sexta-feira, 30 de abril de 2021

Trabalho e o século XXI


Trabalho e o século XXI

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Apesar de 1º de maio ser referenciado como Dia do Trabalho, com status de feriado, em muitos países, isso não impõe necessariamente uma celebração. Ao contrário, as conjunturas contemporâneas; sobretudo, nesses tempos pandêmicos do século XXI, estabelecem uma necessidade cada vez maior de reflexão sobre o tema.

Na medida em que o topo da pirâmide social se torna cada vez menor e mais detentora de riquezas e poder, é sinal de que o restante está sob condições cada vez mais indignas e desprivilegiadas, incluindo o trabalho. O que significa dizer que o mundo vem demonstrando um acirramento na distribuição desigual de bens e riquezas.

A questão é que o problema não se restringe a distribuição. A riqueza retroalimenta outros ciclos de exclusão social, os quais nem sempre são percebidos de maneira adequada. A começar pelos investimentos científicos e tecnológicos que fazem mudar a todo instante as configurações do mercado de trabalho, porque possibilitam uma inserção cada vez maior da mecanização em detrimento da mão de obra convencional, ou seja, as máquinas substituindo profissões e/ou reduzindo as oportunidades de trabalho.

Depois, essas mudanças não só exigem uma qualificação profissional cada vez mais atualizada e específica, como, também, criam outros nichos profissionais. Acontece que a grande massa de trabalhadores se encontra anos luz de distância desse perfil. Trata-se de uma miscelânea de gerações que não apresentam o mesmo nível de letramento digital. Aliás, muitos deles nem contam com a possibilidade da acessibilidade digital.

A quantidade de riqueza e a velocidade no patamar de investimentos, no mundo do trabalho, foi tão intensa que criou um abismo e dividiu os trabalhadores em dois mundos distintos, o convencional (analógico) e o futurista (digital). Entretanto, não possibilitou estabelecer um processo de adaptação e formação laboral continuada para realocar os contingentes de trabalhadores impactados pelas ondas advindas desse movimento.

Por isso as estatísticas do desemprego e do desalento no mundo são terríveis. Porque elas não dão conta de um recorte trimestral qualquer, dentro de um momento conjuntural; elas dão conta de uma linha histórica que começou a ser delineada desde a 1ª Revolução Industrial. Portanto, a cada nova revolução que emerge, esse processo vai adquirindo contornos cada vez mais dramáticos.

Como ficou ainda mais claro, durante essa pandemia, o universo laboral existe mediante demandas de consumo e possibilidades em satisfazê-las. Não é à toa que as pesquisas mostraram desempenhos bastante distintos entre e intra setores econômicos, o que aponta para uma heterogeneidade mediante o contexto do recorte temporal analisado. O que leva a movimentos demissionários mais exponenciais para algumas categorias do que para outras.

De modo que, no frigir dos ovos, a relevância dos acontecimentos concentra-se em buscar soluções que possam mitigar e dar sustentação aos constantes rearranjos que precisam ser promovidos no mercado de trabalho do século XXI. Porque se as estruturas de produção se transformam e as demandas de consumo aspiram por outras prioridades, o trabalhador precisa estar apto para acompanhar a dinâmica dessas metamorfoses.  Não serão com ideias simplistas que os desafios serão superados.

O número de pessoas à margem dos trabalhos formais é muito grande para se acreditar que, apenas, orientando-as a transpor a fronteira da informalidade para a condição de Microempreendedor Individual (MEI), por exemplo, tudo estará resolvido.

Primeiro, porque no desemprego a desigualdade social, também, opera. Segundo, porque transformar todos os milhões de desempregados e desalentados em MEI, ou em Microempresa (ME), ou Empresa de Pequeno Porte (EPP), não resolve as necessidades econômicas do país, porque eles se concentram basicamente no setor terciário (serviços).

A grande verdade é que sem investir em um modelo de educação cidadã, que possibilite aos indivíduos a construção adequada de conhecimento no campo técnico-científico-informacional, para atuar em serviços cada vez mais inovadores e sofisticados, os quais demandam especialização e eficiência, o país só tende a mergulhar no atraso.

Observe que, até mesmo, os setores primário e secundário vêm exigindo uma mão de obra melhor preparada. No caso do setor primário, a agricultura, a pecuária e o extrativismo vegetal, animal e mineral, para conquistarem espaço na exportação internacional, tem precisado imprimir práxis ambientalmente sustentáveis, que repercutem diretamente na exigência de qualificação dos seus profissionais.  

O mesmo acontece, no setor secundário, o qual representa a indústria e toda a cadeia de produção de bens duráveis e não duráveis, por conta de toda a tecnologização em paralelo as diretrizes ambientais sustentáveis propostas para o setor.  

De modo que se a sociedade não começar a refletir sobre todos esses aspectos, em muito pouco tempo haverá um colapso no mundo do trabalho. Haverá mais carência de mão de obra, baixa produtividade, redução na oferta de bens e serviços, limitação nos lucros, postos de trabalho sendo fechados, enfim... A grande engrenagem, então, vai parar e toda a pirâmide social sofrerá as consequências; sejam elas diretas ou indiretas, sejam eles os donos dos meios de produção, banqueiros, magnatas ou, simplesmente, os proletários, os operários invisíveis.


quinta-feira, 29 de abril de 2021

Coisas de quem sabe o que diz...


Coisas de quem sabe o que diz...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Em pleno dia Mundial da Educação, ontem, 28 de abril, foi uma demonstração de visão de futuro a fala do Presidente dos EUA, Joe Biden, na primeira sessão conjunta do Congresso Norte-Americano depois de sua posse em janeiro. Para ele, passa pela Educação o retorno empoderado da democracia do seu país ao cenário da contemporaneidade.

Por isso, ele irá apresentar uma proposta na área de Educação, que busca constituir um serviço pré-escolar universal, dois anos de frequência gratuita nas faculdades públicas, 225 bilhões de dólares em cuidados infantis e pagamentos mensais em torno de 250 dólares para os encarregados do setor, com vistas a tornar o cidadão norte-americano mais competitivo no século XXI. 

A importância de discursos, assim, está justamente na reafirmação de qual é o verdadeiro papel da Educação dentro de um país. Pensar sobre ela é, portanto, traçar um panorama do que se aspira como coletividade, como projeto cidadão para o desenvolvimento pleno de uma sociedade. Portanto, ao contrário de muitas pessoas que olham para o sistema de educação como um elemento distante e desconectado de suas vidas; na verdade, ele não é.

O grande desafio está, justamente, no fato de o mundo ser um lugar tão desigual e arrastar essa desigualdade para todas as suas estruturas fundamentais, incluindo a Educação. O que ocorre é que a desigualdade educacional transita, há tempos, por uma espiral de infinitas desigualdades que se sobrepõem e promovem uma manutenção de seres humanos distantes de direitos e benefícios fundamentais.

