domingo, 31 de outubro de 2021

Por outro lado...


Por outro lado...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não só é compreensível; mas, totalmente, aceitável que uma expressiva parcela da população brasileira esteja se sentindo “desprezada no canto do salão de baile, sem que ninguém a convide para dançar”. E, talvez, pareça difícil, ou quase impossível, mudar o entendimento acerca desse panorama porque estamos bem no olho do furacão, no meio do desenrolar da história, de modo que essa condição não nos permite uma clareza e objetividade necessárias para dar aos fatos o lugar mais adequado e condizente. Daí a razão pela qual eu decidi trazer essa reflexão.

Eu sei que o clima está tenso. Há uma atmosfera pesada nos rodeando. O ar está irrespirável. A vida teima em causar sucessivas inquietações e desconfortos. Nada parece estar no seu devido lugar. Os dias tendem a passar sobre nós como verdadeiros rolos compressores. As respostas, as soluções, os caminhos se apresentam nebulosos, confusos, distantes e inacessíveis. Pelo menos, é assim que enxergamos e sentimos a dinâmica cotidiana à flor da pele. Portanto, essa é a perspectiva da nossa realidade como elemento participante e integrado nessa conjuntura.

E é justamente aí, que nos perdemos em meio ao caos. Algo que para ele é um verdadeiro presente. Porque ele sabe que assim não teremos condições de interferir nos seus planos.  Tudo o que ele não quer é que olhemos para o mundo, para vida, para o país, na condição de alguém que vê tudo a uma certa distância, que não está diretamente envolvido nos acontecimentos, que pode pesar e ponderar os fatos. Afinal, isso nos traria tranquilidade, equilíbrio, sensatez para alimentar nossas esperanças, nossos sonhos, nossos planos, nossos amanhãs.

A perspectiva caótica induz o pensamento a uma tendência de só enxergar o erro, o equívoco, o absurdo, porque se fundamenta num ideário de que a vida flui em uma linearidade absoluta, que homogeneíza as transformações, como se acontecessem todas ao mesmo tempo, a fim de que os resultados pudessem ser celebrados sob uma inteireza perfeita. Ora, mas não é assim que “a banda toca”! Antes fosse, mas não é. A vida é regida por movimentos compassados e descompassados que possibilitam construir o seu equilíbrio. Nada de “combos”, de pacotes fechados de coisas boas ou rins entregues na porta de casa de uma vez só.

Enquanto nos distraímos absortos com o caos, com as tragédias, com os despautérios, com as vergonhas, com os movimentos retrógrados ..., em seu silêncio e discrição absoluta, a vida vai tecendo as redes das suas metamorfoses, as quais resultarão em passos importantes adiante. A evolução humana e social não é uma obra do acaso, nem uma coincidência feliz, ela é processual, resultado de ações ao longo do tempo que vão se somatizando, se agregando, se consolidando para alcançar um determinado fim.

Talvez, pela falta do hábito de realizar “balanços” periódicos da vida, como fazem os comerciantes de vez em quando, perdemos de vista as conquistas alcançadas em cada década e século da existência humana. Presos nas perdas e prejuízos, temos a impressão de que só caminhamos para trás, de que não houve avanços, só retrocessos. A consequência direta disso é que não se percebe o tamanho da engenharia humana, da sua capacidade criativa e inovadora, como se fôssemos habitados somente por uma tendência natural ao destrutivo, ao maléfico, ao ruim.

A grande verdade é que tivemos conquistas materiais e imateriais importantíssimas até aqui. Quebramos paradigmas. Trouxemos os tabus para as mesas de discussão. Ressignificamos crenças e valores obsoletos. Reanalisamos nossos princípios e condutas. As ruas se encheram de manifestações por direitos humanos, por trabalho e dignidade, por igualdade, por justiça, por acessibilidade, pela sustentabilidade ambiental, pelas minorias, ... e o mais importante disso, elas estavam cheias, repletas da diversidade humana como nunca se viu. Homens, mulheres, LGBTQIA+, idosos, crianças, brancos, negros, indígenas, mestiços, enfim... E em cada lugar por onde esse movimento passa, uma onda de desdobramentos se arrasta ao redor do mundo, arrebatando mais seguidores, mais multiplicadores de ideias e ações.

O que demonstra, inclusive, que houve conquistas nos campos da emoção e do sentimento. A própria sensação de solidão, tão bem delineada como característica da contemporaneidade, quando bem observada, se perde na vastidão dessa euforia, dessa comunhão coletiva, dessa construção de empatia. Aliás, nessa jornada rumo ao arrefecimento da pandemia da COVID-19, a necessidade do contato, do toque, do abraço, do beijo, da convivência estreita no cotidiano, ressurgiu de maneira avassaladora. Como se as pessoas tivessem redescoberto a importância de estar com outro, lado a lado, olhos nos olhos, para sua sobrevivência, o seu bem-estar.

Então, quando as pessoas se dão conta dessas questões há um fortalecimento natural, não somente de autoestima; mas, sobretudo, na sua capacidade de superação das adversidades. Ter uma razão para a qual lutar é o que move as pessoas. Entender que o lado bom da vida ainda existe, que temos conquistas a comemorar, ... tudo isso é gatilho para não esmorecer, para seguir adiante, para vencer os obstáculos, para colocar cada ponto da vida no seu devido lugar. E a verdade é que precisamos dessa percepção, cada vez mais, porque o momento está tendendo ao lado mal, pesado, ruim, fazendo com que nos sintamos esgotados, demasiadamente cansados, de tudo, em tempo integral.

Buscar uma nova sintonia para os pensamentos, as emoções, os sentimentos, é uma questão de sobrevivência. Mas é essencial compreender que “você pode sobreviver, mas sobrevivência não é vida” (Osho- guru indiano), porque sobreviver traz uma ideia que se limita a uma resignação dolorosa, a aceitação de uma vida de migalhas, de restos, de marginalização. Por isso, resistir tem que ser a nossa palavra de ordem. É através dela que reconquistaremos, diariamente, o sentido da vida. E para fazê-la saltar da teoria para a prática depende de nós, da nossa disposição, da nossa vontade. Assim, cada um deve exercer essa resistência a fim de que sua energia dissipada se reúna dentro do coletivo e retroalimente a grande força conjunta, a força da humanidade, no contínuo do tempo. 

sábado, 30 de outubro de 2021

O peso do “invisível” sobre a vida


O peso do “invisível” sobre a vida

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muitos, talvez, não se recordem da história do “Vale da Morte”, como ficou conhecida a região do vale de Cubatão, no estado de São Paulo, por conta dos altíssimos índices de poluição decorrentes do parque industrial ali localizado. As chaminés em frenético movimento de dispersão de fumaça tóxica, liberando toneladas de monóxido de carbono, benzeno, óxido de enxofre e de nitrogênio, hidrocarbonetos e particulados diversos, promoveram impactos socioambientais tão drásticos que ganharam repercussão internacional.

