sexta-feira, 30 de maio de 2025

PL 320/2025 - O mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas?


PL 320/2025 - O mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Afinal, o mundo está, ou não, sob o impacto de emergências climáticas? O motivo da pergunta é o Projeto de Lei (PL) 320/2025, aprovado pela Comissão de Agricultura (CRA) do Senado brasileiro, que “autoriza a renegociação de até R$ 60 bilhões em dívidas de produtores rurais impactados por eventos climáticos extremos desde 2021” 1. Afinal de contas, entre os nobres legisladores da República, uma parcela bastante significativa é enfaticamente negacionista em relação aos eventos extremos do clima.

Assim, por uma coerência ética, é fundamental que eles esclareçam os fatos. Especialmente, considerando que o texto desse PL prevê a securitização dessas dívidas, convertendo-as em títulos garantidos pelo Tesouro Nacional, com prazos de até 20 anos e carência de três anos para o início dos pagamentos. A redução das taxas de juros, que poderão variar entre 1% e 3% ao ano, além de bônus por adimplência e prorrogação automática das prestações em caso de novos desastres naturais. A criação de uma linha especial de crédito pelo BNDES, com juros de até 5% ao ano, voltada à recuperação de solos e sistemas de irrigação.

Considerando o velho ranço colonial brasileiro, não é de se espantar que esse PL se mostre visivelmente uma homogeneização da questão, abstendo-se de uma análise criteriosa, dentro do espectro do agronegócio nacional, a fim de estabelecer aqueles produtores verdadeiramente impossibilitados de enfrentarem autonomamente os impactos causados por eventos climáticos.  O que significa abranger a todos, sem distinção; mas, beneficiando direta e prioritariamente a elite representada pelos grandes proprietários de terras, no país. Sem contar, que não há quaisquer menções no sentido de estabelecer uma contrapartida, em termos de ações socioambientalmente responsáveis e capazes de uma mitigação sistemática às emergências climáticas.

Queiram ou não admitir, tal ideia representa um poço sem fundo. Haja vista que a manutenção do descompromisso em relação às políticas de desenvolvimento sustentável, as quais se alicerçam pelo tripé do crescimento econômico, da inclusão social e da proteção ambiental, fará desse PL um veio de desperdício orçamentário, sem precedentes. É preciso entender que toda atividade econômica tem os seus riscos inerentes. No caso do agronegócio, independentemente do recrudescimento das mudanças climáticas, as condições naturais em si, já representam um risco. Obter benefícios governamentais sem assumir compromissos e responsabilidades para o enfrentamento da nova realidade climática global é simplesmente imoral.

Sobretudo, porque quaisquer que sejam os montantes de recursos capitais empenhados, por si só eles não têm quaisquer capacidades de reversão dos agravos no quadro ambiental vigente. A máquina do agronegócio depende, necessariamente, da manutenção do equilíbrio ecossistêmico. De modo que a superexploração de recursos naturais, como irrigação excessiva, desmatamento, utilização de queimadas e contaminação do solo por agentes poluidores, gera impactos negativos, comprometendo a sustentabilidade e a viabilidade das atividades do setor. No caso específico das temperaturas extremas e dos eventos climáticos, cada vez mais frequentes, eles tensionam diretamente a capacidade produtiva, gerando oscilações de mercado, ou seja, variações de preços, lei da oferta e da procura e mudanças nas políticas de comércio exterior 2.

Ao que tudo indica, então, o PL 320/2025 não só se abstém do apoio e do engajamento às políticas de desenvolvimento sustentável, para o setor do agronegócio; mas, também, da preocupação com a suficiência da produção nacional e, por consequência, com a segurança alimentar da população. Aliados e simpatizantes ao setor do agronegócio, no legislativo federal brasileiro, estão sim, preocupados com a manutenção das suas regalias e privilégios históricos ainda que isso signifique se beneficiar de recursos governamentais apesar do cenário improdutivo, ou de baixa produção, decorrente do seu arraigamento ideológico negacionista.   


quinta-feira, 29 de maio de 2025

Qual é a sua visão de DESENVOLVIMENTO?


Qual é a sua visão de DESENVOLVIMENTO?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A contemporaneidade tem nos imposto uma análise reflexiva, a qual precisa dissecar camada por camada dos fatos e acontecimentos, para ser efetivamente compreensível. Talvez, por isso, a grande maioria das pessoas não se disponha a atuar nesse sentido, porque isso demanda algum tempo. Quando o assunto diz respeito às questões socioambientais, isso fica muito evidente!

Para início de conversa, é impossível entrar nessa seara, desconsiderando os impactos que o DESENVOLVIMENTO, impulsionado pelas Revoluções Industriais, apresenta. É certo que, nos idos do século XVIII, não se dispunha de uma compreensão ampla e aprofundada a respeito das reverberações e consequências que emergiriam da industrialização.

No entanto, seus apoiadores e financiadores se apressaram a propagar, de maneira maciça, uma visão idealizada e enviesada do assunto. O que significava estar alinhada a contemplar prioritariamente os benefícios, invisibilizando e/ou excluindo os malefícios. E esse é o ponto chave, que atormenta a realidade contemporânea.

As acaloradas e desrespeitosas discussões, que vêm acontecendo, nos últimos dias, no cenário político-partidário nacional, é prova cabal dessa situação1. A visão dissociativa entre DESENVOLVIMENTO, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE, revela como esse discurso foi secularmente moldado no inconsciente coletivo.