Porque não há proposta de Educação que se sustente fora da inclusão social. O indivíduo precisa ter seus direitos fundamentais assegurados para que possa desfrutar do processo de ensino-aprendizagem, em condições de extravasar o seu potencial intelectual e cognitivo. Há muitos equívocos nesse sentido, quando os problemas da Educação são lançados prioritariamente sobre os ombros da instituição de ensino, desconsiderando que, na maioria das vezes, eles já acontecem muito antes.

É o aluno que vive em condições precárias e insalubres. É a miséria e a subnutrição que interrompem a capacidade de aprendizado. É a desassistência de saúde que leva muitos alunos com problemas oftalmológicos, auditivos, psicológicos, neurológicos, para os bancos da escola sem que tenham as devidas condições de acompanhar as aulas. É a impossibilidade de adquirir os materiais escolares e os uniformes do período letivo. Enfim...

A heterogeneidade social é uma marca da Educação. Não se trata só da singularidade do indivíduo. As diferenças se medem muito além, no campo dos estratos sociais, das possibilidades de ensino – público ou privado, da posição geográfica das unidades de ensino, das propostas didático-pedagógicas, da consolidação ou não de políticas inclusivas, ...

Portanto, não há como fazer da Educação uma receita de bolo aplicável homogeneamente, porque não vai funcionar. Porque a Educação não é só o recurso financeiro. Não é só a construção de escolas. Não é só remunerar bem o professor. Não é só construir laboratórios e bibliotecas. Não é só oferecer a merenda. Não é só exigir um Plano Político Pedagógico anual para cada instituição. É tudo isso e muito mais, porque a Educação forma pessoas. Como dizia o poeta Mário Quintana, “Os livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.

Isso significa que ao permitir a existência de tantas discrepâncias traduzidas pelos pluralismos das desigualdades sociais, o governo só faz reafirmar um descaso gigantesco em relação à população. Entretanto, ao esquecer da importância que reside em constituir cidadãos, ele opta por um modelo de governança na contramão das demandas do mundo, ou seja, atrasado, ineficiente e obsoleto. Algo que, há tempos, já vem sendo revelado por pesquisas nacionais e internacionais na área de Educação.

Seu desalinhamento educacional é tão representativo, que o Brasil arrasta correntes na alfabetização, nos multiletramentos, nas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Porque, o fato de que a contemporaneidade coloca as pessoas a coexistirem entre dois mundos, o virtual e o real, não significa necessariamente que desfrutem de acessibilidade e letramento suficientes para viver essa experiência.

O que ocorre é que há uma carência natural na estrutura educacional que lhes impede de ter um lastro consolidado para a construção do conhecimento. De modo que as defasagens educacionais se acumulam ano a ano, mantendo os alunos, de certa forma, aprisionados por barreiras que não tendem a ser desconstruídas. É sempre mais do mesmo. Não há inovação. Não há transformação.

Assim, o governo brasileiro não só estabelece uma ruptura com a ideia básica de que “A primeira meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas; homens que sejam criadores, inventores, descobridores” (Jean Piaget), ou seja, de que é possível “formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como um todo” (Milton Santos); como subscreve a impossibilidade de compreender verdadeiramente que “A educação feita mercadoria reproduz e amplia as desigualdades, sem extirpar as mazelas da ignorância. Educação apenas para a produção setorial, educação apenas profissional, educação apenas consumista, cria, afinal, gente deseducada para a vida” (Milton Santos).


quarta-feira, 28 de abril de 2021

Protagonismo coadjuvante ...


Protagonismo coadjuvante ...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

A política do caos foi a estratégia utilizada pelo governo brasileiro para justificar a sua inação nas mais diversas áreas. Há um processo de desconstrução e de desmantelamento que vem se operacionalizando, desde 2019, que cria focos de instabilidade, os quais, não raras as vezes, dificultam a vigilância e o acompanhamento por parte dos serviços de comunicação e informação; mas, também da própria sociedade. Pois, tudo tende a acontecer simultaneamente.

Uma passada de olhos breve, pela mídia nacional, para se ter a dimensão exata disso. A Pandemia, seus desdobramentos e investigações na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dividem espaço com problemas oriundos do Ministério do Meio Ambiente, dúvidas quanto à realização do Censo Demográfico, incertezas sobre o orçamento aprovado, idas e vindas de uma suposta reforma tributária, expansão da pobreza no país, turbulências nas relações diplomáticas por atitudes inapropriadas, ...

No entanto, se engana quem pensa que essa miscelânea da tragicidade só irá prejudicar a população. Não. Se é ruim para alguns, a verdade é que ruim para todos, incluindo o próprio governo. Porque apurar e administrar tantos conflitos, ao mesmo tempo, pode sair fora do controle.

O excesso de centralização de poder que se tenta impor, por parte do governo, acaba resultando em um tremendo descontrole; especialmente, quando, no agravamento das situações, as pautas são levadas à judicialização, a fim de uma resolução fundamentada nos princípios do ordenamento jurídico nacional, com destaque para a Constituição Federal de 1988.

De modo que a escolha por esse caminho centralizador, controlador, manipulador, no fim das contas, esvai o protagonismo do próprio governo. Na ânsia de governar sob as vozes da própria cabeça, se esquecem de que nenhum governo pode tudo e que há regras a serem respeitadas e cumpridas, até mesmo por quem está no poder.

Ao bater de frente com as instâncias jurídicas superiores, nas constantes tentativas de fazer prevalecer as suas vontades, o governo vai esgarçando a sua credibilidade e a sua governabilidade. A cada decisão mal tomada. A cada manobra imprevidente. A cada erro de cálculo. A política do caos cobra seu preço.

Não se pode esquecer de que a governança não se define pelos limites territoriais internos; mas, ela tem braços externos. Sobretudo, considerando a realidade globalizada e globalizante do mundo. Tudo é acompanhado de perto, quase que em tempo real; portanto, um passo em falso não causa instabilidade somente para si. Haja vista a frenética movimentação do Mercado Financeiro.

O limite do improviso, da tomada de decisões próprias, é muito restrito. De certa forma, a governança tem scripts pré-definidos, maleáveis o bastante para se ajustar as eventuais variações conjunturais; mas, é só. Por isso é preciso estar atento, o tempo todo, ao que acontece em cada canto.

É um erro crasso pensar que há assuntos menos importantes e mais importantes, quando a vida é uma teia de complexidades, onde todos os elos permanecem em constante agregação e desagregação. É só olhar para a contemporaneidade. Essa jornada de incertezas, de retrocessos, não consegue responder a si mesma a que veio. A dinâmica imposta ao cotidiano adquiriu um caráter tão amadorístico que constrange.

Não se vê lampejos de consciência, de percepção bem constituída, conduzindo as decisões ou as mudanças que precisam ser implementadas. Daí a necessidade constante de uma figura capaz de tutorar institucionalmente; como já dito anteriormente, na referência à judicialização.