Entre as décadas de 1970 e 1980, a população do local conviveu com os impactos da insalubridade, dada a fragilidade da legislação ambiental no Brasil e, por isso, dos mecanismos fiscalizatórios e preventivos. Assim, “o ar de Cubatão no início dos anos 80 era denso, possuía cheiro e cor. Segundo dados da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo (CETESB), 30 mil toneladas de poluentes eram lançadas por mês no ar da cidade, peixes e pássaros sumiram da poluição de Cubatão, pois não havia condições naturais para sobreviverem e nem para se reproduzirem” 1.

No entanto, o efeito mais cruel e perverso veio do fato de que “entre outubro de 1981 e abril de 1982, cerca de 1800 crianças nasceram na cidade, destas, 37 já nasceram mortas, outras apresentavam graves problemas neurológicos e anencefalia” 2. Eram chamadas de “cara de sapo” porque tinham uma cabeça completamente achatada, sem cérebro. Decorrência da inalação constante da poluição, que também promovia uma exacerbação dos casos de doenças respiratórias na população local.

A mudança, porém, só começou a se delinear de maneira mais satisfatória a partir da década de 1990, tendo em vista um conjunto de mobilizações internacionais impulsionadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e outras entidades e Organizações Não-Governamentais (ONGs) ligadas as questões ambientais e de sustentabilidade. O que trouxe melhora para os parâmetros de análise da poluição; mas, não uma solução concreta para os problemas enfrentados, os quais Cubatão foi só mais um exemplo dentre milhares espalhados ao redor do planeta.

E esse é o ponto-chave para a reflexão. Quando as legislações ambientais se propõem a estabelecer limites toleráveis para a população, o que elas acabam fazendo é criar uma resposta ambiental e socialmente aceitável, ao invés de uma medida que proteja de maneira efetiva o ser humano e o meio ambiente. Ora, as grandes plantas industriais, por exemplo, operam diuturna e ininterruptamente, de modo que a exposição a esses poluentes ocorre de maneira contínua e em grandes quantidades, tanto pelo ambiente quanto pela população.

Assim, nesses casos, as escalas ou medidas de tolerabilidade e de risco à saúde, quase sempre desconsideram a heterogenia populacional. Sim, somos diferentes, constituídos por especificidades naturais; mas, não é isso que importa para esse tipo de análise. Tratam-se de aspectos como gênero, idade, raça, peso, altura, informações nutricionais, presença ou não de comorbidades, tempo de exposição aos agentes poluentes e tipo de poluente, que determinam as probabilidades de maior ou menor letalidade e intercorrências à saúde das pessoas.

De modo que a maneira como são analisadas essas referências, propostas pela legislação ambiental, tende-se a estabelecer um enviesamento dos resultados e, por consequência, a construção de um panorama errático para a aplicação de fiscalização e de controle ambiental, no campo das atividades geradoras de impacto negativo. Colocando em risco, principalmente, os segmentos mais vulneráveis e desassistidos da população. Afinal, quanto mais biológica e socialmente fragilizadas estiverem as pessoas expostas continuamente aos agentes poluidores, mais graves e letais podem ser as consequências desse processo. Aliás, muitas das doenças surgidas nesse contexto apresentam uma progressão lenta e duradoura, que se torna acentuada em razão da exposição incessante.

Não é à toa, portanto, que desde a década de 1960 a humanidade se viu obrigada a enfrentar a reflexão sobre os desafios socioambientais oriundos das Revoluções Industriais. Em quase três séculos desde sua primeira geração, ocorrida na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, o impacto das consequências foi se tornando cada vez mais impossível de invisibilizar e de contemporizar. Gradativamente, as inúmeras promessas de realização, sucesso, desenvolvimento e fortuna que encheram os olhos do mundo foram sendo desconstruídas para dar lugar as reparações, indenizações, morticínios, desequilíbrios e instabilidades socioambientais.

Um breve apanhado junto a história, para se dar conta de que os grandes eventos de discussão ambiental ocorreram em número bem menor do que as grandes fatalidades que eles tentam evitar. Muitas delas, inclusive, inspiraram o cinema mundial a se basear para construir grandes enredos e promover preciosas reflexões. A mais recente delas é “Minamata” 3, dirigida por Andrew Levitas e estrelada por Johnny Depp, Bill Nighy, Minami Hinase e Hiroyuki Sanada, que trata do “Desastre de Minamata” 4, quando essa cidade japonesa foi envenenada por mercúrio lançado no mar por uma grande indústria química.

Esse foi um caso tão emblemático na história mundial que “foi realizado um tratado internacional com o objeto de oferecer proteção à saúde humana e ao meio ambiente, sendo reconhecido o impacto do mercúrio e seus compostos. Em outubro de 2013, aprovado o texto final da Convenção de Minamata, foi aprovado e assinado por 92 (noventa e dois) países, incluindo o Brasil” 5. No entanto, apesar da gravidade que representa a utilização do mercúrio teima a acontecer de maneira inadvertida e indiscriminada, como nos garimpos ilegais para extração de ouro.

Segundo o núcleo brasileiro da Organização Não-Governamental World Wide Fund for Nature (WWF), “o bloqueio de uma carga de 1,7 toneladas de mercúrio no porto de Itajaí, em Santa Catarina, em 29 de março de 2018, dá uma ideia do tamanho do desafio que o Brasil enfrenta para cumprir a Convenção de Minamata [...]. O destino seria, na verdade, o garimpo ilegal de ouro na Amazônia, mostrou investigação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis), responsável pelo controle nacional do comércio, da produção e da importação de mercúrio metálico” 6.

