segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O silencioso grito das desigualdades


O silencioso grito das desigualdades

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Para acabar com todas as dúvidas, especulações e casuísmos espalhados por aí, a variante ômicron do vírus Sars-Cov-2 veio jogar luz sobre a questão da desigualdade no mundo. Esta não é uma discussão geográfica ou territorial; mas, uma discussão ética e moral, que não dá a mínima importância para fronteiras, exceto, aquelas criadas a partir dela mesma.  É algo que acontece há milênios e se arrasta na esteira do comodismo, da alienação, da negação e da irresponsabilidade, por gerações e gerações.

A má distribuição de vacinas para prevenção da COVID-19 no planeta é só um exemplo do que já acontece há muito tempo. A baixa imunização só não é pior em diversos países em desenvolvimento ou em países subdesenvolvidos, em razão do trabalho humanitário realizado incansavelmente por entidades e organizações não-governamentais, tais como os Médicos Sem Fronteiras. Através de doações, elas conseguem recursos para aquisição de medicamentos, imunobiológicos e outros suprimentos capazes de atender as demandas mais básicas de saúde, em lugares desassistidos econômica e politicamente. O que significa, geralmente, países com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo de 0,5.

Para quem ainda não sabe, “o objetivo da criação do Índice de Desenvolvimento Humano foi o de oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento”1. De modo que, atualmente, são três os pilares que constituem o IDH (saúde, educação e renda); mas, são observados também outros aspectos, tais como, Democracia, participação, equidade e sustentabilidade.

Entretanto, apesar dos esforços da Organização das Nações Unidas (ONU), em suas diversas áreas de atuação, os estudos realizados, e que sustentam relatórios emitidos anualmente a respeito do IDH no mundo, fomentam o debate; mas, não conseguem resultados práticos de transformação, tão consistentes como se deseja. Infelizmente, a desigualdade mundial resiste e persiste. Não é à toa que isso acabou levando ao surgimento de outros indicadores complementares de desenvolvimento humano, ou seja, o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD)2, o Índice de Desigualdade de Gênero (IDG)3, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM)3 e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M)4.

Vejam só, mesmo com tantos instrumentos de análise, o mundo se mantém fragmentado por linhas divisórias etereamente visíveis que apartam os seres humanos entre si. No fundo, a barbárie ainda domina o homem, o que significa que o planeta está sempre em iminência de guerra, de conflito. Portanto, a distância que existe entre pilhas e pilhas de acordos, tratados, manifestos em nome da cooperação e da união de esforços conjuntos, e a ausência de ações efetivas e contundentes, que sejam capazes de transformar palavras e ideias em algo concreto e materializado, é imensa.

O que se vê são grãos de areia dispersos daqui e dali, numa exibição cruel e derrotista da insuficiência, da ineficiência, da negligência deliberada. Enquanto isso, pessoas morrem de doenças tratáveis e não tratáveis. Morrem de fome, pela escassez e má distribuição de alimentos. Morrem de sede, por falta de água potável e saneamento básico. Morrem por violências diversas. Morrem ... Mas, talvez, o pior seja saber que elas estão morrendo em vida, por simples esquecimento, por desassistência, por geopolítica, por abuso de poderes.

É isso o que melhor explica as palavras de Martin Luther King Jr, quando ele disse que “A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio”. Pois é, basta o ser humano galgar um degrauzinho sequer da escada do poder para ele se esquecer, sublimar, abster da sua condição humana, da sua empatia natural, do seu instinto de preservação. A ganância, o poder, a avareza, a indiferença, individual e coletivamente, leva os indivíduos em posições de autoridade, de comando, de influência, a fazerem da desigualdade uma trivialidade do cotidiano mundial.

Não, não é por ignorância. Nem por desconhecimento. Nem por desinformação. O instinto dominador, colonialista, imperialista ainda paira sobre o mundo e repercute os seus absurdos. Pois é, a humanidade anda esquecida de que “Nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam”, porque “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar” (Martin Luther King Jr. – pastor e ativista dos direitos civis nos EUA). E o Sars-Cov-2, com todas as suas variantes, tem nos mostrado isso, ou seja, que as injustiças impostas pelas desigualdades já faziam do morticínio um espetáculo da humanidade, antes mesmo que ele entrasse em cena.