O curioso é que muitos eleitores, ainda, não se deram conta disso. Seu voto elegeu indivíduos que, sem lhes dar satisfação alguma, tem optado por abdicar do protagonismo para serem coadjuvantes. Por isso, eles se sentem tão confortáveis em tecer narrativas em que tentam se dissociar de suas responsabilidades e obrigações, lançando-as amiúde sobre a quem possa interessar. Sendo assim, quem está segurando, de fato, o leme dessa embarcação, hein?

Diante dessa política do caos que vem continuamente se reafirmando pela lógica da necropolítica de Achille Mbembe e do “fazer viver e deixar morrer” da Biopolítica foucaultiana, com quase 400 mil mortos só pelo Sars-COV-2, sem contar tantas outras causas, a verdade é que o governo não tem como se abster ou incinerar o compromisso que assumiu nas urnas.

Porque todo esse movimento retroalimenta as demandas que chegam à judicialização; de modo que, o governo vai sendo colocado em uma posição fora da sua “pseudo zona de conforto”. Até que um dia, se perceba que a política do caos não conduziu nada a lugar nenhum.

Enfim, a permissividade da inação expandiu de tal forma as suas fronteiras áridas e improdutivas, que o país passou a servir apenas para sepultar ... Gente. Sonhos. Esperanças. Trabalho. Progresso. Desenvolvimento. Constituiu-se, então, o panorama indefinido do absoluto ostracismo; pois, como escreveu João Guimarães Rosa, “O trágico não vem a conta-gotas”.


terça-feira, 27 de abril de 2021

A identidade do poder ou o poder da identidade?

A identidade do poder ou o poder da identidade?

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

De repente, comecei a compreender melhor os meandros que levam tantas pessoas a se ocuparem das disputas de poder, no Brasil.  A questão é que, por ser um país de características tão peculiares, o poder assume a sua significância não pelo significado e manifestação, mas pela investidura de determinados cargos e posições dentro do estrato social. De modo que muitos se perdem na função, por total desconhecimento em relação ao que lhes impõem aquele determinado poder.

Chega a ser engraçado, como alguns se transformam pelo simples sentar em uma determinada cadeira representativa. Chegam a transparecer a ideia absolutista, na qual o poder monárquico advinha da vontade de Deus; portanto, algo que não poderia ser questionado. Mas, o poder é sempre o poder e requer muito mais do que se possa imaginar.

E a Pandemia tem feito isso de bom, tem mostrado e dissecado o poder de uma maneira nunca antes imaginada. A começar pelo seu tripé de sustentação, ou seja, conhecimentos, competências e habilidades. Aquela velha máxima de que “qualquer um faz” foi sumariamente desconstruída. Cada ato do cotidiano exige um preparo específico que não é desfrutado por todos homogeneamente. Tanto que, se faz necessária a análise de currículo para o preenchimento de vagas de emprego.

Em um país tão plural e tão desigual, como é o Brasil, conhecimentos, competências e habilidades não são apenas o tripé de sustentação do poder; mas, uma maneira adicional de traçar um perfil da própria sociedade. Porque há uma fragilidade tão demarcada na constituição desses elementos, que poucos têm, de fato, a oportunidade de apresentá-los, quando necessário.

O que significa que o descaso em relação à Educação, no país, se reflete em momentos assim. Afinal, em termos de conhecimentos, apesar do século XXI refletir a exuberância das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), estes têm sido construídos com base em um aprender e um apreender das informações, demasiadamente, superficial e inconsistente dentro das diversas áreas; conforme, demonstram mecanismos avaliativos nacionais e internacionais.

Sobretudo, no campo do letramento, o qual ultrapassa as fronteiras da alfabetização, a grande maioria da população ainda não consegue se apropriar efetivamente da leitura e da escrita como prática social. Isso significa que para as classes C, D e E, principalmente, os sujeitos sociais não dispõem de uma linguagem fundamentada na criticidade e com o propósito de auxiliá-los na interação e na ação dentro dos diversos contextos sociais.

O que explica como a escola brasileira está distante do seu papel de formadora do indivíduo cidadão, o qual se desenvolve para constituir as engrenagens do progresso do país a partir da sua força de trabalho; o que não deixa de ser uma expressão de poder.

E se as pessoas não constituem os seus conhecimentos torna-se, portanto, mais difícil de determinar o rol das suas habilidades, as quais exibem a dimensão de suas aptidões para a realização de uma atribuição específica exitosa; mas, também, de suas competências, que demonstram como elas realizam as suas tarefas a fim de serem bem-sucedidas ao final.

Talvez, o mais importante dessas considerações seja trazer à tona a importância que reside em cada papel social desempenhado. Infelizmente, teima em resistir no inconsciente coletivo brasileiro a ideia de que a relevância do trabalho está atrelada a remuneração; de modo que, a importância social passa a ser atribuída em relação ao que recebe financeiramente o indivíduo.

Esse pensamento fomenta, então, uma idealização perversa ao mesmo tempo em que reafirma a invisibilização de centenas de milhares de pessoas. Ora, deixa-se de reconhecer o poder constituído pelos conhecimentos, habilidades e competências do ser humano, para considerar um eventual poder advindo do dinheiro e, por consequência, da posição social que ele venha a ocupar.

Nesse sentido, o país abre mão voluntariamente de oportunizar a visibilidade de inúmeros talentos humanos, os quais têm potencial suficiente para tornarem-se protagonistas em diversas áreas, para permanecer reafirmando os caminhos midiáticos e políticos como única forma de ascensão. E essa é uma razão pela qual o poder desaparece tão rapidamente.

Porque as pessoas são levadas a acreditar que são alguma coisa, quando, na verdade, apenas estão. O estar é temporário. O poder é fugaz. Chega-se a um determinado ponto em que ele não representa nada demais, ele cai na trivialidade do comum. Então, o destaque, a importância, a bajulação, ... tudo se torna opaco e, com o passar do tempo, obsoleto e sem utilidade.

No entanto, apesar dessa efemeridade, ele permanece embaçando a própria identidade das pessoas, porque faz com que a carcaça, a imagem representada, seja vista como mais importante do que o conteúdo. Embora, elas saibam, muito bem, que estão nos conhecimentos, habilidades e competências, o essencial para sustentá-las de pé em todas as situações.

Mas, a questão é que, em plena contemporaneidade, quando tudo se evapora rápido ... quando tudo são aparências ... quando tudo é possível ... quando tudo é poder ... Viver de personagens se tornou o caminho mais fácil em nome da sobrevivência; afinal, “Depois que eu acabar de falar, você me desconhecerá ainda mais: é sempre assim que acontece quando a gente se revela, os outros começam a nos desconhecer” (Clarice Lispector - A maçã no escuro – 1961).    


sábado, 24 de abril de 2021

Não adianta fechar os olhos


Não adianta fechar os olhos

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Desde que mundo é mundo, a humanidade já foi surpreendida por grandes epidemias. De repente, quando menos se espera, um agente infectocontagioso aparece descompensado na sua capacidade reprodutiva e na dificuldade de resposta imediata do ser humano e aí, o caos está feito. A grande questão é que, se somos tão vulneráveis, assim, ao imprevisível, já não deveríamos ter aprendido algo diferente com as experiências relatadas nas páginas da história? 