Com base na própria historicidade nacional, ou seja, o Brasil como ex-colônia de exploração da metrópole portuguesa, se entende por quais caminhos a noção de DESENVOLVIMENTO foi formulada, no país. Um DESENVOLVIMENTO voltado exclusivamente para a produção de riqueza, de lucro. Algo que, diante do passar do tempo, foi justificado por um fim. Qual seria ele? A geração de emprego e renda, o que para um país, com uma flagrante desigualdade socioeconômica, parece bastante convincente.

Só que não. Basta um breve passar de olhos pelos veículos de informação e de comunicação, diariamente, para ser confrontado com as marcas das desigualdades nacionais. Um sinal claro de que o DESENVOLVIMENTO, por aqui, dentro desses moldes, permanece satisfazendo aos interesses diretos das elites e seus meios de produção.

Por essas e por outras, esses indivíduos estão se manifestando de maneira belicosamente histriônica. A histórica conquista brasileira, a qual parecia se consagrar como uma reparação à irracionalidade dos ciclos exploratórios ocorridos no país, o LICENCIAMENTO AMBIENTAL não só impõe uma nova visão de DESENVOLVIMENTO; mas, incomoda a permanência das velhas práxis garantidoras dos interesses desse estrato social.

Vejam, a ausência de licenças para instalação, ampliação, modificação e operação de atividades que utilizam recursos naturais ou que podem causar impactos ambientais, é uma obstaculização gratuita ao DESENVOLVIMENTO. Com base nos exemplos retratados nos filmes MINAMATA (2021) 2, O PREÇO DA VERDADE (2019) 3 e ERIN BROCKOVICH (2000) 4, se torna facilmente compreensível o papel fundamental das licenças ambientais para evitar consequências e desdobramentos irreparáveis, capazes de impactar negativamente outros setores da sociedade.

Licenças ambientais não se baseiam em ideologias! Elas são instrumentos de natureza técnico-científica. Seu objetivo primordial é garantir a compatibilidade entre o desenvolvimento econômico-social e a proteção do meio ambiente, a partir da regulamentação das atividades que possam ser direta e/ou indiretamente causadoras de impactos negativos, inclusive, letais.

Mesmo com sua existência, no Brasil, não podemos jamais esquecer de episódios como os ocorridos em Mariana (2015) e em Brumadinho (2019). Cujos processos judiciais ainda se arrastam, repercutindo o sofrido e angustiante desalento dos atingidos; bem como, se mantêm expostos à força do poder capital dos responsáveis para não só postergar, mas inviabilizar as reparações e os ressarcimentos materiais estabelecidos pela Justiça.

Nada surpreendente se observado o modelo de DESENVOLVIMENTO presente na realidade brasileira, e que vem sendo defendido raivosa e estridentemente nos palcos político-representativos, a fim de gerar uma adesão social rasa e irreflexiva.  Relembrando Fernando Pessoa, o famoso poeta português, “O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte do desenvolvimento superior dela - em segui-la pois mimeticamente com uma insubordinação inconsciente e feliz”.

Assim, diante do cenário do século XXI, o que está em discussão é o DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, “o desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades” (Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega e líder internacional em desenvolvimento sustentável). O que significa que “A sustentabilidade é uma questão de vida ou morte para a humanidade” (Jacques Cousteau - oceanógrafo, cineasta e autor francês).

Lembre-se: “As letras e a ciência só tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelos que as amam e para os que as amam” (Piotr Kropotkin - geógrafo e escritor russo). Somente nesse contexto é que a sociedade entenderá as palavras de Mahatma Gandhi, advogado, nacionalista anticolonial e eticista político indiano, “Cada dia a natureza produz o suficiente para nossa carência. Se cada um tomasse o que lhe fosse necessário, não havia pobreza no mundo e ninguém morreria de fome”.



3 O Preço da Verdade - Dark Waters | Trailer Legendado - https://www.youtube.com/watch?v=02QZ4fFXaoU

4 Erin Brockovich 2000 Official Trailer - https://www.youtube.com/watch?v=IRPjTMbSEG0


terça-feira, 27 de maio de 2025

O mundo e o ódio


O mundo e o ódio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A saga humana sobre a Terra é sim, marcada pelas idas e vindas do seu fracasso civilizatório. Domar o instinto primitivo, o bárbaro que habita as profundezas da inconsciência humana, não é tarefa fácil! De vez em quando, sob ondas rompantes e tenebrosas, o lado escuro da força se manifesta. O exemplo da ocasião é o ódio. Em todas as suas formas. Sob todos os pretextos. Odiar no mundo virtual. No mundo real.  Odiar...

E apesar de não mudar em nada, no curso da própria história de quem odeia, ele o faz porque o senso deturpado do individualismo lhe aponta esse tipo de comportamento como uma forma de poder. A ideia de poder odiar o outro resulta uma satisfação, um sentimento de coragem infracional, de superioridade social. Mas, não é só isso. O ódio ao outro exerce sempre a função de evitar que se enxergue a própria imagem, na sua devida dimensão factual.  

Assim, a pseudoideia de superioridade, de força, de capacidade, ... se mantém inabalável no indivíduo. Segundo o escritor tcheco Milan Kundera, “O valor de um ser humano reside na capacidade de ir além de ele próprio, de sair de dentro de si próprio, de existir dentro de si próprio e para as outras pessoas”. Talvez, por isso, o ódio seja tão importante para uns e outros, por aí.