Até o momento, estimam-se mais de 5,2 milhões de mortos apenas pela COVID-19. Portanto, há outros milhões decorrendo de inúmeras outras causas. Outras doenças. Outras mazelas sociais. Outras ... Outras ... Que de tantas escapam a nossa percepção, a nossa imaginação. Afinal, “Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver nossos próprios racismos e xenofobias”; o que faz com que “muitas vezes, o chamado progresso pode ser uma violência. Pode agir como uma agressão silenciosa contra sociedades inteiras e, sobretudo, contra os mais pobres dessa sociedade” (Mia Couto – Biólogo e escritor moçambicano).

O professor e geógrafo Milton Santos dizia que “Nunca na história da humanidade houve condições técnicas e cientificas tão adequadas a construir o mundo da dignidade humana, apenas essas condições foram expropriadas por um punhado de empresas que decidiram construir um mundo perverso”. Concordo; mas, tomo à liberdade de incluir governos e instituições nesse rol de “poderosos”.

Por isso, não há dúvidas de que a questão da equidade de vacinas é fundamental nesse momento. É uma questão de saúde global, de sobrevivência coletiva. Mas, se a equidade não for ampliada, estendida, de maneira qualitativa e quantitativa, continuará existindo espaços e possibilidades paras as investidas do imponderável, do imprevisível, do insólito, em cada diminuto lugar do planeta. Então, estamos sim, sob ameaça. Ou fazemos algo para mudar esse panorama ou continuaremos a mercê do perigo, entregues à casualidade oportunista da morte.  

domingo, 28 de novembro de 2021

Entre a resistência e a evolução


Entre a resistência e a evolução

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Fico pensando em, até quando, a humanidade vai permanecer agindo na perspectiva de seus mundos paralelos. Porque isso é tão infantil que não cabe mais nas conjunturas que se impõem diante de nós. Lamento, mas não adianta exaurir esforços tentando fazer o mundo caber nos nossos quereres e vontades. Ele tem vida própria. Ele tem uma dinâmica própria, que não se rende aos caprichos ou aos devaneios quaisquer.

Veja só, por exemplo, o beco sem saída no qual a Revolução Industrial se deparou. Absorvidos e encantados pela engenhosidade criativa humana, alcançamos a chamada Revolução Industrial 4.0 que não apenas representa um amplo sistema de alta tecnologia composto por inteligência artificial, robótica, internet das coisas e computação em nuvem; mas, também, revolucionou as formas de produção e negociação em todo o planeta. No entanto, o ritmo frenético desse processo nos fez perder, pelo menos em parte, a precisão do planejamento frente as demandas.

O resultado foi, de repente, se deparar com a escassez de semicondutores para dar vazão aos processos de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção em larga escala, afetando severamente a cadeia de suprimentos e limitando o potencial de consumo, pelo menos nos próximos dois anos. Acostumados a viver sob os ditames do consumo das últimas novidades do mercado tecnológico, a humanidade está tendo que se readaptar no contexto do reaproveitamento e da reciclagem de bens de consumo duráveis e semiduráveis, pela falta de componentes.

Pode parecer pouca coisa esse fenômeno; mas, não é. Além da perspectiva de uma reeducação comportamental e ideológica, há uma gigantesca perspectiva econômica e ambiental. Durante décadas o ser humano vem estabelecendo suas prioridades e demandas a partir dos apelos e diretrizes do consumo. A sua identidade passou a ser constituída, sob muitos aspectos, pela sua capacidade de aquisição de bens e serviços no imediatismo em que estes eram lançados no mercado. A tal ponto em que a definição de “bem-sucedido” se tornou sinônimo de status econômico e capacidade de consumo.

De modo que a inconsciência em relação a esse movimento, não apenas promoveu uma explosão no universo de resíduos, desde a sua origem nos sistemas de produção até o seu descarte; mas, também, garantiu o enriquecimento de grandes indústrias e comércios. O que inclui o setor de inovação e desenvolvimento tecnológico, responsável pelas reformulações na Revolução Industrial e o surgimento de novas demandas de interesse e consumo. Então, quando há uma ruptura nesse processo, todos esses aspectos são impactados severamente e à revelia das pessoas, restando apenas se readaptarem a um novo cenário conjuntural.