De certa forma, sim. Mas, entre um episódio pandêmico e outro há, geralmente, uma lacuna temporal. O que significa que para as gerações que sucedem aquele determinado evento, os acontecimentos parecem ficção, coisa de outro mundo, muito distantes da sua percepção racional.

É daí que surge o grande desafio da conscientização popular a respeito da gravidade da situação e da necessidade de participação cooperativa no controle e na mitigação da doença, porque as pessoas não se sentem efetivamente ameaçadas pelos acontecimentos, até que sejam atingidas diretamente por eles.

Na verdade, o que as experiências pregressas fornecem de imensa valia as atuais gerações é apontar para a realidade do imponderável. Se não temos como nos precaver de tudo o que acontece no mundo, ao menos, podemos ter as nossas cartas na manga a respeito. Certos cuidados simples e básicos com a saúde, com o cotidiano, com tudo o que possa de algum modo fomentar e desencadear uma situação médico-sanitária fora de controle.

Vírus, bactérias, fungos e protozoários ainda desconhecidos pela Ciência devem existir aos milhares, mundo afora. Especialmente, em razão da própria mutabilidade natural, ou de efeitos ambientais, que podem sofrer ao longo de suas vidas. Portanto, eles estão por aí.

Em contrapartida, os vetores e hospedeiros para organismos desse tipo são bastante conhecidos e desfrutam de um consistente arcabouço de informações técnico-científicas a seu respeito. Dentre os mais conhecidos estão diversos insetos, mamíferos e aves; sobretudo, aqueles de natureza silvestre.

Isso quer dizer, que a relação entre o Meio Ambiente e os seres humanos perpassa diretamente pelas questões de saúde. O descaso que se atribui tantas vezes às discussões ambientais, de certo modo, colabora significativamente para muitas das mazelas enfrentadas pela própria humanidade.

O desmatamento é, por exemplo, um elemento carreador de inúmeras doenças para os centros urbanos, porque aproxima vetores e hospedeiros contaminados da população. Ao perderem seu habitat natural eles são forçados a buscar um outro espaço geográfico para sobreviver, o que geralmente culmina em áreas urbanizadas ou periurbanizadas, que correspondem a locais onde as atividades rurais e urbanas se misturam, dificultando uma determinação precisa dos limites físicos e sociais do espaço urbano e do rural.

Os recursos hídricos contaminados por diferentes efluentes químicos tóxicos são outra fonte importante de desenvolvimento de doenças, muitas delas graves e de alto risco de letalidade; razão pela qual, demandam atendimento especializado de saúde, nem sempre disponível e acessível a todos.

As queimadas, que promovem a formação de particulados nocivos no ar, também, despertam preocupação. Porque ao tornarem o ar denso e difícil de respirar, as partículas presentes podem não só se acumular no sistema respiratório humano, desencadeando inflamações agudas e crônicas; mas, auxiliar no transporte de partículas virais promotoras de patologias, ainda mais, severas aos seres humanos.  

Então, olhando com atenção a dinâmica dessa Pandemia, que parece longe de um fim, antes da preocupação em retomar o cotidiano a partir de um novo contexto, é preciso entender que o risco biológico paira sobre a humanidade, como uma espada pontiaguda.

Seja pelo fato de que o Sars-COV-2 tende a permanecer circulante entre a população por um período indeterminado, apesar da diversidade de imunobiológicos já desenvolvidos, e outros em desenvolvimento, para uma imunização de caráter preventivo à gravidade da sua manifestação patológica.

Seja pelas próprias variantes que devem surgir para garantir a preservação do próprio vírus. O que significa um mecanismo viral para burlar constantemente a vigilância do sistema imune do ser humano e colocá-lo à mercê de uma resposta imunológica menos efetiva as novidades.

Ou, simplesmente, pelo surgimento de um outro vírus qualquer, de alto poder infectocontagioso. Isso implicaria em recomeçar um novo ciclo de esforços de combate, tanto pela Ciência quanto pela própria sociedade. Seriam novas perdas humanas. Novos lockdowns. Novas medidas de distanciamento social. Um novo acirramento das práticas de higiene corporal e ambiental. Novas corridas por imunobiológicos e fármacos eficientes contra a nova doença. Enfim...

De modo que o fato de, ainda, existirem pessoas alheias e negligentes a tudo isso, não muda a verdade de que os agentes biológicos são muito mais rápidos do que as respostas humanas as suas investidas. Nem tampouco, de que uma mudança de perspectiva interior, a respeito da experiência pandêmica, precisa acontecer o mais rápido possível em cada indivíduo.

Afinal, até aqui, a humanidade depositou uma confiança cega e absoluta na capacidade científica e tecnológica que alcançou para resolver tudo à revelia da sua participação ou de seu protagonismo direto.

Ela quis acreditar que quaisquer problemas, surpresas, incidentes, seriam rapidamente solucionados como em um passe de mágica, enquanto ela permaneceria tocando a vida como sempre fez. Mas, entre a conjectura e a realidade há uma diferença inquestionável.

Há mais de um ano a Ciência está debruçada diuturnamente para responder aos questionamentos sobre o Sars-COV-2 e, de maneira precisa e consistente, ela não conseguiu suprir todas essas demandas. As próprias informações sobre o reservatório animal do vírus, antes dele alcançar os seres humanos, ainda são controvertidas. Portanto, há um caminho longo nos estudos que cercam o Sars-COV-2; mas, também, quaisquer outros agentes biológicos.

Além disso, a Pandemia expôs a comunidade científica a realidade de um outro fenômeno denominado de Sindemia da COVID-19; o que significa dizer que outros problemas de saúde, tais como obesidade e doenças cardiovasculares, ao se interagirem de maneira sinérgica com o vírus, contribuíram para uma sobrecarga nos pacientes e ampliaram seu risco de longos períodos de internação e de mortalidade.

Segundo Merrill Singer, antropólogo e médico da Universidade de Connecticut, nos EUA, a Sindemia é uma situação que potencializa danos maiores do que a mera soma das doenças, porque estão envolvidas no contexto as interações biológicas, sociais e econômicas, tornando a população mais vulnerável ao seu impacto.  

O que pode ser apurado por um breve perfil socioeconômico das populações nessa Pandemia.  As comorbidades maltratadas ou mal acompanhadas pelos serviços de saúde somadas à impossibilidade de aquisição de tratamentos específicos e farmacológicos para elas, em virtude da baixa condição econômica dos pacientes, os colocou na dianteira das estatísticas de mortalidade pelo Sars-COV-2.