Não é à toa que estudiosos no campo do comportamento identificaram a explosão do interesse e do compartilhamento do ódio nas mídias sociais. O ódio lidera na capitalização de recursos. De modo que, na busca de engajamento nesses espaços virtuais, a opção pela disseminação da paleta de manifestações odiosas cresce tão vertiginosamente.  Algo que vem fragmentando a dinâmica existencial em pequenos pretextos para a deflagração do ódio. Racismo. Xenofobia. Homo e Transfobia. Sexismo. Misoginia. Etarismo. Gordofobia. Aporofobia. Classismo. Capacitismo. Intolerância Religiosa. ...   

Daí o ódio ser cada vez mais atemporal e amplo na sua distribuição socioespacial. Não há um dia sequer em que os veículos de informação e de comunicação, tradicionais e alternativos, não exibam registros de ódio aqui, ali ou acolá. Aliás, essa intensificação discursiva, em torno da reverberação do ódio, acaba elevando a hostilidade ao nível de caminho único para a convivência e a coexistência humana.

Acontece que esse processo conduz a sociedade a um silenciamento coletivo, em nome do medo.  Os indivíduos começam a construir, ainda que subjetiva e metaforicamente, os seus muros, os seus guetos, as suas bolhas, as suas ilhas. De modo que somente nesses ambientes predeterminados é que eles se sentem confortáveis para ser, para existir. Ainda que, muitas vezes, pisando em ovos para evitar quaisquer abalos ou rupturas ao seu pertencimento e aceitação social.

Lembrei-me, então, do que escreveu Mia Couto em seu livro O último voo do flamingo (2022), “A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda”. Esse silenciar, dentro do cenário social, não deixa de ser uma práxis mórbida de gestação do ódio. Se você ainda não leu, ou assistiu ao filme, “O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA”, de Angie Thomas, penso deveria fazê-lo. Trata-se de uma obra que aborda especificamente essa dimensão do assunto.

Queiramos ou não admitir, é dentro desse viés que a raça humana está inserida, nesse exato momento. Estamos, até certo ponto, reféns do ódio! Porém, “Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão” (Eduardo Galeano - O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002). Cabe, então, a cada ser humano entender e absorver que “Não importa de onde vim, mas, sim, aonde quero chegar” (Eduardo Galeano - escritor e jornalista uruguaio).

Afinal de contas, a lição que está posta é: “Nada mais civilizado do que saber conviver com as diferenças”; pois, “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade.” (Gloria Kalil – jornalista brasileira). Ignorar essa ideia é permitir, abertamente, que o ódio prospere, na medida em que “Basta que um homem odeie outro para que o ódio ganhe a pouco e pouco a humanidade inteira” (Jean-Paul Sartre – escritor e filósofo francês).


#PLDADEVASTAÇÃO

segunda-feira, 26 de maio de 2025

É preciso atenção às opiniões que se relativizam abruptamente ...


É preciso atenção às opiniões que se relativizam abruptamente ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É de conhecimento público que a Direita e seus matizes, especialmente, a ultradireita, se utilize de diferentes estratégias de propaganda para alcançar seus objetivos. No entanto, na Terra Brasilis, o setor cultural não só foi abandonado, durante o último governo desse espectro político-partidário, como foi sumariamente desconstruído sob forte fogo cruzado entre ofensas e acusações. Algo que não só causou repulsa, por parte da população; mas, também, evidenciou o enorme desconhecimento daquele governo sobre a chamada Economia Criativa.

Para quem desconhece o significado, trata-se de um setor da economia nacional voltado a valorizar a criatividade, o conhecimento e a inovação, promovendo a geração de recursos em termos econômicos e sociais. Portanto, me refiro às artes plásticas, design, música, moda, teatro, cinema, ...  e demais áreas que utilizam a criatividade para o desenvolvimento de produtos, serviços e experiências socio inovadoras.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), “O setor cultural está entre os setores que mais crescem no mundo, respondendo por 6,1% da economia mundial. A indústrias culturais e criativas produzem um faturamento anual de US$ 2,25 bilhões e quase 30 milhões de empregos no mundo, e fornecem trabalho para mais pessoas com idade entre 15 e 29 anos do que qualquer outro setor” 1.

Daí a imensa surpresa ao me deparar com a notícia de que um dos players do mercado financeiro, representante da ultradireita nacional, tem em sua mesa uma proposta para financiar a campanha do grande sucesso brasileiro, em Cannes 2, e tentar emplacá-lo no Oscar, em 2026. Bem, não se trata de um eventual “Mea culpa”, depois dos anos em que se dispuseram a empregar seus discursos em favor de uma avalanche de ataques ao setor cultural, inclusive, em relação à Lei Rouanet (Lei n.º 8.313/1991), liderada pela Direita e seus matizes mais radicais e extremistas, no país.   

O filme RAÇA (Race) 3, de 2016, baseado na história de Jesse Owens, o maior representante do atletismo da história, durante o cenário mundial das Olimpíadas de 1936, na Alemanha nazista, traz um aspecto importante sobre esse assunto.  Na época, o governo alemão, na figura do Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, pretendia transformar aqueles Jogos Olímpicos em uma vitrine da superioridade ariana, através das lentes de uma jovem cineasta.

Isso significa a utilização do setor cultural, no caso o cinema, para servir aos interesses de ampliação da popularidade governamental junto a uma sociedade. Certos governos; sobretudo, aqueles de viés autoritário e fascista, enxergam nesse caminho uma estratégia perfeita para capitalizar apoio e credibilidade à sua ideologia. Não é difícil de entender que pessoas/empresas dispostas a patrocinar financeiramente produtos ou serviços desenvolvidos a partir da Economia Criativa, promovem de maneira objetiva e subjetiva uma percepção muito positiva sobre o seu próprio espectro político-partidário.

