaio).

Afinal de contas, a lição que está posta é: “Nada mais civilizado do que saber conviver com as diferenças”; pois, “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade.” (Gloria Kalil – jornalista brasileira). Ignorar essa ideia é permitir, abertamente, que o ódio prospere, na medida em que “Basta que um homem odeie outro para que o ódio ganhe a pouco e pouco a humanidade inteira” (Jean-Paul Sartre – escritor e filósofo francês).


#PLDADEVASTAÇÃO

segunda-feira, 26 de maio de 2025

É preciso atenção às opiniões que se relativizam abruptamente ...


É preciso atenção às opiniões que se relativizam abruptamente ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É de conhecimento público que a Direita e seus matizes, especialmente, a ultradireita, se utilize de diferentes estratégias de propaganda para alcançar seus objetivos. No entanto, na Terra Brasilis, o setor cultural não só foi abandonado, durante o último governo desse espectro político-partidário, como foi sumariamente desconstruído sob forte fogo cruzado entre ofensas e acusações. Algo que não só causou repulsa, por parte da população; mas, também, evidenciou o enorme desconhecimento daquele governo sobre a chamada Economia Criativa.

Para quem desconhece o significado, trata-se de um setor da economia nacional voltado a valorizar a criatividade, o conhecimento e a inovação, promovendo a geração de recursos em termos econômicos e sociais. Portanto, me refiro às artes plásticas, design, música, moda, teatro, cinema, ...  e demais áreas que utilizam a criatividade para o desenvolvimento de produtos, serviços e experiências socio inovadoras.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), “O setor cultural está entre os setores que mais crescem no mundo, respondendo por 6,1% da economia mundial. A indústrias culturais e criativas produzem um faturamento anual de US$ 2,25 bilhões e quase 30 milhões de empregos no mundo, e fornecem trabalho para mais pessoas com idade entre 15 e 29 anos do que qualquer outro setor” 1.

Daí a imensa surpresa ao me deparar com a notícia de que um dos players do mercado financeiro, representante da ultradireita nacional, tem em sua mesa uma proposta para financiar a campanha do grande sucesso brasileiro, em Cannes 2, e tentar emplacá-lo no Oscar, em 2026. Bem, não se trata de um eventual “Mea culpa”, depois dos anos em que se dispuseram a empregar seus discursos em favor de uma avalanche de ataques ao setor cultural, inclusive, em relação à Lei Rouanet (Lei n.º 8.313/1991), liderada pela Direita e seus matizes mais radicais e extremistas, no país.   

O filme RAÇA (Race) 3, de 2016, baseado na história de Jesse Owens, o maior representante do atletismo da história, durante o cenário mundial das Olimpíadas de 1936, na Alemanha nazista, traz um aspecto importante sobre esse assunto.  Na época, o governo alemão, na figura do Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, pretendia transformar aqueles Jogos Olímpicos em uma vitrine da superioridade ariana, através das lentes de uma jovem cineasta.

Isso significa a utilização do setor cultural, no caso o cinema, para servir aos interesses de ampliação da popularidade governamental junto a uma sociedade. Certos governos; sobretudo, aqueles de viés autoritário e fascista, enxergam nesse caminho uma estratégia perfeita para capitalizar apoio e credibilidade à sua ideologia. Não é difícil de entender que pessoas/empresas dispostas a patrocinar financeiramente produtos ou serviços desenvolvidos a partir da Economia Criativa, promovem de maneira objetiva e subjetiva uma percepção muito positiva sobre o seu próprio espectro político-partidário.

É claro, que o país torce para mais uma onda de premiações internacionais para o cinema! Para que isso aconteça, de fato, é necessário a existência dos apoiadores e/ou patrocinadores, tornando possível essa longa empreitada. Colocar um filme em cenário internacional competitivo é tarefa hercúlea e onerosa. Mas, não posso deixar de apontar a minha preocupação quanto ao que possa estar oculto nas entrelinhas das negociações; sobretudo, considerando uma mudança de opinião tão radical, da Direita e seus matizes, especialmente, a ultradireita, em relação à Cultura. Afinal, como diz o provérbio popular, “quando a esmola é demais, o santo desconfia”!

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Sebastião Salgado (1944 – 2025)


Sebastião Salgado (1944 – 2025)

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já dizia o médico e escritor João Guimarães Rosa que a vida quer da gente coragem. Mas, nem sempre, se trata de uma coragem heroica, de grandes feitos. Muitas vezes, é na simplicidade que ela se permite revelar. E foi assim, de maneira quase inusitada, com Sebastião Salgado.