Pois é, nem tudo é ficção, nem tudo é invenção, nem tudo corre dentro dos parâmetros, ... A cada segundo o planeta é acometido por um risco diferente provocado pelo próprio ser humano. Negando, invisibilizando, distorcendo a realidade é que se chegou rapidamente à beira do precipício. Sobreviver ou não está nas mãos de cada ser humano; assim como, se contaminar ou não, morrer de fome/sede ou não ... Seja por mera ironia (ou não) do destino, a contemporaneidade que rejeita todo e qualquer limite, em nome do infinito controle sobre a própria liberdade, está refém do limite ambiental se quiser sobreviver. A iminência de xeque-mate está bem debaixo do nariz, aguardando por alguém que tenha cacife ou coragem para pagar para ver mais uma vez. Então, não adianta fugir, não adianta correr, muito menos disfarçar o temor que corre nas veias, porque há tempos já havíamos sido avisados sobre uma tal “feia fumaça que sobe, apagando as estrelas” 7; mas, insensíveis demais para aprender com poesia, não demos a menor atenção.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As sombras e as escuridões coloniais em plena contemporaneidade


As sombras e as escuridões coloniais em plena contemporaneidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O silêncio é o maior inimigo da transformação. Isso fica muito claro, no Brasil, quando se decide discutir e revolver as sombras e as escuridões coloniais que nutrem questões importantes como o racismo, as práticas escravocratas, as desigualdades e as violências sociais. Na medida, então, em que se dá vez e voz para a história, a partir de novas perspectivas, outras dimensões dos problemas se descortinam, revelando a grandeza dos desafios a serem enfrentados.

Infelizmente, o Colonialismo enquanto prática político-administrativa e econômica ficou no passado, em séculos anteriores a esse; mas, as suas marcas e os seus desdobramentos resistem ao tempo. Afinal, no campo da mobilidade social praticamente não houve mudanças. O que significa que a pirâmide permanece organizada, estruturada da mesma forma, legitimando o poder nas mãos de gerações em gerações abastadas que se sucedem.

Daí a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde de ontem, 28 de outubro de 2021, ao consagrar a injúria racial como crime imprescritível e equiparando-o ao crime de racismo. Esse foi um marco histórico, porque abre um precedente para ruptura com valores, crenças e princípios, não apenas limitados e retrógrados; mas, absurdamente contrários ao respeito à dignidade humana, a civilidade, ao senso humanitário. Um grande passo, portanto, dentro de uma longa jornada a ser cumprida.

E não pensem que essa observação seja sinal de desânimo ou desesperança, porque não é. Mas, não se pode perder de vista a realidade que nos rodeia, a qual está ainda muito impregnada pela constante reafirmação dos valores coloniais, especialmente, por parte dos setores mais conservadores da população. Amiúde podemos constatar que a dinâmica cotidiana teima em fazer parecer que a distância entre o século XVI e o século XXI, na prática, é menor do que na teoria.

Basta ver os resultados apontados pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, sobre trabalho análogo à escravidão no país. De janeiro a setembro deste ano foram resgatadas 1015 pessoas nessa situação; mas, “os números desse ano superam o total de 2020, com 936 pessoas resgatadas, e se aproxima do registrado em 2019, 1.131 casos”1. É importante ressaltar que a incidência dessas ocorrências predomina no trabalho rural, conforme lista divulgada pelo próprio Ministério 2.

Essa situação possibilita entender que os preconceitos, as violências, o menosprezo pelas parcelas mais vulneráveis da sociedade, vai muito além das ofensas e agressões verbais. Ela se manifesta contundentemente materializada pelas propostas escravocratas presentes nas relações de trabalho contemporâneas.

Trata-se de uma “’condição extremamente precária à qual esse trabalhador é submetido. São alojamentos precários, falta de acesso a água potável, a alimentação, a banheiros’, explicou o subsecretário de Inspeção do Trabalho”. Sem contar que “’em muitos casos, ainda se verificam também jornadas exaustivas, sem descanso, e servidores por dívida’, completou ele” 3. O pior é que a sociedade não se questiona, não reflete, a razão pela qual isso continua acontecendo no país, em pleno século XXI.

Mas, como? Se esse quadro é fruto do descaso, do abandono, das desigualdades que acirram a inacessibilidade de milhões de pessoas aos direitos humanos fundamentais. Na medida em que são lançadas à margem da sociedade, elas passam a constituir um contingente de mão-de-obra que irá servir aos interesses de um trabalho precarizado, particularmente, no que diz respeito aos direitos humanos e trabalhistas. Até que, vez por outra, a intervenção do Estado promova o seu resgate diante de gravíssimas circunstâncias.

Pena, que isso seja um paliativo, porque a ausência de políticas públicas que possam efetivamente propiciar-lhes condições de mudar os paradigmas de sua existência, tende a devolvê-las a esse cenário absurdo novamente. Ora, a fome não espera; a sobrevivência não espera. E como elas não foram devidamente instrumentalizadas para sobreviver dignamente na sociedade, elas só se reconhecem aptas a realizar esse tipo de trabalho, aceitando o que dele resultar.

No fim das contas, essa legião de pobres diabos, desalentados e esquecidos, não passa de um escudo humano dentro da sociedade. Ora, não são eles os guardadores do enriquecimento de uma minoria, que aceita vê-los trabalhar por raspas e por restos? Não é por eles que se promete e nunca se cumprem as promessas retóricas vazias, de campanha em campanha eleitoral? Não é em nome deles que se desenha uma pseudodignidade assistencialista, que não se constrange em torná-los “bichos”4?

Não é sem razão, portanto, que mais uma vez serão escudos para camuflar as más intenções que borbulham no “caldo” da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios. Sim, porque tomando como justificativa central a criação do “Auxílio Brasil”, programa temporário de transferência de renda que vem a substituir o Bolsa Família, pretende-se permitir o parcelamento das dívidas da União com pessoas físicas e jurídicas, estados e municípios, reconhecidas em decisões judiciais definitivas. O que representa uma estimativa de economia em torno de R$33,5 bilhões no próximo ano, podendo ser aplicada também para outros gastos.  

Acontece que o espaço fiscal possibilitado pela PEC passa a ser de aproximadamente R$83 bilhões, segundo cálculos do Ministério da Economia, um valor muito superior ao custo operacional do “Auxílio Brasil”, que gira em torno de R$51,1 bilhões. Considerando que esse novo programa assistencial é de caráter temporário e que 2022 é ano eleitoral, não é difícil de imaginar que esses recursos se diluam sem produzir efeitos práticos e permanentes. Corre-se o risco, inclusive, de que parte deles se transforme em mais caminhos de oportunismo para emendas parlamentares. De modo que, em médio e longo prazo, se somatizariam aos desafios da economia brasileira já existentes.