É claro, que o país torce para mais uma onda de premiações internacionais para o cinema! Para que isso aconteça, de fato, é necessário a existência dos apoiadores e/ou patrocinadores, tornando possível essa longa empreitada. Colocar um filme em cenário internacional competitivo é tarefa hercúlea e onerosa. Mas, não posso deixar de apontar a minha preocupação quanto ao que possa estar oculto nas entrelinhas das negociações; sobretudo, considerando uma mudança de opinião tão radical, da Direita e seus matizes, especialmente, a ultradireita, em relação à Cultura. Afinal, como diz o provérbio popular, “quando a esmola é demais, o santo desconfia”!

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Sebastião Salgado (1944 – 2025)


Sebastião Salgado (1944 – 2025)

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já dizia o médico e escritor João Guimarães Rosa que a vida quer da gente coragem. Mas, nem sempre, se trata de uma coragem heroica, de grandes feitos. Muitas vezes, é na simplicidade que ela se permite revelar. E foi assim, de maneira quase inusitada, com Sebastião Salgado.

Graduado em Economia, pela Universidade do Espírito Santo, e Mestre pela Universidade de São Paulo, a sua coragem teve o seu desabrochar pelas linhas tortas da Ditadura Militar, no Brasil. Mudou-se para Paris, em companhia da sua esposa, a arquiteta e ambientalista Lélia Deluiz Wanick, onde fez o seu Doutorado.

Hipnotizado pela lente de uma câmera fotográfica, adquirida por Lélia, para registro de trabalhos arquitetônicos, Sebastião Salgado incorporou a fotografia como hobby, durante um projeto sobre a cultura do café, o qual participou em razão do seu trabalho como secretário para a Organização Internacional do Café, em Londres.

Daquele momento em diante, no mais absoluto ato de coragem, ele se desvencilhou da Economia para seguir o chamado da Fotografia. Se revelava, então, o mais extraordinário fotógrafo documental e fotojornalista, de todos os tempos, da história brasileira. É certo que o conhecimento acadêmico propiciado pelo curso de Economia e sua complementação, através de Mestrado e Doutorado, não esteve distante ou alheio a essa mudança.

Pelo olhar das Ciências Econômicas se tem uma percepção muito interessante do mundo e das relações sociais; embora, tantas vezes, marcada pelas atrocidades existentes em um planeta tão desigual e perverso. De modo que a fotografia lhe caiu como uma luva, no sentido de refinar e aprimorar essa dialogia silenciosa da observação. Afinal de contas, na práxis fotográfica, “Se você só vê o que é óbvio, você não verá nada” (Ruth Bernhard - fotógrafa americana de origem alemã).

Então, movido por um misto de razão e sensibilidade, ele se permitiu levar pelas lentes da sua câmera, aos mais diferentes lugares do planeta, a partir de projetos que duravam anos para serem executados. A fotografia de Sebastião Salgado é, na verdade, um processo de imersão sociológica, que tinha uma necessidade de transpor a fronteira da imagem para captar as sutilezas de uma linguagem não-verbal, quase imperceptível. Era como se ele demandasse entender os silêncios e toda a expressão corporal e paisagística, refletida em emoções e sentimentos.

Suas fotografias jamais foram, apenas, imagens. Existe em cada uma delas um compromisso subliminar de comunicação e interação com o mundo, a fim de propiciar a transmissão de mensagens, de valores sociocomportamentais e de elementos socioculturais. O que as torna, de algum modo, além dos limites do tempo. Da mesma maneira, que o seu trabalho ambiental, em companhia de sua esposa Lélia, à frente do Instituto Terra 1.

Na visão dele, “Justiça ecológica é responsabilizar nossa sociedade consumista pela destruição do planeta e de seu patrimônio ambiental. Nosso consumo está destruindo tudo. Conhecimento ecológico é reconhecer que somos feitos de uma mesma natureza, que somos parte da biodiversidade. Este é o entendimento mais importante da ecologia” 2. Ideias que também se inserem na sua construção fotográfica, na medida em que através dela “Constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada” (Sebastião Salgado 3).

Nesse sentido é que, cada indivíduo diante de uma foto de Sebastião Salgado, à revelia do recorte temporal, se sente desafiado a pensar. Afinal, nelas existe a pobreza, a guerra, o deslocamento forçado, a ambição, a destruição, a beleza, a natureza, a fauna, a flora, o ser humano, a infância, a velhice, enfim ... O retrato de um mundo que nos possibilita questionar e relativizar a sua concepção evolutiva.

Segundo ele próprio afirmou, “Minhas fotografias são um vetor entre o que acontece no mundo e as pessoas que não têm como presenciar o que acontece. Espero que a pessoa que entrar numa exposição minha não saia a mesma”. No entanto, ele chegou a destacar que “Só os fotógrafos têm o direito de duvidar. Quando vamos a todas essas regiões do mundo, enfrentando todos os problemas e desafios que você pode imaginar, nos perguntamos: sobre ética, legitimidade, segurança. E cabe a nós encontrar a resposta, sozinhos” (Sebastião Salgado 4).