Portanto, ter essa consciência, talvez, seja a questão mais importante para a humanidade a partir de agora. Não há nada que possa ser estabelecido como definitivo, ou resolvido, ou superado. O modo como os seres humanos se comportam e se interagem, entre si e com o meio ambiente, é e será sempre um fator determinante para acelerar ou retardar novos episódios epidêmicos e pandêmicos no mundo. Não adianta fechar os olhos.


sexta-feira, 23 de abril de 2021

Não há inimigo pior ...


Não há inimigo pior ...

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Não há inimigo pior para o ser humano do que ele próprio; sobretudo, quando ele se envolve no manto da intempestividade. Destacando-se no cenário de especulações e conjecturas eleitoreiras para 2022, pode-se dizer que o Presidente da República tem se excedido nas manobras sobre o tabuleiro do poder e angariado reveses importantes.

Talvez, por uma busca excessiva por um adversário ideal mais adiante, as tentativas de desqualificação e construção de impopularidade aos pretensos oponentes estão se esvaindo por suas próprias mãos e erros de cálculo.   

Ontem foi mais um 22 de abril a ser esquecido pelo presidente. Primeiro, porque seu discurso na Cúpula do Clima contradisse seus imensos esforços em reduzir a pó o trabalho de seus antecessores. Ao valer-se dos bons resultados brasileiros em um passado recente, ele omitiu sua gestão, até aqui, pela dificuldade que teria em explicar a desconstrução e alteração das bases gestoras sob cuidados do Ministério do Meio Ambiente; o que resultou na promoção de uma escalada de maus resultados estatísticos, no que diz respeito a preservação e conservação dos recursos naturais.

Segundo, porque o pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a decisão sobre a imparcialidade do ex-juiz Sérgio Moro em ação contra o ex-presidente Lula, depois de já terem declarado a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar o ex-presidente, nas ações penais relativas aos casos do tríplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e do Instituto Lula (sede e doações). De modo que ele, agora, volta a gozar de seus direitos políticos e se torna um forte pretenso candidato para 2022.

Se o presidente não fosse inimigo de si mesmo não teria caído nessas esparrelas. Sua ânsia pelo adversário ideal, que não lhe imponha obstáculos e dificuldades de vitória, está sim, criando problemas sérios.

Com grande atraso, agora se sabe como operou os trabalhos dos adeptos da direita e extrema direita nacional para romper com os ciclos de governança contrários as suas opiniões e interesses. De modo que foi por esse caminho que ele se uniu ao ex-juiz, envolvendo-se pela bandeira da “anticorrupção” e o promovendo depois a seu Ministro da Justiça.

Acontece que antes de chegar ao centro do poder federal, o ex-juiz já havia angariado uma popularidade expressiva e trazia consigo uma plataforma de trabalho própria a ser implementada.

Foi o bastante, então, para que as rusgas se exacerbassem e culminassem nas farpas da fatídica reunião de 22 de abril de 2020, quando o desalinhamento dos discursos se mostrou evidente e o ex-juiz, logo em seguida, pediu exoneração do cargo de Ministro. De certo modo, em um primeiro momento, o resultado passava a ideia de que acabara de se construir a desconstrução de um pretenso oponente.

No entanto, ainda não se imaginava que o ex-presidente voltaria ao cenário político, justamente, a partir da análise dos pedidos peticionados pela sua defesa em relação ao ex-juiz. Porque, a verdade da história, naquele momento, ainda transitava pelas tais linhas tortas da vida.

A aliança que havia sido estabelecida, com vistas ao sucesso do pleito de 2018, começava, então, a se desfazer para as pretensões de 2022, diante da reorganização das conjunturas, as quais não mais favoreciam nem ao atual presidente e nem ao ex-juiz.

Mas, não se pode esquecer de que, antes disso, o presidente já havia operado da mesma maneira contra o Governador de São Paulo, na sua cruzada insana contra a vacina CoronaVac, produzida em parceria entre o Instituto Butantã e a Sinovac chinesa, para proteção contra a COVID-19.  

Ciente das pretensões do governador, em relação ao pleito presidencial de 2022, a liderança nas tratativas em relação à vacina precisava ser contida. Então, ele se colocou em oposição à aquisição dos insumos para produção nacional e das vacinas já envazadas; bem como, da sua aplicação junto à população.  

Claro que prejuízos de natureza temporal ocorreram; mas, no frigir dos ovos, o empenho do governador acabou rendendo destaque e protagonismo, no cenário tão tumultuado da gestão da Pandemia no país.

Diante do crescimento exponencial das mortes pelo Sars-COV-2 e a pressão da opinião pública nacional e internacional por uma vacinação ágil e efetiva, o presidente não teve outro caminho a não ser apoiar as vacinas disponíveis no país, incluindo a CoronaVac.

Sem contar que, contrariando as expectativas do presidente, frente a possibilidade de o ex-presidente voltar ao cenário político, o governador sinalizou publicamente a sua pretensão a reeleição ao cargo atual. De modo que os prognósticos quanto ao futuro foram se desfazendo sem controle.

William Shakespeare já dizia, “ou você controla seus atos, ou eles o controlarão”. O tabuleiro do poder não é para amadorismos, precipitações, inquietudes vãs. É preciso saber o que fazer, por que fazer, quando fazer; afinal, como tudo na vida, sobre o poder residem consequências imprevisíveis.

Basta ver, o tamanho dos estragos que o diminuto inimigo viral tem nos feito experimentar. Os desdobramentos das catástrofes climáticas, que se abatem sobre o planeta, em decorrência da fiação perversa e desordenada dos seres humanos. ... Tudo o que acontece na vida faz parte do jogo.

Por isso, não se pode jamais esquecer de que “a felicidade e a liberdade começam com a clara compreensão de um princípio: algumas coisas estão sob nosso controle, outras não. Só depois de lidar com essa questão fundamental e aprender a distinguir entre o que você pode e o que não pode controlar, é que a tranquilidade interna e a eficácia externa se tornam possíveis” (Epiteto – filósofo grego estoico).

Caso contrário, haverá sempre a sombra de um fantasma que cresce e se alimenta no cerne de seu próprio sentido, até que, um dia, consiga consumi-lo de tanta exaustão, sem ao menos lhe dar a possibilidade de responder “Onde foi que eu errei? ”.


quinta-feira, 22 de abril de 2021

IDH: o fiel da balança ambiental


IDH: o fiel da balança ambiental

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Tomando como ponto de partida, para esta reflexão, os discursos manifestos nesse primeiro dia da Cúpula do Clima, a narrativa brasileira encontra-se mesmo na contramão do mundo. Ficou bastante perceptível, como a questão exploratória ultrapassa a ideia dos recursos naturais renováveis e não renováveis, na medida em que o governo brasileiro estabelece uma correlação entre a insustentabilidade ambiental e o baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), para algumas regiões do país.