A questão é que as Revoluções Industriais tiveram em si mesmas o objetivo maior de garantir as regalias e os privilégios dos proprietários dos meios de produção, ou seja, o seu poder, a sua influência e o seu acúmulo de bens e riquezas. E foi a partir disso que os modelos econômicos foram sendo pensados e moldados sem, no entanto, desviarem-se muito de uma linha mestra pautada na não intervenção do Estado sobre a Economia, na livre-concorrência, no câmbio livre e na propriedade privada.

Durante algum tempo, isso pareceu sustentável; mas, há algumas décadas os problemas explodiram. A intensidade imposta pelas Revoluções Industriais necessita de investimentos cada vez mais altos e o consumo demonstra insuficiência para a geração de recursos, porque as desigualdades sociais criaram abismos profundos quanto a suficiência dos salários. Então, consegue-se produzir muito, mas a vazão dos produtos acaba aquém das expectativas pela impossibilidade de se pagar pelo custo dos mesmos.

Afinal, os salários da grande massa populacional não estão possibilitando mais garantir a sobrevivência e a dignidade humana ao mesmo tempo em que possibilitam manter a frenética corrida do consumo. De modo que muitos já ficaram pelo caminho e tiveram que se alinhar a uma realidade que exige deles repensar sobre o consumo no sentido de respeitarem suas possibilidades, se responsabilizarem por seus orçamentos, recusarem os apelos e propagandas, reduzirem os excessos, reaproveitarem e reciclarem o que for possível.

Então, diante da escassez de semicondutores, o que tende a acontecer no mundo é que mais pessoas mergulhem nessa nova realidade de consumo. Sem ter o que comprar ou como comprar, elas são obrigadas a rever a sua dinâmica de consumo, no que se refere às suas crenças e valores; bem como, à sua capacidade orçamentária. Sim, especialmente nesse mundo que está aprendendo a sobreviver a uma Pandemia, cujos desdobramentos e consequências ainda estão subestimados. O que já se pode afirmar, com alguma certeza, é que o empobrecimento mundial já é uma realidade caracterizada principalmente pelas estatísticas do desemprego e da miséria, em diversos países.

Acompanhando as análises, as reportagens, presentes nos veículos de informação e comunicação, em geral a síntese dos fatos gira em torno, então, de uma mesquinhez, de uma avareza, sem precedentes, como se isso pudesse salvar alguém, ou alguma nação, de quaisquer infortúnios. Acontece que do jeito que as conjunturas vêm se tecendo e se configurando é preciso construir novas perspectivas, novos paradigmas, novas políticas socioeconômicas se a sobrevivência ainda for objetivo. As grandes fortunas tendem a desaparecer pelo próprio processo de deterioração da economia global. O dinheiro do mundo caminha para se desvalorizar ou se ressignificar por outros caminhos que não esses que se conhecem até aqui. Tudo está em franca transformação.

Daí, talvez, valha a reflexão sobre as palavras de Rajneesh Chandra Mohan Jain (Osho). Segundo esse guru indiano: “Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o logo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece. Porque, então, o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano. Por um lado, é desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós. Só podemos ir em frente e arriscar. Coragem! Avance firme e torne-se oceano! ”.

Por isso, é tão estranho perceber que ainda existam pessoas encarando a realidade de uma maneira completamente desfocada, enviesada e tendenciosa. Particularmente, quando se trata de políticas socioeconômicas. O velho mundo que se conhecia ruiu, não existe mais. A Pandemia fechou o ciclo de uma realidade que se arrastava há tempos. Portanto, os velhos hábitos, os velhos modelos, as velhas formas de ser e pensar não se ajustam a nova ordem que emerge e à qual não há como fugir ou se esconder. Não lidar com os fatos como eles se apresentam pode custar à humanidade muito mais do que se possa imaginar. Sem contar que é inútil, é uma resistência sem nenhum sentido, porque “O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente”. 


sexta-feira, 26 de novembro de 2021

B.1.1.529. A Pandemia não acabou.