Como é possível perceber através dessa breve reflexão, os problemas seculares brasileiros tendem inevitavelmente a se convergir para o ranço colonial. Daí a necessidade de compreender linearmente os caminhos da história nacional. Quem manda. Quem obedece. Quem tem dinheiro. Quem não tem. O que significa que o presente não é um fruto do “de repente”. Há sempre um elo se conectando a outro, a outro, a outro, ... que ajudam a explicar a repetição e a reafirmação dos acontecimentos ao longo do tempo, tanto na perspectiva do bom quanto do ruim.

Mas, talvez, seja hora de compreender definitivamente que “não importa de onde vim, mas sim aonde quero chegar” e isso, implica necessariamente em olhar para a história de uma outra maneira. Porque “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias continuarão glorificando o caçador”. Logo, “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”; pois, “temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio bastante parecido com estupidez”.

A partir desse ponto, então, se torna realmente possível compreender o significado da condição humana, ou seja, “O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio).

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Máscara: o dilema do momento


Máscara: o dilema do momento

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muito bochicho por conta da liberação do uso de máscaras em diversas cidades brasileiras; mas, polêmicas à parte, antes de qualquer decisão é fundamental tecer algumas considerações a respeito. Esta não é só uma questão objetiva, no que tange às medidas preventivas contra a COVID-19; mas, principalmente, uma questão subjetiva, decorrente do sentimento de liberdade e poder de escolha.

Vejamos que, bem antes da Pandemia, a máscara já era comumente usada nos países asiáticos, por conta da poluição. Temos o hábito de nos esquecer de que o ar, especialmente nos centros urbanos, é constituído não só por poluentes perigosos; mas, por inúmeros vírus, bactérias, fungos e outros elementos biológicos infectantes. Daí a ideia de construir uma barreira física ser tão relevante.

Trata-se de um hábito muito simples de ser incorporado ao cotidiano das pessoas e um excelente colaborador para reduzir a incidência de surtos e epidemias na população. Segundo a Organização Mundial da Saúde, “A gripe continua sendo um dos maiores desafios de saúde pública do mundo. A cada ano, estima-se que haja 1 bilhão de casos de influenza. Dessas ocorrências, de 3 a 5 milhões são graves, provocando de 290 a 650 mil mortes por doenças respiratórias relacionadas” 1.

Bom, mas aí você pode pensar que no caso da gripe há vacina. Acontece que para diversas doenças disseminadas pelo ar através de gotículas contaminadas há vacinas; mas, na contramão disso, há um movimento antivacinas correndo o mundo e criando Fake News para dissuadir as pessoas a não se imunizarem.  Desse modo, as máscaras ajudam a pensar sobre o fato de que quem vê cara nem sempre vê a doença.

Afinal, cada vez mais vivemos sob o regime de aglomerações voluntárias e involuntárias no cotidiano. O que significa que milhares de pessoas que circulam entre nós podem, mesmo sem saber, carregar o vírus da gripe, ou do resfriado, ou da poliomielite, ou do sarampo, ou da catapora, ou da caxumba, ou da rubéola. Ou a bactéria da tuberculose, ou da coqueluche, ou da difteria, ou da pneumonia, ou da meningite, ou da hanseníase.

De modo que a máscara é um agente preventivo e protetor, quando usada corretamente. Além disso, nas entrelinhas dessa história encontra-se o fato de que a eficácia desse tipo de medida reduz o número de pessoas doentes e, por consequência, os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) com internações, tanto em leitos de enfermaria quanto em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Portanto, as máscaras, dentro do conjunto de medidas preventivas básicas, ou seja, higienização frequente das mãos com água e sabão ou álcool em gel, imunização quando se dispuser de vacina para aquele determinado agente infectocontagioso e controle na exposição a ambientes aglomerados e com baixa ventilação, são um instrumento de controle de gastos na saúde pública.

No entanto, apesar de tudo isso ser muito fácil de se compreender e aplicar, temos um movimento, quase que insano, em nome da liberação do uso de máscaras. A razão disso é muito simples, a máscara é um símbolo da Pandemia e o desgaste natural decorrente desses quase dois anos de convivência estreita com o vírus Sars-Cov-2 e com todas as perdas que ele desencadeou faz com que as pessoas queiram acreditar que o pior já passou e a guerra foi, enfim, debelada.

É muito difícil para o ser humano admitir que está sob o jugo de um inimigo invisível aos seus olhos. A Pandemia colocou o homem de joelhos diante da sua insignificância, o fez perceber que ele não pode tudo, que ele não resolve tudo, que há limites a serem respeitados. Para alguns isso é compreensível; mas, para outros não. Gera fúria. Gera raiva. Gera indignação. Gera afronta. E vimos isso com clareza, em diversos momentos, em diversos espaços sociais.

Acontece que retirar a máscara não muda os fatos, não altera a conjuntura real dos acontecimentos. A Pandemia só acaba quando o vírus deixa de circular livremente pelo mundo, quando a quase totalidade da raça humana estiver com o protocolo de imunização completo. E qual é o prognóstico para essa situação? Ninguém sabe. Há países que ainda não dispõem de nenhuma dose de vacina, que não têm recursos suficientes para comprá-las ou porque encontram resistência de seus governantes em adquiri-las.  

Então, quando retiramos as máscaras aqui é como se nos descolássemos do mundo, como se nos resumíssemos a nossa própria bolha territorial. Só que isso não é possível. Somos parte integrante e integrada de um mundo globalizado e dentro de um contexto de deslocamentos intensos.

Portanto, isso não passa de uma tentativa desesperada de exacerbar uma superioridade que não se sustenta, que não tem fundamento. Como se não tivéssemos entendido e vivenciado o avassalador acontecimento da pandemia do mesmo modo que os demais seres humanos ao redor do planeta.

Mas, não é só isso. Pensando na citação de Oscar Wilde de que “O homem é menos ele mesmo quando fala de sua pessoa. Mas deixe que se esconda por trás de uma máscara, e então ele contará a verdade”, talvez seja esse o fardo tão pesado que o faz querer se livrar da máscara o quanto antes.  