Na verdade, o que ele faz é justificar, por meio das atividades exploratórias, sobretudos nas áreas de grandes biomas, a necessidade dessas práticas para mitigar os efeitos das desigualdades sociais sobre as populações nativas e mais vulneráveis. Contrariando, portanto, todas as propostas já consagradas, mundo afora, em relação as práticas de desenvolvimento sustentável, ou seja, atender as necessidades da atual geração, sem que haja prejuízo as demandas das gerações futuras.

Ocorre que o IDH é uma medida para aferir o grau de desenvolvimento social a partir dos indicadores de educação, de saúde e de renda (Produto Interno Bruto – PIB), tanto em nível global, quanto regional e local. Sendo assim, ele reflete particularmente os posicionamentos socioeconômicos estabelecidos, ou seja, quanto mais desigual forem as propostas, piores serão os indicadores e por consequência o IDH.

De modo que não é a desigualdade que leva à exploração, mas o contrário. Afinal de contas, quem detém os direitos e os mecanismos exploratórios é uma pequena parcela da sociedade que desfruta de riqueza e poder. O que significa que a população nativa e os mais vulneráveis socioeconomicamente permanecem nas mesmas condições, apesar da expansão exploratória sobre os recursos naturais; sem contar, que se tornam mais expostos aos efeitos nocivos da degradação ambiental.

Mesmo em pleno século XXI, os exploradores não se importam com a destruição porque eles detêm os recursos logísticos e financeiros para continuarem sua saga exploratória em áreas ainda inexploradas. Portanto, se uma área foi esgotada, eles já buscam uma outra para seguirem explorando. O que visto de cima, pelos satélites mais potentes, resulta em áreas gigantescas impactadas e de difícil e caríssima recuperação, quando possível; pois, nem todas as áreas degradadas podem ser efetivamente recuperadas.

É imprescindível se ter consciência de que a exploração do meio ambiente, seja de que tipo for – desmatamento, queimada, mineração, pastagem – compromete o bioma na sua totalidade, pois se trata de um sistema ecológico integrado, onde cada elemento tem um papel específico. No caso da mineração de ouro, por exemplo, em que são extraídas toneladas de terra para apurar o minério há uma perda de cobertura vegetal do solo que leva ao assoreamento de rios e nascentes.

A utilização do mercúrio, metal pesado, no processo de separação das pepitas acaba desaguando nos cursos d’água e contaminando-os de maneira severa, o que inclui todo o bioma aquático da região. A água e os peixes ficam, portanto, impróprios para consumo pelas populações locais, sob o risco iminente do desenvolvimento de uma síndrome neurológica denominada Síndrome de Minamata.

De modo que é nessa teia de conexões e inter-relações que os prejuízos ambientais, sejam eles quais forem, são computados. Daí a impossibilidade de se olhar a questão de forma fragmentada e pontual. Enquanto o explorador tem um enriquecimento aparente e momentâneo, a população local só tem perdas. Primeiro, porque ela é explorada como mão de obra barata nesse processo. Segundo, porque ela perde a possibilidade de usufruir de alguma subsistência oriunda do meio ambiente local, incluindo a água, em decorrência dos procedimentos não sustentáveis e da contaminação. Por fim, porque ela acaba desassistida nos seus direitos fundamentais, pelos gestores públicos, quando ela precisa de algum atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou algum benefício pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Trata-se de um assunto tão grave e urgente, que em junho de 2020, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), manifestou no Dia de Combate à Desertificação e à Seca (17/06) que “cerca de 70% dos solos terrestres foram transformados pela atividade humana” e era necessário “trazer soluções para uma ampla gama de desafios desde a migração forçada e a fome até as mudanças climáticas” 1. Afinal, a consequência mais imediata disso é que “a saúde da Humanidade depende da saúde do planeta”, na medida em que, a degradação dos solos já afeta cerca de 3,2 bilhões de pessoas em todo o mundo.

Como se vê, então, não há como compatibilizar práticas exploratórias e de degradação com a sobrevivência humana. O planeta é uma estrutura indissociável e limitada; por isso, somente pelos esforços conjuntos de todos em nome de um desenvolvimento sustentável torna-se possível pensar em não colapsar. Por mais que as mentes humanas sonhem com a infinitude do espaço sideral, com as viagens interplanetárias, quiçá, com a colonização de outros planetas, essa realidade não nos alcançará.

Temos que ser realistas e prudentes. A única casa que temos é a Terra. Essa história de “justificar tragédias como “vontade divina” tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco – escritor); mas, não muda a verdade dos fatos. Como tão bem explicou Cora Coralina, “mesmo quando tudo parece desabar, cabe em mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar, porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir”. Então, é bom se apressar na decisão; porque, por enquanto, a humanidade convive com migrantes, sem tetos, sem lares; mas, antes do que possa imaginar, pode ela ficar sem planeta para habitar.   

terça-feira, 20 de abril de 2021

Podemos respirar?!


Podemos respirar?!

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Será que os EUA podem respirar? Será que o mundo pode? O ex-policial que matou George Floyd foi condenado e, embora, isso represente um passo importante, é apenas um degrau na longa escada de transformação em relação ao racismo estrutural, que vigora em várias partes do planeta. A decisão amplia sim, as fronteiras para a reflexão e o debate em torno de uma questão que impacta a vida de milhares de seres humanos; mas, não é tudo.

Porque o racismo não é meramente uma discussão de posicionamento social hierárquico; mais ou menos importante, superior ou inferior, acima ou abaixo, ... Mas, a partir desse contexto é que se determina a importância da acessibilidade cidadã dos indivíduos, a garantia equitativa de seus direitos fundamentais, em relação a quaisquer outros indivíduos. Isso significa, portanto, que combater o racismo é a única possibilidade de se respirar e aspirar livremente, sem nenhum obstáculo.

O problema é fazer o coletivo social compreender tudo isso; visto que, o inconsciente identitário da população global carrega em si os traços marcados por todas as desigualdades, incluindo o racismo. A presença de poderes centralizados nas mãos de grupos considerados supremacistas contribuiu para consolidar a existência de grupos minoritários, com base exclusivamente na sua predisposição em considerá-los em situação de desvantagem social. O que não passa de uma perspectiva equivocada; mas, ao mesmo tempo efetiva, no sentido de garantir os espaços e lugares de fala dos supremacistas, minimizando o quanto possível eventuais ameaças e reações das minorias.   

Assim, fica claro como é difícil e, até certo ponto, complexo estabelecer uma desconstrução e uma ressignificação desses valores e crenças, diante dos efeitos que o racismo imprimiu, geração após geração. Os desdobramentos processuais ocorridos podem sim, configurar uma castração social terrível e irreparável para milhares de negros. Tolhidos no seu ir e vir. Impedidos de ser e conviver na geografia das cidades e dos campos. Impossibilitados de conquistar seu aprimoramento intelectual e cultural. Eles vêm sendo assombrados por estigmas nefastos, o que significa que o racismo lhes imputou uma vida marginal.