E sem saber que se despediria, dessa existência, aos 81 anos, ele deixou algumas palavras em tom de desabafo: “É uma pena vivermos apenas 80 ou 90 anos no máximo. Se pudéssemos viver mil anos, seríamos capazes de entender nosso planeta mil vezes melhor, e viver de outra forma”; pois, “Eu descobri que as maiores viagens que fiz na vida foram dentro de mim mesmo” (Idem 4).



2 Syed, Sabrina. Interview with Sebastião Salgado. The Architectural Review, 14 out. 2021.

3 Sebastião Salgado: retratista dos povos e de suas lutas. A Verdade, 26 fev. 2016.

4 Y-Jean Mun-Delsalle. Sebastião Salgado: “Já Tive Vergonha de Ser Fotógrafo e Fazer Parte da Espécie Humana”. Forbes, 22 mai. 2025.  

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Projeto de Lei (PL) 2.159/2021


Projeto de Lei (PL) 2.159/2021

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

BRASIL. O país recebeu esse nome por conta da espécie vegetal Paubrasilia echinata (Pau-Brasil), uma árvore endêmica da Mata Atlântica brasileira, a qual despertou imenso interesse dos colonizadores portugueses, no século XVI, pela madeira vermelha utilizada para tingir tecidos. É dessa forma que teve início o processo de colonização de exploração, o qual foi submetido o nosso país.

Não só o Pau-Brasil, mas inúmeras outras madeiras-de-lei, tais como o ipê, o mogno, o cedro, o jatobá, o jacarandá, a cabreúva e a peroba, deram o pontapé inicial para o ganho econômico imediato da Metrópole portuguesa. Diante da ausência de legislação regulamentadora para a exploração, na época, o que se viu foi o rápido processo de extinção de inúmeros representantes da flora nacional e, por consequência, da fauna.

Daí a necessidade de recapitular a historicidade brasileira para compreender a realidade contemporânea. O Senado aprovou, ontem, 21 de maio de 2025, o desmonte do licenciamento ambiental no país. Trata-se não apenas do maior ataque à legislação ambiental das últimas quatro décadas; mas, da reafirmação das velhas práxis colonialistas do século XVI. Isso significa que o Brasil não aprendeu absolutamente nada, nesses pouco mais de 500 anos de história.

Com a diferença de que, durante o colonialismo, as decisões e escolhas foram tomadas à revelia da população e sem quaisquer bases técnicas e científicas de proteção ambiental; hoje, em pleno século XXI, a subserviência, a submissão, a subordinação, a irresistência aos interesses internacionais, ocorre de maneira voluntária, a fim de garantir a manutenção das regalias, dos privilégios, dos interesses e dos poderes das elites dominantes locais. Portanto, a exploração acontece de caso pensado, na expressão mais realista e abjeta do viralatismo nacional.

É certo que a exata compreensão dos impactos socioambientais negativos, oriundos das práxis exploratórias da colonização, só foram compreendidos alguns séculos depois, com o avanço das ciências naturais e ambientais. Mas, de posse de tamanho conhecimento já consolidado, é de se espantar a insistência e a persistência em se manter na contramão da evolução social.

Bastaria pensar que o planeta Terra possui aproximadamente 8,09 bilhões de pessoas e que o recrudescimento das ações antrópicas, incluindo a exploração dizimatória dos recursos naturais, inviabiliza a sobrevivência em condições minimamente favoráveis. Pois, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), “a interrupção do desmatamento em todo o mundo poderia evitar a emissão de cerca de 3,6 gigatoneladas (Gt) de dióxido de carbono equivalentes (CO2e) por ano entre 2020 e 2050, incluindo cerca de 14% do que é necessário até 2030 para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C. Já a restauração de 1,5 bilhão de hectares de terras degradadas e o aumento da cobertura arbórea poderia aumentar a produtividade agrícola em mais de 1 bilhão de hectares, retirando até 1,5 GtCO2e por ano até 2050. Além disso, a construção de cadeias de valor verde que apoiem a floresta em pé ajudaria a atender à demanda futura por materiais, além de viabilizar economias sustentáveis com mais oportunidades de emprego e meios de subsistência mais seguros” 1.

No início desse mês, durante a 20ª Sessão do Fórum de Florestas, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), foi reafirmada a necessidade de reconhecimento das conexões entre desmatamento e pobreza, desenvolvimento industrial, demanda por alimentos, energia e mudanças climáticas, para que estratégias de reversão do desmatamento, do aumento de áreas manejadas de forma sustentável, e de fortalecimento das estruturas de governança florestal e de aplicação da lei, possam garantir a sobrevivência humana no planeta.

Há um provérbio do povo Cree (Nehiyaw), indígenas norte-americanos habitantes principalmente no Canadá, que diz: “Somente após a última árvore ser cortada, o último rio ser envenenado e o último peixe ser pescado. Somente então o homem descobrirá que o dinheiro não pode ser comido”. Essa é a conclusão óbvia diante do avanço das práxis de exploração dizimatória, na contemporaneidade.

Só se mantém o equilíbrio ecossistêmico quando os componentes bióticos - plantas, animais, fungos e bactérias - e abióticos - água, luz, solo, clima e temperatura - interagem e estão inseparavelmente relacionados. Diante da intensificação das ações antrópicas, a ruptura desse equilíbrio tende, inevitavelmente, a promover consequências e desdobramentos severos e irreparáveis às diferentes populações e objetivos econômicos. Como dizia Sêneca, filósofo estoico da Roma Antiga, “Para a ganância, toda a natureza é insuficiente”.