B.1.1.529. A Pandemia não acabou.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não foi por falta de aviso. Desde o início da Pandemia os cientistas de todo o mundo vêm alertando para o fato de que a permanência do vírus em circulação promoveria o surgimento de novas variantes a fim de facilitar a sua adaptação e sobrevivência. Então, não deu outra. Os holofotes da Ciência estão acesos para a variante B.1.1.529 que circula em países do Sul da África e chama atenção para uma quantidade significativa de mutações simultâneas. São em torno de 50.

Segundo informações da Organização Mundial da Saúde (OMS), “Até agora, foram confirmados 77 casos na Província de Gauteng, na África do Sul; quatro casos em Botsuana; e um em Hong Kong, diretamente relacionado a uma viagem à África do Sul” 1.

Dos 54 países que compõem o continente africano, somente cinco países “devem conseguir vacinar 40% de suas populações contra a Covid-19 até o fim do ano, prevê OMS. No ritmo atual, a África ainda enfrenta um déficit de 275 milhões de vacinas da Covid-19 em relação à meta. Até agora, o continente vacinou totalmente 77 milhões de pessoas, apenas 6% de sua população”2. O que explica o surgimento de uma nova variante com características incomuns aos padrões determinados até agora.

Assim, tanto a existência de correntes ideológicas contrárias a vacinação, os antivacinas, quanto o déficit de imunização em diversos países representam obstáculos reais que impedem a pandemia de ser vencida e o mundo não precisar mais incluir os impactos causados pelo Sars-Cov-2 nas suas projeções de governança e desenvolvimento.

Por enquanto, a humanidade gira em uma espiral que acelera e desacelera; mas, não consegue parar. O que impossibilita quaisquer planejamentos, mesmo em curtíssimo espaço de tempo, porque ninguém conhece as cartas que o vírus tem nas mãos.

E dissecando esse ponto de análise fica cada vez mais claro como as desigualdades podem ser tão improducentes, nocivas e perigosas à raça humana. Ora, a parcela rica e desenvolvida tecnológica e cientificamente do mundo conseguiu o feito de criar vacinas em um curto e relativo espaço de tempo; mas, não conseguiu promover o acesso a esses imunobiológicos com igualdade e equidade, para que o mundo coletivamente fosse beneficiado e pudesse superar mais rapidamente a Pandemia.

Cada um, do alto de seu poder, mostrou superioridade de enfrentamento da crise na medida dos investimentos que foi capaz de realizar, incluindo a aquisição de vacinas, antes mesmo delas estarem prontas e liberadas pelos serviços de Vigilância Sanitária. Cada um, olhando para si mesmo, para os seus próprios interesses. O que para um vírus diminuto, invisível a olho nu, não significa absolutamente nada.

Ele não entende de geopolítica mundial, ele não sabe o que é riqueza ou miséria, ele não sabe o que é desenvolvimento ou subdesenvolvimento. Ele vive para defender a sua própria sobrevivência no mundo. Só isso. E pelo que mostra a Ciência, ele está obtendo sucesso.

Acontece que basta um lugar do planeta que não esteja alinhado aos demais para fracassar todos os esforços de combate à Pandemia, até aqui. Porque o vírus não reconhece fronteiras, ele viaja pelos corpos de um lugar para outro, encontra sistemas biológicos diferenciados por especificidades que podem lhe conferir melhores condições de sobrevivência. Então, surgem as mutações. Algumas mais letais. Outras de mais fácil disseminação.  Outras de mais fácil contágio.

Por isso, as mutações preocupam porque podem dificultar o reconhecimento viral pelos anticorpos e, dessa forma, reduzirem o potencial de eficácia das vacinas já em uso. Todos os imunobiológicos que já foram liberados para uso foram desenvolvidos a partir da cepa original do Sars-Cov-2, aquela identificada originalmente em Wuhan, na China.

Assim, algumas mutações podem ser totalmente diferentes das já conhecidas e demandarem mais pesquisas sobre a sua relação com as vacinas, criando-se uma lacuna de expectativas até um parecer final. Isso é a ciência. Não há respostas prontas. Tudo demanda tempo, análise, pesquisa, testagem, avaliação.

E o vírus trabalha sempre alguns muitos passos à frente dos cientistas, porque ele trabalha movido pelo instinto de sobrevivência. Daí o fato de não poder se estabelecer uma data no calendário para o fim da Pandemia. É tudo muito complexo. São muitas variáveis conhecidas e desconhecidas em jogo. Muitas hipóteses. Pouquíssimas certezas.