Ora, ela o induz a despir-se da persona que transita socialmente e sobre a qual ele tem controle.  O que significa que com a máscara ele se vulnerabiliza, ele se coloca humano, menos herói, menos infalível, menos imortal; algo que ele não quer ou não deseja admitir.

No fim das contas, a questão não são as máscaras, ou as vacinas, ou as medidas de higiene, ... o que causa tanto desconforto e exasperação nos indivíduos. Trata-se do fato de que “Todo problema começa quando as pessoas esquecem que são humanas” (Oliver Wolf Sacks – neurologista inglês). Porque somente reconhecendo a humanidade uns nos outros é que se torna possível exercitar a compreensão de que “Um mundo meramente feliz não é suficiente; deve ser um mundo que tenha alguma chance de sobrevivência” (Burrhus Frederic Skinner – psicólogo norte-americano).


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Como diz o dito popular, “Cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”


Como diz o dito popular, “Cautela e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Entendo que são tempos difíceis; mas, me incomoda certo movimento de “otimismo motivacional”, o qual tende a fazer com que as pessoas analisem a realidade sem a devida profundidade e reflexão.

Porque ainda que os números sejam uma expressão exata da vida, eles podem sim, confundir e enganar os menos avisados, quando não consideradas as variáveis que constituem a sua interpretação.

Afinal, como dizia o poeta alemão Friedrich Von Hardenberg Novalis, “Quando vemos um gigante, temos primeiro de examinar a posição do sol e observar para termos certeza de que não é a sombra de um pigmeu”.

Em recente relatório, o Fundo Monetário Internacional (FMI) revisou para baixo a sua previsão de crescimento global para 2022, considerando principalmente o fenômeno da inflação que tem afetado de maneiras distintas diversos países. Mas, não é só isso.

É preciso entender que a economia global vem se arrastando na esteira da pandemia e esta ainda não acabou. A heterogeneidade que marcou a gestão pandêmica no mundo se mostra cada vez mais visível, quando se comparam os números da imunização e se constata que há nações que não receberam uma dose sequer da vacina, até o momento.

Portanto, o vírus permanece circulando e em franca possibilidade de mutação, do surgimento de novas variantes, expondo as pessoas aos eventuais riscos de contaminação e sequelas.

O que, de diferentes formas, obstaculiza as relações sociais, especialmente, no campo laboral e comercial. Trata-se do caso, por exemplo, da falta de componentes eletrônicos, os quais sustentam as mais importantes cadeias produtivas na contemporaneidade.

Depois do surgimento da pandemia houve uma desaceleração do ritmo produtivo dessas empresas de alta tecnologia, por diversas razões, de modo que não apenas houve um encarecimento dos produtos que dependem desses componentes, como também, uma dificuldade de comercialização pela insuficiência de contêineres para o seu transporte.

E o mercado mundial entende que essas questões constituem um desafio que não deve ser resolvido em curto espaço de tempo, ou seja, o curso dessa desaceleração involuntária das indústrias em todo o mundo só deve ser superado em 2023.

Então, tudo isso traduz a lógica elementar da economia. Menos produção industrial. Menos consumo. Menos postos de trabalho. Menos dinheiro circulando na economia. Menos produtos disponíveis e mais caros, em razão da “lei da oferta e da procura”.

Algo que nos faz tirar os olhos do mundo e voltá-los para o cenário da nossa própria conjuntura, já impactada pré-pandemia por desajustes de políticas anteriores somatizados.

Assim, ainda que nossa economia seja ancorada pelo setor primário, que reúne as atividades agropecuárias e extrativistas, consolidando um rol de commodities importantes, tais como petróleo, laranja, soja, minério de ferro, café, carne bovina e celulose, as exportações dependem diretamente da intensidade de produção dos países compradores. Se há uma desaceleração lá fora, ela repercute diretamente aqui.

Sem contar que, pelo fato das commodities serem bens de consumo global, elas são comercializadas em bolsas de valores, cotadas geralmente em dólar, o que as torna extremamente sensíveis as variações no câmbio e nas políticas externas.

De modo que esse ajuste fino depende de fatores como o panorama da produção em larga escala, da capacidade de estocagem e transporte dessas commodities, os níveis de industrialização e comercialização globais, e os padrões de qualidade internacional.

Com base nessas e tantas outras análises reflexivas sobre a atual conjuntura do mundo e, em particular, a brasileira, é que mantenho a minha cautela sobre as notícias em relação ao mercado de trabalho no país.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o desemprego no Brasil atinge 14,1 milhões de pessoas, então, os dados divulgados ontem, 26 de outubro de 2021, pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Previdência, que apontam a geração de 313.902 empregos com carteira assinada no mês de setembro, parecem longe de suprir a demanda.

Mesmo considerando que “Ao final de setembro de 2021, o Brasil tinha saldo de 41,875 milhões de empregos com carteira assinada. Isso representa um aumento na comparação com janeiro deste ano (39,624 milhões de empregos) e, também, com setembro de 2020, quando o saldo estava em 38,684 milhões”1.

Afinal, é preciso considerar que parte desse número está sob “influência do Programa Emergencial de Manutenção do emprego e da Renda, iniciado no ano passado e reeditado em 2021”, ou seja, “os empregadores, para obterem os benefícios do programa, têm de manter o emprego do trabalhador por igual período de tempo da suspensão do contrato, ou redução da jornada”2.

Além disso, 17 setores da economia puderam aderir ao modelo de desoneração da folha de pagamentos, o que significa a substituição da contribuição previdenciária de 20% sobre o salário dos funcionários, por uma alíquota entre 1% a 4,5% sobre a receita bruta.

Inclusive, é importante ressaltar que, em relação à desoneração, o projeto que a estenderia até 2026 encontra-se parado, a aproximadamente um mês, na Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara Federal, aguardando votação em plenário.

O que tem provocado uma enorme tensão e instabilidade, na medida em que isso impacta negativamente sobre setores como as indústrias têxteis, calçadista, de proteína animal, de máquinas e equipamentos, da construção civil, de comunicação e do transporte público, que empregam cerca de 6 milhões de trabalhadores.