Graduado em Economia, pela Universidade do Espírito Santo, e Mestre pela Universidade de São Paulo, a sua coragem teve o seu desabrochar pelas linhas tortas da Ditadura Militar, no Brasil. Mudou-se para Paris, em companhia da sua esposa, a arquiteta e ambientalista Lélia Deluiz Wanick, onde fez o seu Doutorado.

Hipnotizado pela lente de uma câmera fotográfica, adquirida por Lélia, para registro de trabalhos arquitetônicos, Sebastião Salgado incorporou a fotografia como hobby, durante um projeto sobre a cultura do café, o qual participou em razão do seu trabalho como secretário para a Organização Internacional do Café, em Londres.

Daquele momento em diante, no mais absoluto ato de coragem, ele se desvencilhou da Economia para seguir o chamado da Fotografia. Se revelava, então, o mais extraordinário fotógrafo documental e fotojornalista, de todos os tempos, da história brasileira. É certo que o conhecimento acadêmico propiciado pelo curso de Economia e sua complementação, através de Mestrado e Doutorado, não esteve distante ou alheio a essa mudança.

Pelo olhar das Ciências Econômicas se tem uma percepção muito interessante do mundo e das relações sociais; embora, tantas vezes, marcada pelas atrocidades existentes em um planeta tão desigual e perverso. De modo que a fotografia lhe caiu como uma luva, no sentido de refinar e aprimorar essa dialogia silenciosa da observação. Afinal de contas, na práxis fotográfica, “Se você só vê o que é óbvio, você não verá nada” (Ruth Bernhard - fotógrafa americana de origem alemã).

Então, movido por um misto de razão e sensibilidade, ele se permitiu levar pelas lentes da sua câmera, aos mais diferentes lugares do planeta, a partir de projetos que duravam anos para serem executados. A fotografia de Sebastião Salgado é, na verdade, um processo de imersão sociológica, que tinha uma necessidade de transpor a fronteira da imagem para captar as sutilezas de uma linguagem não-verbal, quase imperceptível. Era como se ele demandasse entender os silêncios e toda a expressão corporal e paisagística, refletida em emoções e sentimentos.

Suas fotografias jamais foram, apenas, imagens. Existe em cada uma delas um compromisso subliminar de comunicação e interação com o mundo, a fim de propiciar a transmissão de mensagens, de valores sociocomportamentais e de elementos socioculturais. O que as torna, de algum modo, além dos limites do tempo. Da mesma maneira, que o seu trabalho ambiental, em companhia de sua esposa Lélia, à frente do Instituto Terra 1.

Na visão dele, “Justiça ecológica é responsabilizar nossa sociedade consumista pela destruição do planeta e de seu patrimônio ambiental. Nosso consumo está destruindo tudo. Conhecimento ecológico é reconhecer que somos feitos de uma mesma natureza, que somos parte da biodiversidade. Este é o entendimento mais importante da ecologia” 2. Ideias que também se inserem na sua construção fotográfica, na medida em que através dela “Constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada” (Sebastião Salgado 3).

Nesse sentido é que, cada indivíduo diante de uma foto de Sebastião Salgado, à revelia do recorte temporal, se sente desafiado a pensar. Afinal, nelas existe a pobreza, a guerra, o deslocamento forçado, a ambição, a destruição, a beleza, a natureza, a fauna, a flora, o ser humano, a infância, a velhice, enfim ... O retrato de um mundo que nos possibilita questionar e relativizar a sua concepção evolutiva.

Segundo ele próprio afirmou, “Minhas fotografias são um vetor entre o que acontece no mundo e as pessoas que não têm como presenciar o que acontece. Espero que a pessoa que entrar numa exposição minha não saia a mesma”. No entanto, ele chegou a destacar que “Só os fotógrafos têm o direito de duvidar. Quando vamos a todas essas regiões do mundo, enfrentando todos os problemas e desafios que você pode imaginar, nos perguntamos: sobre ética, legitimidade, segurança. E cabe a nós encontrar a resposta, sozinhos” (Sebastião Salgado 4).

E sem saber que se despediria, dessa existência, aos 81 anos, ele deixou algumas palavras em tom de desabafo: “É uma pena vivermos apenas 80 ou 90 anos no máximo. Se pudéssemos viver mil anos, seríamos capazes de entender nosso planeta mil vezes melhor, e viver de outra forma”; pois, “Eu descobri que as maiores viagens que fiz na vida foram dentro de mim mesmo” (Idem 4).



2 Syed, Sabrina. Interview with Sebastião Salgado. The Architectural Review, 14 out. 2021.

3 Sebastião Salgado: retratista dos povos e de suas lutas. A Verdade, 26 fev. 2016.

4 Y-Jean Mun-Delsalle. Sebastião Salgado: “Já Tive Vergonha de Ser Fotógrafo e Fazer Parte da Espécie Humana”. Forbes, 22 mai. 2025.