Assim, parafraseando as palavras de Bill Mollison, biólogo, agricultor e ambientalista australiano, o problema das práxis de desenvolvimento atual, é que não se trata de um sistema voltado para atender as demandas prioritárias dos seres humanos, e sim para a produção de dinheiro. Nesse sentido, cada dia a mais é um a menos na corrida pela sobrevivência. Está posto a prova se o instinto de sobrevivência humana existe ou não.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

O mundo e seus lados

O mundo e seus lados

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Século XXI. A história do mundo parece redesenhar o velho ideário proposto pela ultradireita. Dessa vez, a expansão ultradireitista tem como objetivo primordial conter os avanços geopolíticos e econômicos da China. O que explica o enorme interesse estadunidense em fomentar sua ingerência sobre os países da América Latina, por exemplo. Algo que não parece tão complicado, tendo em vista o alinhamento histórico das elites latino-americanas aos EUA, como aconteceu no Brasil, em 1964.

O preço do colonialismo no mundo é alto, como pode se ver! As elites não entendem que a reprodução de antigos padrões pode significar o caminho da sua própria ruína. Elas próprias sabem muito bem que o exercício de dominação sobre outros, geralmente com o objetivo de controle político, econômico e cultural, leva ao descarte quando não se mostra mais necessário. Afinal, os interesses dominadores se sobrepõe aos interesses dos dominados.

E olhando para o contexto atual, há muito a perder. Enquanto os estadunidenses se voltaram para um modelo de enriquecimento estruturado sobre a especulação financeira, os mercados de ações, em detrimento do perfil histórico do desenvolvimento industrial e científico, consequências como a redução do comércio internacional, as crises econômicas e o desemprego, tornaram-se uma realidade amarga para conviver.

Na contramão desse panorama, a China tem se dedicado, há décadas, a um processo de hipervalorização do conhecimento técnico-científico para o aprimoramento, ampliação e diversificação da sua produção industrial, de modo a constituir um mercado competitivo dentro da geopolítica. Haja vista a nova rota da seda que pretende aproximar a China do mundo exterior com investimentos e projetos de infraestrutura. Portanto, a China atingiu um dos seus principais objetivos, ou seja, ampliar a sua influência.

Mesmo não tendo revertido a orientação ideológica para o Ocidente de muitos países, as suas conquistas, mundo afora, incomodam e desconfortam os representantes da ultradireita; sobretudo, os EUA. Seja objetiva ou subjetivamente, os governos estrangeiros tendem, de algum modo, a se sentirem pressionados a seguir a agenda de Pequim, a fim de evitar a retirada de investimentos chineses dos seus países.

Daí, valendo-se da política do caos, da instabilidade, das ameaças e do medo, verifica-se o recrudescimento ultradireitista, no cenário global. Ora, “Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são” (Marilena Chauí – filósofa e professora de Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo - USP). Por isso, o discurso franco da ultradireita tem deixado evidente a sua disposição em jogar pesado, inclusive, interferindo nas escolhas eleitorais de muitos países.

Não é preciso ser nenhum expert, para entender, por exemplo, como a visita do governo brasileiro à China causou uma resposta estridente e raivosa, por parte dos ultradireitistas brasileiros, incluindo apoiadores e simpatizantes desse espectro político-partidário. Afinal de contas, esses indivíduos, historicamente, sempre estiveram alinhados e subservientes aos domínios do imperialismo ocidental. Sobretudo, o estadunidense.

O que significa que, apesar de toda a dinâmica de progresso e evolução social do mundo, eles insistem em permanecer trabalhando arduamente na manutenção da preservação desse status quo, mesmo diante de todos os rompantes histriônicos cometidos pelo governo dos EUA contra a economia global. Porque, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Michel Foucault - filósofo, teórico social, filólogo e crítico literário francês).

Feitas essas breves considerações, “Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa” (Michel Foucault). Afinal, “Somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos no guiar. E isto torna mais importantes nossas decisões, nossas escolhas” (Jean-Paul Sartre – filósofo e ativista político francês).

Esse é o ponto, “O que realmente importa na vida e no trabalho é se transformar em alguém diferente do que se era no começo” (Michel Foucault). Simplesmente, porque essa decisão nos impulsiona a ponderar sobre os prós e os contra, a tecer um retrospecto analítico profundo sobre a própria historicidade, com todas as suas perdas e ganhos. Uma compreensão que serve para pessoas, para coisas e para países, também. 


terça-feira, 20 de maio de 2025

Respeitável público!!!

Respeitável público!!!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Precisamos refletir sobre os dantescos espetáculos 1 que atravessam a recente historicidade brasileira, promovidos pela Direita e seus matizes, na tentativa de controlar e manipular a opinião pública a fim de desviar o foco do que realmente importa ao país.

Desde que foi lançado em 2020, o Pix - sistema de pagamentos instantâneos criado pelo Banco Central do Brasil – tem sido usado de forma apelativa, por inúmeros figurões da política nacional, para arrecadar recursos, com o objetivo de saldar dívidas processuais junto ao judiciário nacional.

Vamos e convenhamos que essa prática é repugnante. Elementos político-partidários se fazendo de vítima, junto aos seus simpatizantes e seguidores, é sim, de revirar o estômago. Distantes, anos luz, da realidade orçamentária, conhecida por aproximadamente 90% da população brasileira, essa gente vive sob o guarda-chuva de regalias e privilégios históricos nababescos. Imóveis e carros de alto luxo. Investimentos no exterior. Criação de gado e outras atividades do agronegócio. Enfim... Tudo o que não podem alegar é falta de recursos.