Segundo o sociólogo José Pastore, que é Presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio SP), essa situação pode significar “que muitas empresas serão obrigadas praticamente a dispensar empregados. São setores que ainda dependem muito da mão de obra e da participação dos trabalhadores. Esses últimos tempos foram marcados por muitos eventos adversos. Antes da pandemia, a gente já vinha num processo recessivo. Com a pandemia, isso se agravou ainda mais. Então, sem a desoneração, nós teríamos um quadro de emprego ainda muito mais grave do que esse que nós temos hoje”3.

Além disso, o movimento de geração de empregos com carteira assinada, que se tem no momento, já reflete uma redução significativa no salário de admissão desses funcionários. Algo que, também, não contribui para uma melhoria no cenário econômico nacional.

Tendo em vista que a redução salarial implica na insuficiência da capacidade de compra e da sobrevivência, no panorama dos altos juros e da inflação galopante; bem como, para afastar as ameaças de intensificação do empobrecimento e da miséria extrema, no país.

Como afirmou a escritora e ativista social norte-americana Helen Keller, “É um erro sempre contemplar o bom e ignorar o ruim, porque fazendo isso os povos negligenciam os desastres. Há um otimismo perigoso do ignorante e do indiferente”; por isso é que “O pessimismo torna os homens cautelosos, enquanto, o otimismo torna os homens imprudentes” (Confúcio – filósofo chinês). Talvez, seja esse o momento ideal, então, para se pensar a respeito.

 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Para retóricas vazias e delirantes ... ouvidos de mercador


Para retóricas vazias e delirantes ... ouvidos de mercador

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, seria uma maravilha se pudéssemos num piscar de olhos ou num estalar de dedos tornar a realidade ajustada aos nossos interesses e vontades! Mas, não é assim que acontece e a insistência em se permitir agir dessa maneira, só deteriora e compromete ainda mais a credibilidade dos discursos e narrativas manifestos, como se quem os fizesse não tivesse nenhuma consciência, habilidade ou competência para fazê-lo.

Já disse outras vezes que a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), que irá acontecer entre 31 de outubro e 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia, não tende a ser um palco para retóricas vazias e delirantes. Os problemas socioambientais não estão mais no campo das perspectivas ruins, eles já são um fato concreto, visível e assolador para a grande maioria dos 196 países que estarão presentes no evento.

Em maior ou menor escala o equilíbrio da dinâmica ambiental vem sendo rompido pelas ações antrópicas, as quais respondem, então, sobre a dinâmica social, quase em um efeito boomerang. Por essa razão é que se torna imprescindível debater sobre propostas exequíveis e economicamente viáveis, dentro das condições apresentadas pela atual conjuntura pandêmica, para que os esforços individuais e coletivos não sejam frustrados. Daí o fato dos desafios serem muitos e complexos.

Então, diante da apresentação do Programa Brasileiro de Crescimento Verde, ontem à tarde, a perplexidade foi total. A toque de caixa o governo federal rascunhou uma série de ideias descoladas da atual realidade do país e as apresentou como um programa que será levado a Glasgow. Apesar de se criar um caráter multiministerial para o referido programa, como precisa ser no campo da sustentabilidade socioambiental, o fato de não se permitir guiar pelas estatísticas e dados objetivos da conjuntura atual para sua construção deixou inúmeras lacunas e incongruências, fragilizando a sua credibilidade.

Embora o Brasil tenha muito potencial para se tornar um expoente relevante dentro do cenário global da Economia Verde, as suas constantes investidas na contramão desse conceito esvaziam as expectativas e perspectivas. Tomando como base de exemplo a situação da Amazônia, “Em vez de absorver dióxido de carbono, o sudeste da floresta tropical está se transformando gradualmente num emissor de poluentes, de acordo com relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgado nesta segunda-feira (25/10)” 1.

É preciso entender que as ações antrópicas sobre os biomas brasileiros vieram se intensificando, nos últimos três anos, de uma maneira brutal. Sem contar, todo o trabalho de desconstrução e desmantelamento das estruturas institucionais de gestão e fiscalização ambiental, que trazem os impactos negativos para além da fauna e flora; mas, para outros aspectos socioambientais.

Haja vista o recente leilão promovido pela Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), que ofereceu 92 blocos para exploração de petróleo e gás natural e inclui áreas em Fernando de Noronha e no Atol das Rocas, expondo a riscos a fauna e a microfauna marinha. Por sorte, apenas 5 dos 92 blocos foram arrematados, todos na Bacia de Santos, porque a mobilização da sociedade civil contra o leilão, com base em argumentos socioambientais e jurídicos consistentes, dissuadiu os possíveis interessados.

Além disso, os sucessivos erros de condução da economia brasileira consolidaram uma crise que se torna robusta a cada dia, o que dificulta permitir investimentos importantes para a Economia Verde e realinhar o país dentro de uma política socioambiental sustentável. Basta olhar para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), que é uma prévia da inflação, ele registrou 1,20% em outubro e 10,34% no acumulado de 12 meses. “Foi a maior taxa para o mês em 26 anos” 2.

Considerando que o otimismo que havia sido projetado para o mundo no Pós-Pandemia se mostrou bem menos realista do que o esperado, “o Brasil corre o risco de ingressar em um cenário de estagflação, a combinação perversa entre a estagnação do crescimento econômico, desemprego e inflação alta”. Isso porque há a probabilidade de “crescimento perto de zero no ano que vem e a inflação não caindo na velocidade esperada”; posto que, “um desafio é o câmbio, um dos principais responsáveis pela inflação brasileira. O dólar deve seguir acima de 5 reais (ou mais) em 2022, elevando os custos de produção em quase todos os setores e o preço para o consumidor”3.

É; temos que reconhecer que o Brasil errou. Errou feio. Se permitiu perder oportunidades diversas de desenvolvimento e progresso. A opção por não exercitar correções e ajustes naquilo que considerava desalinhado à sua governança para desconstruir e fazer do zero, deu nisso. De modo que ele se perdeu no meio do caminho. Não sabe como corrigir os próprios erros. Não sabe como recomeçar a partir de uma nova perspectiva. Não sabe olhar para dentro e fora de suas fronteiras para traçar seus caminhos. Não sabe fazer mea culpa e se enovela cada vez mais no próprio constrangimento.

Sendo assim, essa realidade que se exibe arrogante e insensata, diante de nós, traduz na prática exatamente o que disse José Saramago, ou seja, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses”. Então, se realmente pulsa algum desejo de transformação, seja ela socioambiental ou socioeconômica, havemos de não esquecer que “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada” (José Saramago).