O que é facilmente comprovável através da observação de campo. Um pouco de atenção para se descobrir qual é o nível de participação e presença dos negros na dinâmica da sociedade, e se descobre como eles estão invisibilizados ou mimetizados para conseguirem sobreviver aos desafios e opressões dos supremacistas. O racismo cobra inúmeros pedágios sociais em nome de uma aceitação, que na verdade é um direito universalmente consagrado, a igualdade.

Acaba, então, acontecendo inevitáveis duelos de força arbitrados pelo racismo; sobretudo, episódios de violência. Tratam-se de momentos em que o lugar de fala de quem sofre o racismo, mesmo sob fortes ataques de silenciamento, se expande e permite uma proposição discursiva e reflexiva capaz de garantir alguns passos à frente nos tabuleiros de negociações. Afinal, os holofotes tendem a propiciar elementos importantes nas construções narrativas que podem, quem sabe, se materializar em políticas públicas efetivamente antirracistas.

O que não quer dizer, que os movimentos antirracistas só operem mediante acontecimentos ruins. Não, o engajamento desses grupos e lideranças é contínuo e estruturado. Geralmente, suas ações acontecem nas escolas, nas universidades, nas associações de bairro, nas igrejas, nas rádios e TVs comunitárias, nos projetos sociais em geral.

E, embora, aparentemente anônimo, esse trabalho é muito significativo na construção da consciência sobre o racismo e os movimentos antirracistas. Durante protestos e passeatas, por exemplo, as pessoas não estão lá inflamadas somente por acontecimentos e fatos ruins; mas, especialmente, pelo entendimento em relação a sua presença e participação na mobilização coletiva em torno do assunto. A construção de conhecimento e educação cidadã é que conduz essas pessoas a sentirem vontade de se expressar, de se manifestar, de participar ativamente das mudanças que elas almejam para suas vidas e para o mundo.

Por isso, não é tão fácil respirar. É tanto esforço. Tanto empenho. Tanta dedicação, em nome de algo que deveria ser tão normal, mas não é. Para respirar temos que mudar. De jeito. De foco. De pensamento. De sentimentos. De olhar. Porque no fim das contas, “mudar é tão precioso como respirar e se não o fizermos livremente, a vida encarregar-se-á de o fazer por nós, mas de uma forma mais violenta e sem misericórdia. É o preço a pagar por nos deixarmos morrer por dentro e desfalecer tudo o que está à nossa volta há tanto tempo” (Gustavo Santos – escritor).


Um grito de indignação


Um grito de indignação

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Uma pessoa esquálida e faminta. Um ser humano entregue à própria sorte no abandono das ruas. Uma fila de desempregados em busca de uma oportunidade. Um indivíduo despojado dos próprios documentos de identificação social, por falta de acesso aos serviços responsáveis. ... São muitos os retratos da indignidade humana, no Brasil. Todos graves e ultrajantes. Um constrangimento sem fim. Uma situação que se arrasta, que alterna entre períodos de melhora e piora; mas, que jamais teve uma solução contundente e efetiva.

Mas, certamente, ninguém cogitou a possibilidade dessa indignidade alcançar tão duramente o Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar das suas fragilidades e inconsistências, em muitos momentos, ele sempre se manteve a estrutura de apoio necessária a grande massa da população brasileira, no âmbito do serviço público. A qualquer tempo, em quaisquer eventualidades, os cidadãos brasileiros têm a consciência de que podem contar com essa rede de atendimento e serviços essenciais à saúde.

Acontece que, em razão de estarem tão absortas pelo ritmo frenético do cotidiano e suas obrigações, as pessoas acabam não estabelecendo uma conexão sobre os fatos que permeiam a sua realidade e só se dão conta, quando a situação colapsa efetivamente. Entretanto, a Economia e a Saúde são dois elementos estruturais da sociedade que caminham simultaneamente juntos.

De modo que as perturbações no campo econômico, no país, refletem diretamente no campo da saúde, ou seja, pode haver restrições orçamentárias para a manutenção dos serviços públicos de saúde, pode haver uma sobrecarga no SUS decorrente de um contingente de pessoas que perderam o trabalho e a possibilidade de um plano de saúde privada, pode haver cortes nos programas de apoio médico-hospitalar – medicação gratuita, mutirões de cirurgias, serviços de reabilitação física –, pode haver mais dependência dos serviços do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pela demora de algum atendimento que tenha impactado a saúde do cidadão – uma cirurgia, um tratamento específico –,  ...

Com a instalação da Pandemia essa situação tornou-se mais evidente. O problema é que não houve uma resposta adequada as demandas que surgiram e, inevitavelmente, o gargalo se afunilou ainda mais. Ao retardar na sua tomada de decisões, o país expôs a população a uma situação de indignidade sanitária explícita.

São filas e mais filas, aguardando por um leito em enfermaria ou em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A insuficiência no abastecimento de oxigênio para os hospitais e unidades de atendimento à saúde. A falta das medicações necessárias para a intubação dos pacientes em estado gravíssimo. As condições de sepultamento das vítimas, em razão do aumento exponencial dos óbitos. A inexistência de uma rede de apoio auxiliar para dar continuidade ao tratamento pós-COVID-19 – fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, psicologia, assistência social – aos pacientes que apresentaram sequelas da doença. A lentidão na aquisição e na imunização da população. Enfim...

O pior é que essa situação extrapolou as fronteiras do atendimento público e chegou até os serviços privados ou particulares. Então, para qualquer lado que se olhe, o caos e a indignidade estão presentes. De modo que a população, na sua grande maioria, está apavorada, com medo de precisar dos serviços de saúde e morrer à mingua, desassistida e, para completar, distante da família.

Um sentimento tão profundo que não se restringe apenas aos eventuais pacientes; mas, especialmente, a todos os profissionais que estão nas linhas de frente da Pandemia. Afinal, eles estão expostos diariamente ao vírus; mas, também, as condições exaustivas e insalubres impostas pela alta demanda pandêmica acrescida das situações de rotina que continuam a acontecer.

Cada relato, que chega dos serviços de saúde no Brasil, soa como um grito de desespero e horror, que poderia ter sido, no mínimo, mitigado. De repente, emerge uma consciência ácida e cruel do quanto a indignidade tem sim, suas raízes na incompetência, na negligência, na irresponsabilidade humana. De algum modo, o ser humano aceita que seus semelhantes sejam privados da dignidade, dos seus direitos fundamentais, da sua própria vida, quando vira as costas, se omite e se cala diante dos absurdos.