Afinal, eles existem a partir do contexto de uma realidade paralela, a qual têm como objetivo fundamental a sua preservação nesse microssistema. Tal qual fizeram outros tantos, quando o Brasil ainda era Colônia de Exploração da Metrópole portuguesa. São verdadeiros acumuladores de bens e capitais. Fazem de um tudo para garantir mais e mais recursos e assim, poderem dar as cartas nas mesas do poder. Como escreveu Michel Foucault, em sua obra A microfísica do poder, de 1978, “Vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha 'ao compasso da verdade' – ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm, por esse motivo, poderes específicos".

Por isso, é tão desolador perceber que parte da população brasileira ainda se sensibilize diante das chamadas “lágrimas de crocodilo” e contribua para o malfadado Pix. Especialmente, quando tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/25, que acaba com a escala de trabalho 6x1 e prevê a duração do trabalho não superior a 8 horas diárias e 36 horas semanais.

O assunto enfrenta enorme e maciça resistência do corpo político-partidário de Direita; bem como, de seus apoiadores e simpatizantes. Nada mais nada menos do que a velha e rançosa assimetria do alinhamento político-ideológico, nos espaços de poder, a fim de favorecer a manutenção de certos interesses, regalias e privilégios, como prioridade absoluta.

Respeitável público, bem-vindo ao circo dos horrores! Em apresentações diárias, pelos mais diversos veículos de informação e de comunicação, os dantescos espetáculos dão conta do grau de permissividade, o qual a ética e a moral sobrevivem no Brasil. O que significa, pelo menos em tese, a obviedade de que as elites continuam no topo da pirâmide social, tendo em suas mãos o poder de decidir, escolher, determinar, estabelecer, legislar, sobre o país e seus cidadãos. De modo que essa estrutura de poder, que vem sendo repassada de geração em geração, agora, na contemporaneidade, tem se reafirmado, especialmente, através dos movimentos do legislativo federal, por meio de ações e/ou omissões.

Por essas e por outras é que vale não se esquecer da seguinte reflexão de Marilena Chauí, filósofa brasileira e professora de Filosofia Moderna na Universidade de São Paulo, “(…) o mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que a plateia espera ouvir. Ele prepara sua história com muito cuidado para consumo público, de modo a torná-la crível, já que a realidade tem o desconcertante hábito de nos defrontar com o inesperado para o qual não estamos preparados”. Desse modo, como em todo espetáculo, “As pessoas sabem aquilo que elas fazem; frequentemente sabem por que fazem o que fazem; mas o que ignoram é o efeito produzido por aquilo que fazem” (Michel Foucault - filósofo, teórico social, filólogo e crítico literário francês). 

terça-feira, 13 de maio de 2025

"Pepe" Mujica (1935 – 2025)


"Pepe" Mujica (1935 – 2025)

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Certas pessoas têm o privilégio de que a morte ressalte, ainda mais, a sua existência, a sua importância. Esse é o caso de José Alberto "Pepe" Mujica Cordano. Ao contrário do que muitos possam pensar, o que marca os seus 89 anos de vida, não é o fato de ter sido o 40º presidente do Uruguai, entre 2010 e 2015, nem tampouco, ter sido ex-guerrilheiro dos Tupamaros, torturado e preso por 14 anos durante a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980. Mas, uma sabedoria e um modo particular de ver o mundo.

"Pepe" Mujica foi um bravo defensor dos direitos humanos. Dentre suas lutas, um destaque importante para a fome, as desigualdades socioeconômicas e o consumismo. A vida modesta e sem apegos materiais, possibilitou ser o próprio exemplo da coerência entre a prática e o discurso. Parceiros de uma vida, ele e Lúcia, que também foi membro dos Tupamaros, residiam em um sítio nos arredores de Montevidéu, onde cultivavam crisântemos para venda. Dos anos de política, guardaram memórias, experiências e reflexões.

Não se erra ao pensar que "Pepe" Mujica desenvolveu uma ampla capacidade filosófica. Suas análises sobre a vida e o mundo, sob muitos aspectos, pareciam além do seu próprio tempo. De certo modo, aos olhos de uma imensa maioria, eram sim, revolucionárias diante da realidade contemporânea, tão contaminada pelo individualismo, pelo narcisismo, pelo egoísmo. Afinal, ele era um homem de grande espírito humanitário, coletivo, conhecedor profundo da tecitura social e sua dinâmica inter e intraconectada.

Não é à toa, o que ele disse, em entrevista, ao documentário Human, de 2015: “Inventamos uma montanha de consumos supérfluos. Compra-se e descarta-se. Mas o que se gasta é o tempo de vida. Quando compro algo, ou você compra, não pagamos com dinheiro, pagamos com o tempo de vida que tivemos que gastar para ter aquele dinheiro. Mas tem um detalhe: tudo se compra, menos a vida. A vida se gasta. E é lamentável desperdiçar a vida para perder a liberdade”.

Daí a sua despedida causar tanto impacto. Indivíduos como ele podem ser compreendidos como arautos de um mundo mais justo, mais livre e mais solidário. Algo raro de se encontrar, por aí! Ter uma vida transitada com tamanha coerência e consciência é notável, porque significa que ele foi a representação em si do seu próprio senso ideológico. Razão pela qual disse, certa vez: “A utopia serve para nos guiar através da incerteza em que navegamos. Então não é mais uma utopia, tem o calor de ser um guia para a vida real. Não partimos para alcançar uma estrela, mas ela pode nos permitir caminhar com uma direção concreta aqui na Terra. É por isso que a utopia nunca está acabada, nunca é completa, nunca é perfeita” (“Com os pés no chão.” Mario Mazzeo, Edições Trilce, 2002).