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

No fim das contas, a doença é o preconceito


No fim das contas, a doença é o preconceito

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Descrita em 1981, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) vem sendo estudada desde então, em diversos países, a fim de descobrir não só uma vacina preventiva; mas, também, novos fármacos que possam melhorar a qualidade e expectativa de vida dos pacientes, visando desconstruir a ideia da “sentença de morte”. Dados do Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) apontam que desde a década de 80, quando se iniciou a epidemia, foram registrados 74,9 milhões de pessoas infectadas, com 32 milhões de mortes. Em 2019, por exemplo, havia 37,9 milhões de pessoas no mundo contaminadas pelo HIV, sendo que 23,3 milhões delas tinham acesso à terapia retroviral, que é o tratamento disponível atualmente.

Assim, citando apenas alguns dos filmes e documentários já produzidos a respeito desse assunto, tais como “Filadélfia” (1993), “Cazuza: O tempo não para” (2004) ou “Clube de Compras Dallas” (2013) é possível tecer uma reflexão bastante contundente do que representa o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) na sociedade mundial. Falar sobre a AIDS, pensar sobre ela é fundamental porque diz respeito a descortinar uma série de tabus e indiferenças que as pessoas cultuam de maneira inadvertida e irresponsável, causando prejuízos de natureza objetiva e subjetiva incalculáveis.

De modo que a decisão de escrever sobre isso veio depois de uma recente Fake News, quando foi disseminado nas redes sociais que pessoas que tomaram duas doses do imunizante contra o coronavírus no Reino Unido estariam desenvolvendo AIDS. Um absurdo total, uma mentira sem nenhum respaldo tecnocientífico, que já foi desmentida por cientistas em todo o mundo e pelas autoridades britânicas 1. Mas, que abre um gigantesco espaço para se refletir a respeito de inúmeras questões subjacentes à própria AIDS e que confrontam diretamente as tentativas de reafirmação conservadora da extrema-direita em todo mundo.

Afinal, as descobertas e informações construídas inicialmente sobre o vírus HIV trouxeram à tona que sua transmissão era decorrente do contato sexual ou do contato com fluidos corporais, principalmente, o sangue contaminado. De modo que se construiu uma associação entre os casos de AIDS e grupos de risco, tais como os homossexuais, as prostitutas, os dependentes químicos e os hemofílicos, os quais residiam em grandes centros urbanos. O que significou um reforço aos preconceitos, discriminações e estigmas já existentes contra essas minorias.

Acontece que o desenrolar da história da epidemia de AIDS, ao longo desses mais de 40 anos, provou a inexistência desses chamados “grupos de risco”, mostrando que qualquer pessoa poderia adquirir o vírus pelo contato sexual sem uso de preservativo ou pelo contato com sangue contaminado. Foi a partir desse momento que a luta dos portadores do HIV se intensificou em todo o mundo.

Aqui no Brasil, a incessante batalha do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que era de uma família de hemofílicos (incluindo ele próprio) que haviam sido contaminados por transfusão de sangue não testado durante seus tratamentos contra a hemofilia, é que levou a Constituição de 1988 a definir a proibição da comercialização de quaisquer tecidos humanos, incluindo o sangue e seus hemoderivados, iniciando uma obrigatoriedade da testagem desses materiais.

No entanto, se houve esse grande avanço social, no sentido da criação de uma série de regras para a doação, por outro, o preconceito, a discriminação e a estigmatização do portador do HIV ainda resiste e persiste na sociedade. Esse é o ponto de reflexão no caso da tal Fake News, porque é de conhecimento público a impossibilidade de qualquer imunobiológico promover o desenvolvimento de uma doença. Especialmente quando ele não traz na sua composição quaisquer vestígios ou traços da presença daquele agente etiológico. Então, esse discurso teve a intenção subliminar de reacender os propósitos de marginalização, de exclusão, de banimento das pessoas com AIDS. Uma forma peculiar de intimidação social.

Além disso, ela contribui para o fato de que ao não trazer a AIDS para o patamar das discussões, das orientações, da educação populacional, se estabelece um modo de reafirmar os valores conservadores da extrema-direita, repletos de tabus e indiferenças. Porém, não adianta negar e invisibilizar a AIDS porque, por tabela, se promove a invisibilização de outras doenças oportunistas, tais como hepatites virais, tuberculose, pneumonia, toxoplasmose e alguns tipos de câncer; bem como, das já conhecidas Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), com destaque para a sífilis.

E essas doenças têm muito mais facilidade de transitar entre as pessoas, do que a própria AIDS. Porque não é necessário estar contaminado pelo HIV para desenvolver qualquer uma delas. Em diversos casos tratam-se de diferentes vírus, bactérias, protozoários presentes no ambiente em que circulam os seres humanos todos os dias. Em 2020, por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “mais pessoas morreram de tuberculose, com muito menos pessoas sendo diagnosticadas e tratadas ou recebendo tratamento preventivo em comparação com 2019. Os gastos gerais com serviços essenciais para a doença diminuíram” 2.

Portanto, essa estratégia de lançar as questões, supostamente incômodas, para debaixo do tapete social é um erro. Isso vulnerabiliza a sociedade como um todo e fomenta gastos muito maiores com tratamento, do que seriam com a prevenção. Além disso, criam contingentes insalubres; sobretudo, dentro da população economicamente ativa, prejudicando desde a oferta de mão-de-obra até os níveis de produção e consumo. Sem contar que visibilizam internacionalmente uma imagem de negligência, descompromisso e irresponsabilidade do governo para com o cidadão.

É cada vez mais imperioso, portanto, compreender que “todo conceito que o homem não modifica com sua evolução torna-se um preconceito, e os preconceitos acorrentam as almas à rocha da inércia mental e espiritual” (frase atribuída à González Pecotche – escritor e pedagogista). O pesado fardo de obrigar uma sociedade a viver estritamente dentro de protocolos e diretrizes rígidas, tanto comportamentais quanto ideológicas, é que desencadeia a infinitude de desigualdades e violências que se conhece, porque as pessoas desaprendem a conviver com o óbvio da vida que são as diferenças e as individualidades.

