O
essencial e o supérfluo
Por Alessandra
Leles Rocha
Dois pesos e um milhão de medidas.
Essa é a receita rançosa que os descendentes diretos da herança colonial
brasileira empregam, quando almejam defender seu conjunto histórico de regalias
e privilégios. Haja vista a proposta do corte de gastos, pelo governo federal,
sob imensa pressão de representantes e simpatizantes da direita nacional e de
seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.
Para essa gente, o que importa é o
topo da pirâmide social. O resto é, literalmente, resto. E esse é um pensamento
velho e roto! Na história do mundo, as camadas mais frágeis e vulneráveis das sociedades
sempre foram alvo preferencial da sanha econômica das elites dominantes. Figurando
à beira da indignidade, como os verdadeiros pagadores de impostos.
Não é à toa que, um belo dia,
viu-se acontecer a primeira revolução popular da história, a Revolução Francesa!
O limite da espoliação social culminou na insurreição popular. A desigualdade
social afrontou a tirania dos poderosos. De repente, a liberdade, a igualdade e
a fraternidade invadiram as ruas de Paris, no século XVIII, para jamais serem
esquecidas.
E mesmo, com todos os esforços da
Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, para silenciar
os arroubos populares pela Europa, o precedente havia sido aberto. A discussão,
a reflexão, a crítica, sobre as relações sociais estavam postas para sempre. Um
lampejo de visibilidade havia sido ofertado às camadas populares. Desde esse
momento, então, a luta contra as desigualdades sociais vem sendo travada, mundo
afora.
No Brasil, com sua historicidade
colonial muito bem marcada, não poderia ser diferente. O modelo social não foi
alterado a partir da ruptura da condição de ex-colônia de exploração
portuguesa. Os herdeiros diretos da monarquia e da burguesia permaneceram
repetindo os mesmos valores, crenças, princípios e protocolos, presentes entre
os séculos XVI e XIX. O que significa que as camadas populares permaneceram
alijadas dos seus direitos humanos e cidadãos.
De modo que é dessa conjuntura
que emerge o ódio da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais
radicais e extremistas, contra a esquerda. Que ultrapassa as fronteiras e
limites das divergências ideológicas para alcançar um desejo incontrolável de
banimento social de determinados indivíduos. Algo que se materializa pelas
atitudes contínuas de reafirmação da necropolítica 1,
no país. Relembrando a sabedoria poética de Chico Buarque, “Por esse pão pra
comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra
sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague ...” 2.
Então, quando se tenta
inviabilizar um governo de esquerda, tomando como alvo o enrijecimento dos seus
recursos econômicos, segundo os parâmetros e perspectivas impostos pelas forças
direitistas, se estabelece uma inviabilização dos projetos de políticas
públicas. De maneira simplista, o tensionamento impositivo para cortes de
gastos profundos, sob pretexto de equilíbrio fiscal do país, não passa, na
verdade, de uma camada da necropolítica.
Afinal de contas, quando observados
os detalhes e as entrelinhas desses cortes, ficam evidentes todos os tipos de
desigualdade. As camadas mais frágeis e vulneráveis irão pagar pelo ônus dos
seus prejuízos sociais, na medida em que suas históricas demandas e mazelas
permanecerão à margem de qualquer solução concreta e efetiva. Demonstrando como
os cortes de gastos governamentais têm sim, um caráter de impedir qualquer melhoria
que possa desencadear esperança de uma futura mobilidade social.
Além disso, atingir as políticas
públicas através de cortes orçamentários profundos representa uma maneira sutil
de esgarçá-las até o ponto de se chegar a um discurso justificante para privatizar
questões de suma importância social.
Saúde. Educação. Segurança. ... Levando à uma precarização total da dignidade
humana e, por consequência, inevitável, do país.
Infelizmente, não é de se espantar
que as políticas públicas sejam entendidas como gastos. Porque a história política
e social brasileira foi constituída invisibilizando parcelas inteiras da população.
Os direitos, os poderes, as regalias e os privilégios eram de propriedade
exclusiva das elites nacionais, dos donos dos meios de produção, das
oligarquias. Como uma herança que se transmitiu de geração em geração até os
dias atuais.
Mas, observando com total atenção
a realidade contemporânea, fico me questionando quanto ao estrabismo
intelectual dessas pessoas, ao não perceberem que o engessamento econômico que
estão impondo, tão severamente, pode ruir, não pelas demandas populares; mas,
pela força impetuosa dos agentes imponderáveis que rondam o planeta. Suas certezas
podem virar fumaça, de uma hora para outra, à revelia de suas vontades e quereres.