É por essas e por outras, que ele parte sem correr o risco de ser esquecido. Seu legado é atemporal e, pelo andar da carruagem, será cada vez mais vital refletir sobre ele. Só alguém, como "Pepe" Mujica, para nos confrontar e nos fazer pensar sobre as grandes questões do mundo, colocando o dedo nas feridas sociais, ao dizer, por exemplo, “A liberdade, que supõe ter tempo para viver, (…) é uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite viver as relações humanas”, porque “só o amor, a amizade, a solidariedade, e a família transcendem”. “Arrasamos as selvas e implantamos selvas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com remédios. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano”. 

Não adianta se abster. Somos todos responsáveis.

Não adianta se abster. Somos todos responsáveis.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já dizia José Saramago, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A degradação ambiental de grandes proporções, como vemos acontecer na contemporaneidade, tece seu pontapé inicial na 1ª Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. O modo de ser, agir e pensar do ser humano foi, a partir daquele momento, impactado permanentemente.

Mas a industrialização só ocorreu porque havia uma ínfima elite dominante, com recursos suficientes para sustentar tal empreitada. E esse é o ponto que merece atenção e profunda reflexão. Por trás de todos os impactos socioambientais negativos estão representantes das classes dominantes, os quais, através de suas escolhas, decisões e ambições, moldam os caminhos da sobrevivência global.

Sim, porque a partir dessa modelagem socioeconômica, a população, em geral, passa a sustentar não só o enriquecimento dessas elites; mas, a legitimar as suas práxis degradadoras. Infelizmente, a disseminada inconsciência ambiental que afeta milhões de seres humanos, há pelos menos 3 séculos, vem passando à margem do escrutínio público. Como se as questões ligadas á produção e ao consumo estivessem totalmente dissociadas da degradação socioambiental.

Vale ressaltar, também, que apesar de o termo negacionismo ter se consolidado durante o período pandêmico da COVID-19, a grande verdade é que os negacionistas sempre estiveram entre nós. Seja na expressão das elites ou do campo político-partidário da Direita; sobretudo, os mais radicais e extremistas. Quaisquer aspectos que contrariam seus interesses e ambições são sumariamente rechaçados e desqualificados. Eles não dispõem de nenhum apreço aos fundamentos científicos.

Desse modo, o mundo vive a farsa de um pseudomarketing verde, o qual não se sustenta por práxis efetivamente consistentes no que diz respeito à reparação e à preservação socioambiental. Campanhas feitas para inebriar e alienar o pensamento social, elas são propositadamente disruptivas, ou seja, elas chegam para interromper o fluxo normal do processo reflexivo.

Ninguém questiona a origem do ouro exibido na publicidade das grandes joalherias. Ou a contaminação do solo e da água, por mercúrio e outros metais pesados, em razão da garimpagem. Ou o uso indiscriminado de agrotóxicos e outros agentes químicos na produção de alimentos. Ou a reverberação da violência, decorrente dos processos de desmatamento, no país. Ou o recrudescimento das patologias respiratórias, por conta dos efeitos das queimadas criminosas, promovidas em diversas regiões. Ou o desequilíbrio dos regimes pluviométricos resultante das profundas alterações nos domínios morfoclimáticos nacionais.  ...

Por trás desse cenário estão grandes empresas e corporações capitaneadas por indivíduos das classes dominantes. Embora o Brasil conte com uma boa legislação ambiental, ela se mostra sempre insuficiente e ineficiente para conter os arroubos e desvarios dessa gente. Munidos de equipes jurídicas de prestígio, de grande poder capital e, especialmente, de influência junto aos espaços de poder, eles não se intimidam ou se constrangem diante das leis. Suas decisões e escolhas são pautadas, exclusivamente, pelos seus interesses e demandas.  

Não é à toa que muitas dessas empresas e corporações fazem questão de patrocinar eventos e fóruns de discussão socioambiental. Trata-se de uma estratégia de manutenção da sua influência, ou porque não dizer, do seu lobby. Dessa forma, elas enviesam a dinâmica dos assuntos, segundo os seus interesses, e fazem uso do marketing verde para ofuscar suas verdadeiras intenções. Já se sabe, por exemplo, que grandes gigantes da mineração e do agronegócio financiarão a cobertura da COP 30, em Belém / PA. Acontece que muitas têm, em seu histórico, casos de crimes graves contra o meio ambiente 1.

Há muito tempo a humanidade ultrapassou a fronteira dos alertas ambientais de natureza científica. O que se tem, agora, é uma realidade concreta de eventos extremos e imprevisíveis, capazes de afetar grandes espaços geográficos e inúmeras populações.  É a vida de seres humanos que está em jogo. É a sobrevivência ecossistêmica que está ameaçada. Portanto, para romper com o domínio exercido pelas elites dominantes torna-se fundamental a construção de uma autoconsciência, a respeito dos hábitos de consumo.

Repensar, Recusar, Reduzir, Reutilizar, Reparar, Reciclar e Reintegrar, não diz respeito apenas à parte prática do processo; mas, de todo o ciclo crítico-reflexivo que o sustenta. Afinal, é ele que nos permite um posicionamento capaz de olhar além do pseudomarketing verde e, assim, não se render às propagandas enganosas. Não podemos incorrer no risco de outros desastres como os de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019). Não podemos naturalizar ou trivializar nossa própria destruição.