Por isso, não sei se é a AIDS, a tuberculose ou a sífilis, por exemplo, o que de fato querem ocultar. Para mim parece mais plausível crer que o desconforto advenha de reconhecer a pobreza, a prostituição, o desamparo, o consumo de drogas, a insegurança alimentar, ... que estão estampadas nas figuras de muitos desses doentes. Entretanto, reconhecer implica em agir, em tomar algum tipo providência, em criar políticas públicas, em disponibilizar recursos, em cuidar, em amparar, e isso não parece ser de interesse de conservadores da extrema-direita.

Diante disso, não se deixe enganar pela superficialidade impactante das palavras ou das situações, como manifestou o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, “A descoberta da verdade é impedida de forma mais eficiente não pela aparência falsa das coisas que iludem e induzem ao erro, nem diretamente pela fraqueza dos poderes de raciocínio, mas pela opinião preconcebida e pelo preconceito”; afinal, “Muitas pessoas pensam que estão a pensar quando estão apenas a rearrumar os seus preconceitos” (William James – um dos fundadores da psicologia moderna).

domingo, 24 de outubro de 2021

As batidas das asas de uma borboleta qualquer...


As batidas das asas de uma borboleta qualquer...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bom, para ter eleições em 2022 é preciso, antes de tudo, ter um país e do jeito que coisa caminha... A deterioração nacional está cada vez mais intensa e rápida. Não é mais estar à margem do mundo; mas, de estar à margem de si mesmo. A opção de viver sob a perspectiva de uma realidade paralela, ficcional, idealizada, custa caro e já cobra seu preço cotidiano.

Não, a discussão não gira em torno e restritamente à economia. Não é apenas a perda do poder de compra. Não é apenas a inflação. Não são apenas os juros elevados. Não é apenas o baixo crescimento do país. É tudo isso junto e repercutindo sobre a dinâmica da vida social, impactando as possibilidades de ser e ter para satisfazer as demandas do dia a dia.

Trata-se de uma dilapidação gradual e enfática não somente dos direitos institucionais; mas, sobretudo, dos direitos sociais. Ora, quando a economia vai mal é automático que todos os demais campos da existência humana comecem a falhar. É a perda da capacidade de custear o plano de saúde que empurra o cidadão para o Sistema Único de Saúde (SUS). É a perda da capacidade de custear o ensino privado que lança o aluno para a Rede Pública. É a perda da capacidade de custear o combustível do transporte individual que obriga a mudança de deslocamentos para o transporte público. ...

É a perda da capacidade de custear que vai remodelando o perfil de vida do indivíduo. Sem que se deem conta da profundidade desse movimento, as pessoas são obrigadas, em nome de uma sobrevivência digna, a repensar, recusar, reduzir, reparar, reintegrar, reciclar e reutilizar. O que significa se reinventar tanto do ponto de vista prático, material e objetivo quanto teórico, imaterial e subjetivo.

Afinal, como tão bem escreveu João Guimarães Rosa, “O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza...” (Grande Sertão: Veredas).

E com a simplicidade dessas palavras se tem um modo mais acessível de referenciar a chamada Teoria do Caos, na qual o Efeito Borboleta se manifesta. Porque aqui e ali, o ser humano está submetido à fenômenos diversos nos quais as pequenas mudanças provocadas inicialmente podem desencadear alterações drásticas, profundas e imprevisíveis.

De modo que esse processo nos impede de controlar a mudança no curso da nossa história e nos alerta sobre o nosso papel no dia a dia individual e coletivamente. As decisões tomadas nos últimos três anos, no Brasil, vêm promovendo uma sucessão sequencial de problemas que já estão provocando desdobramentos negativos dentro e fora de seu próprio território.

A falta de competência e de habilidade na gestão aliada à displicência e total irresponsabilidade custaram muito caro à nossa reputação e credibilidade no cenário mundial. Mas, não bastasse isso, todos os dias surgem novas tensões, novos obstáculos, novos ruídos, perturbando e desestabilizando quaisquer prognósticos de equilíbrio, como se o país pudesse se dar ao luxo de viver na corda-bamba.

Metaforicamente, o Brasil está em constante estado de apneia, pelo receio do que podem “as batidas das asas de uma borboleta qualquer” repercutir sobre ele em diferentes direções, sentidos e velocidades. Estamos somatizando, de maneira sobreposta e contínua, os resultados caóticos de experiências malsucedidas. O que não deixa espaços e zonas de conforto para administrar e resolver os problemas. Tudo fica para depois, depois, depois, ... sem fim. Haja vista, por exemplo, a realidade operacional e logística do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Pois é, não se trata de impaciência das pessoas. A vida em si é impaciente. Ela depende desse movimento de pensar, planejar, organizar, realizar, auxiliar, ... Não há uma fila de espera para dar trato às demandas, tudo acontece simultaneamente. Razão pela qual a inação, a alienação, o descompromisso, a postergação, não cabem quando o assunto é a gestão da vida, seja de um ou de muitos.

No entanto, não me parece que as pessoas percebam que toda essa conjuntura não é à toa, ela tem método, tem planejamento, ainda que muitos de seus eventuais desdobramentos sejam imprevisíveis e, até mesmo, incontroláveis. Porque “ os cidadãos muitas vezes demoram a compreender que sua democracia está sendo desmantelada – mesmo que isso esteja acontecendo bem debaixo do seu nariz” (Steven Levitsky – cientista político).

O olhar demasiadamente perdido sobre as pessoas leva a se esquecer do alvo maior, mais amplo, que é o país e, por consequência, seu regime político de governança. Então, eles não conseguem compreender que “Uma das grandes ironias de como as democracias morrem é que a própria defesa da democracia é muitas vezes usada como pretexto para a sua subversão. Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança – guerras, insurreições ou ataques terroristas – para justificar medidas antidemocráticas” (Steven Levitsky – cientista político).

Quando discutimos os problemas e as relações sociais de maneira dissociada, como pequenos fragmentos isolados e independentes, deixamos de reconhecer a existência de um todo indivisível, que cria e fortalece uma identidade. Assim, deixa-se o caminho aberto e desguarnecido, a tal ponto, que as pessoas se esquecem de temer “os profetas e aqueles que estão dispostos a morrer pela verdade, pois, em geral, farão morrer muitos outros juntamente com eles, frequentemente antes deles, por vezes no lugar deles” (Umberto Eco – escritor italiano).

Por isso, a grande reflexão, nesse momento, se concentra em compreender que “mesmo quando tudo parece desabar, cabe em mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir” (Cora Coralina – poetisa brasileira).