segunda-feira, 25 de outubro de 2021

No fim das contas, a doença é o preconceito


No fim das contas, a doença é o preconceito

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Descrita em 1981, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) vem sendo estudada desde então, em diversos países, a fim de descobrir não só uma vacina preventiva; mas, também, novos fármacos que possam melhorar a qualidade e expectativa de vida dos pacientes, visando desconstruir a ideia da “sentença de morte”. Dados do Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) apontam que desde a década de 80, quando se iniciou a epidemia, foram registrados 74,9 milhões de pessoas infectadas, com 32 milhões de mortes. Em 2019, por exemplo, havia 37,9 milhões de pessoas no mundo contaminadas pelo HIV, sendo que 23,3 milhões delas tinham acesso à terapia retroviral, que é o tratamento disponível atualmente.

Assim, citando apenas alguns dos filmes e documentários já produzidos a respeito desse assunto, tais como “Filadélfia” (1993), “Cazuza: O tempo não para” (2004) ou “Clube de Compras Dallas” (2013) é possível tecer uma reflexão bastante contundente do que representa o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) na sociedade mundial. Falar sobre a AIDS, pensar sobre ela é fundamental porque diz respeito a descortinar uma série de tabus e indiferenças que as pessoas cultuam de maneira inadvertida e irresponsável, causando prejuízos de natureza objetiva e subjetiva incalculáveis.

De modo que a decisão de escrever sobre isso veio depois de uma recente Fake News, quando foi disseminado nas redes sociais que pessoas que tomaram duas doses do imunizante contra o coronavírus no Reino Unido estariam desenvolvendo AIDS. Um absurdo total, uma mentira sem nenhum respaldo tecnocientífico, que já foi desmentida por cientistas em todo o mundo e pelas autoridades britânicas 1. Mas, que abre um gigantesco espaço para se refletir a respeito de inúmeras questões subjacentes à própria AIDS e que confrontam diretamente as tentativas de reafirmação conservadora da extrema-direita em todo mundo.

Afinal, as descobertas e informações construídas inicialmente sobre o vírus HIV trouxeram à tona que sua transmissão era decorrente do contato sexual ou do contato com fluidos corporais, principalmente, o sangue contaminado. De modo que se construiu uma associação entre os casos de AIDS e grupos de risco, tais como os homossexuais, as prostitutas, os dependentes químicos e os hemofílicos, os quais residiam em grandes centros urbanos. O que significou um reforço aos preconceitos, discriminações e estigmas já existentes contra essas minorias.

Acontece que o desenrolar da história da epidemia de AIDS, ao longo desses mais de 40 anos, provou a inexistência desses chamados “grupos de risco”, mostrando que qualquer pessoa poderia adquirir o vírus pelo contato sexual sem uso de preservativo ou pelo contato com sangue contaminado. Foi a partir desse momento que a luta dos portadores do HIV se intensificou em todo o mundo.

Aqui no Brasil, a incessante batalha do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que era de uma família de hemofílicos (incluindo ele próprio) que haviam sido contaminados por transfusão de sangue não testado durante seus tratamentos contra a hemofilia, é que levou a Constituição de 1988 a definir a proibição da comercialização de quaisquer tecidos humanos, incluindo o sangue e seus hemoderivados, iniciando uma obrigatoriedade da testagem desses materiais.

No entanto, se houve esse grande avanço social, no sentido da criação de uma série de regras para a doação, por outro, o preconceito, a discriminação e a estigmatização do portador do HIV ainda resiste e persiste na sociedade. Esse é o ponto de reflexão no caso da tal Fake News, porque é de conhecimento público a impossibilidade de qualquer imunobiológico promover o desenvolvimento de uma doença. Especialmente quando ele não traz na sua composição quaisquer vestígios ou traços da presença daquele agente etiológico. Então, esse discurso teve a intenção subliminar de reacender os propósitos de marginalização, de exclusão, de banimento das pessoas com AIDS. Uma forma peculiar de intimidação social.

Além disso, ela contribui para o fato de que ao não trazer a AIDS para o patamar das discussões, das orientações, da educação populacional, se estabelece um modo de reafirmar os valores conservadores da extrema-direita, repletos de tabus e indiferenças. Porém, não adianta negar e invisibilizar a AIDS porque, por tabela, se promove a invisibilização de outras doenças oportunistas, tais como hepatites virais, tuberculose, pneumonia, toxoplasmose e alguns tipos de câncer; bem como, das já conhecidas Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), com destaque para a sífilis.

E essas doenças têm muito mais facilidade de transitar entre as pessoas, do que a própria AIDS. Porque não é necessário estar contaminado pelo HIV para desenvolver qualquer uma delas. Em diversos casos tratam-se de diferentes vírus, bactérias, protozoários presentes no ambiente em que circulam os seres humanos todos os dias. Em 2020, por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “mais pessoas morreram de tuberculose, com muito menos pessoas sendo diagnosticadas e tratadas ou recebendo tratamento preventivo em comparação com 2019. Os gastos gerais com serviços essenciais para a doença diminuíram” 2.

Portanto, essa estratégia de lançar as questões, supostamente incômodas, para debaixo do tapete social é um erro. Isso vulnerabiliza a sociedade como um todo e fomenta gastos muito maiores com tratamento, do que seriam com a prevenção. Além disso, criam contingentes insalubres; sobretudo, dentro da população economicamente ativa, prejudicando desde a oferta de mão-de-obra até os níveis de produção e consumo. Sem contar que visibilizam internacionalmente uma imagem de negligência, descompromisso e irresponsabilidade do governo para com o cidadão.

É cada vez mais imperioso, portanto, compreender que “todo conceito que o homem não modifica com sua evolução torna-se um preconceito, e os preconceitos acorrentam as almas à rocha da inércia mental e espiritual” (frase atribuída à González Pecotche – escritor e pedagogista). O pesado fardo de obrigar uma sociedade a viver estritamente dentro de protocolos e diretrizes rígidas, tanto comportamentais quanto ideológicas, é que desencadeia a infinitude de desigualdades e violências que se conhece, porque as pessoas desaprendem a conviver com o óbvio da vida que são as diferenças e as individualidades.

Por isso, não sei se é a AIDS, a tuberculose ou a sífilis, por exemplo, o que de fato querem ocultar. Para mim parece mais plausível crer que o desconforto advenha de reconhecer a pobreza, a prostituição, o desamparo, o consumo de drogas, a insegurança alimentar, ... que estão estampadas nas figuras de muitos desses doentes. Entretanto, reconhecer implica em agir, em tomar algum tipo providência, em criar políticas públicas, em disponibilizar recursos, em cuidar, em amparar, e isso não parece ser de interesse de conservadores da extrema-direita.

Diante disso, não se deixe enganar pela superficialidade impactante das palavras ou das situações, como manifestou o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, “A descoberta da verdade é impedida de forma mais eficiente não pela aparência falsa das coisas que iludem e induzem ao erro, nem diretamente pela fraqueza dos poderes de raciocínio, mas pela opinião preconcebida e pelo preconceito”; afinal, “Muitas pessoas pensam que estão a pensar quando estão apenas a rearrumar os seus preconceitos” (William James – um dos fundadores da psicologia moderna).

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