Infelizmente o ser humano tende a ser assim. Como escreveu Bertolt Brecht, “Primeiro, levaram os negros. Mas, não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida, levaram alguns operários. Mas, não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois, prenderam os miseráveis. Mas, não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois, agarraram uns desempregados. Mas, como tenho meu emprego, também não me importei. Agora, estão me levando. Mas, já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”. O ser humano sempre se esquece que ao se esquecer dos outros pode haver alguém que se esqueça dele também.

É assim que se fia a indignidade humana. Despercebendo. Desqualificando. Desconsiderando. Invisibilizando os outros, até que, desaparecemos também. Quando nos permitimos acreditar que uns são mais que outros, a naturalizar as desigualdades, nos abstemos de pensar que essa ideia não é privativa da nossa consciência e que outros podem tê-la também. Por isso há tantas indignidades espalhadas pelo mundo e tantos indigentes cegos da sua própria condição.


segunda-feira, 19 de abril de 2021

COLONIALISMO - Histórias e perspectivas


COLONIALISMO - Histórias e perspectivas

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Há algumas décadas, pessoas ao redor do mundo, especialmente aquelas cujos países de origem foram diretamente impactados pelo Colonialismo, têm se dedicado a estudar, ressignificar e reescrever a história, a partir da perspectiva do colonizado e não do colonizador.

Não é sem razão, portanto, que tem sido possível assistir a um embate cada vez mais acirrado em torno de questões como o racismo, a aculturação, dizimação e abandono dos povos indígenas, a intolerância religiosa, a utilização de métodos profundamente degradantes e exploratórios na contramão das diretrizes do desenvolvimento socioambiental sustentável.

Afinal, chegamos ao século XXI marcados por todas essas feridas históricas, as quais, de tão profundas, não foram devidamente curadas pelas gerações que sucederam ao Sistema Colonial.  É claro, que estes são apenas alguns tópicos dentre tantos outros, às vezes mais específicos para alguns lugares do que para outros; mas, de suma importância ao que se espera para o futuro global.  

Porque, colocando o devido reparo na realidade, as mazelas contemporâneas não representam mais do que a reverberação dos passados longínquos da civilização, quando a permissividade humana ultrapassou as raias do bom senso, da dignidade e do próprio instinto de sobrevivência. A verdade é que a sociedade do século XXI tornou-se vítima de suas antecessoras, ainda que, não tenha se dado conta desse processo histórico.

Dizem que “quem conta um conto aumenta um ponto”; mas, quando o assunto é a história da humanidade, mais do que pontos acrescidos, temos muitos pontos brutalmente distorcidos. Abriram-se diversos precedentes para justificar fatos injustificáveis, a fim de exaltar a importância e o poder de alguns poucos em detrimento da invisibilização e subalternidade de milhares de outros. Quem detinha o acesso aos registros, as informações, ao letramento eram, justamente, os poderosos; de modo que, a história ficou enviesada.

Só após o fim do Colonialismo, com a proclamação da independência das ex-colônias, é que as gerações de colonizados puderam empenhar seus esforços para contar a sua versão da história e trazer luz sobre discursos e narrativas sombrias que teimam em povoar o inconsciente coletivo em vários lugares do planeta.

É um trabalho de luta e dedicação, inclusive, na preservação do que restou da própria cultura ancestral, no que diz respeito às crenças, as religiões, as festas, a organização social, as línguas e as linguagens.

Sim, porque o Colonialismo dizimou tribos indígenas e tribos africanas inteiras, no afã de utilizá-las como mão-de-obra escrava nas colônias. Vendidos como mercadorias. Explorados como objetos. Açoitados até a morte na sua resistência e insubordinação. O que explica porque o fim do Colonialismo não apresentou nenhuma manifestação de desagravo público a esses indivíduos.

Ao contrário, eles foram novamente invisibilizados e não computados no contexto histórico, dentro da sua importância e dignidade. Restando-lhes as migalhas e as esmolas que os governos acharam por bem lhes oferecer. Relatados como gente de “segunda classe” nas páginas dos livros e documentos.

A mudança de regime governamental, portanto, não mudou a organização social do mundo. O fim do Colonialismo não impactou a vida dos brancos. Eles continuaram a se perceber mandatários, figuras de maior relevância, proprietários de espaços geográficos e lugares de fala, ditando regras e costumes.

Razão pela qual, os velhos hábitos colonialistas continuarem persistindo, só que repaginados nos tempos das tecnologias e do mundo virtual, graças as classes A e B consumidas pelos valores da política de direita. O que significa uma defesa ardorosa da hierarquia social, das desigualdades, do conservadorismo e dos direitos naturais.

Porém, as chamadas minorias sociais, incluindo aquelas que viveram diretamente o Colonialismo, fazem uma contraposição, também, muito aguerrida, a esse comportamento. Fato que eleva as tensões na sociedade contemporânea, pela busca do espaço, da inclusão, do lugar de fala, por quem foi obrigado a passar, séculos, à margem da própria história. O importante é que eles têm conseguido assegurar a legitimidade e a legalidade nesse movimento ao mesmo tempo contestador e reivindicatório.

A relevância de todo esse processo, então, é que ele fundamenta o surgimento de uma identidade muito mais consistente para o país. As ex-colônias padeceram, durante um longo tempo, o fantasma de uma “identidade caricata” da sua ex-Metrópole, na medida em que negavam as suas origens verdadeiras. Haja vista, o Brasil indígena que precedeu a chegada dos Portugueses, em 1500.

Segundo historiadores conseguiram apurar, eram aproximadamente 3,5 milhões de indígenas, distribuídos entre 4 grupos linguísticoculturais principais, os Tupi, os Jê, os Aruaque e os Caraíba. Depois, pelas próprias práticas colonialistas, nos tornamos uma mistura de brancos, índios e negros; algo bem distante do padrão europeu caucasiano que aportou aqui nas caravelas.

De modo que não há razões que sustentem a hipocrisia colonialista, em pleno século XXI. Essa gente diferente, para quem, muitos, torcem o nariz está em nós, na nossa essência, no nosso DNA, de um jeito ou de outro. Ninguém aqui pode se considerar “leite pasteurizado”, raça pura, “made in” algum país de primeiro mundo qualquer. Somos, portanto, o resultado dessa reunião antropológica, sociológica e filosófica de raças. Somos plurais diversas vezes em nós mesmos.

Assim, o que todas essas considerações e reflexões trazidas pelas correntes pós-colonialistas querem nos dizer é: “não acredite em algo simplesmente porque ouviu. Não acredite em algo porque todos falam a respeito. Não acredite em algo simplesmente porque está escrito em seus livros religiosos. Não acredite em algo só porque seus professores e mestres dizem que é verdade. Não acredite em tradições só porque foram passadas de geração em geração. Mas depois de muita análise e observação, se você vê que algo concorda com a razão, e que conduz ao bem e benefício de todos, aceite-o e viva-o” (Buda – Sidarta Gautama). Porque, queira você admitir ou não, a história tem sempre mais de uma perspectiva.