Confúcio, pensador e filósofo chinês, dizia que “O homem joga sua saúde fora para conseguir dinheiro; depois, usa o dinheiro para reconquistá-la”. Observando a conjuntura atual e considerando essa breve reflexão, não se pode dizer que ele errou. Muito pelo contrário. Correndo atrás do consumo excessivo, do poder, da ambição, da notoriedade, o ser humano esquece de cuidar de si, dos outros, do planeta. Assim, proliferam doenças em todos os lugares, adoecendo o corpo e a alma.

Em relação à atual Pandemia, ela não está fora desse contexto. De certo modo, nossa forma de viver e ocupar os espaços geográficos é o que nos colocou a mercê desse agente viral. Aglomerados, sob péssimas condições de habitação e higiene, transitando de um lado para o outro sem maiores atenções e cuidados, não foi difícil para o vírus encontrar condições favoráveis para proliferação e disseminação em efeito cascata.

E se o dinheiro pode auxiliar para a produção de vacinas, para a compra de equipamentos, para a contratação de equipes de saúde, ele não fez a menor diferença na hora de elencar suas vítimas. Ter ou não dinheiro não fez a menor diferença na corrida pela sobrevivência.  Em termos de saúde, nem sempre o dinheiro é solução. Há males em que não se pode comprar a saúde, ou resgatá-la. Morre-se como tem que ser.

Portanto, se a humanidade não entender, de uma vez por todas, que a Pandemia não é só uma questão individual de cuidados e prevenção, de imunização; mas, sobretudo, de exercício de cidadania, ela jamais será debelada. Como escreveu João Batista Libanio, “A prática da cidadania só adquire sentido se em seu horizonte estão os direitos de todos, a igualdade perante a lei, a defesa do bem comum”.

Isso significa que ninguém pode ficar para trás nessa jornada. Essa é uma responsabilidade coletiva, que aponta a necessidade de se saber cobrar das autoridades o compromisso, a agilidade, o respeito, o empenho ...

De se saber exigir o emprego correto dos recursos para fins de enfrentar o vírus. De saber ser transparente e objetivo no diálogo e na ação. De saber ser gente, no sentido mais amplo e concreto da palavra.

Afinal, “A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores”, de modo que “O paraíso não é um lugar, é um breve momento que conquistamos” (Mia Couto – biólogo e escritor moçambicano).

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

As Balsas do Inferno


As Balsas do Inferno

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Então, é assim?! “Centenas de balsas de garimpo ilegal desafiam fiscalização e tomam conta do trecho do rio Madeira, na Amazônia” 1, e nenhuma autoridade se manifesta a respeito. O completo silêncio é mais eloquente do que quaisquer palavras ou declarações, porque visibiliza a ideia pavorosa de que o Brasil é um país que não respeita as leis, a sua gente e/ou a sua biodiversidade.

A questão é que não fica apenas no desrespeito. Os impactos negativos que estão se desenvolvendo sobre a Amazônia irão repercutir rapidamente sobre todo o país e, de algum modo, sobre o restante do mundo.

Afinal, a atividade de garimpo promove desde desvio dos cursos d’água, desmonte hidráulico (no caso de garimpagem mecânica), aterramento de rios, até a contaminação do solo, ar e águas através de metais pesados, especialmente, o mercúrio. O que representa um conjunto de danos irreparáveis e definitivos.

Porque as alterações paisagísticas não só desviam os cursos d’água, como promovem a extinção da flora e da fauna locais. Sem contar, os desabamentos de grutas e soterramentos decorrentes da utilização de bombas de alto impacto que, além de provocar grandes erupções e desestabilizações no terreno, contaminam o local com chumbo.

No entanto, o pior dos efeitos está na utilização do mercúrio para a extração de ouro. Ele permite formar uma liga que facilita a identificação e comprovação da existência de ouro no material extraído. Cada vez que essa liga se solidifica ela precisa ser queimada, o que ocasiona a eliminação do mercúrio na atmosfera, algo demasiadamente tóxico. Portanto, o mercúrio acaba contaminando o solo, a água, a flora e a fauna, na medida em que os rejeitos contaminados se espalham.

Esse é um problema tão sério e desafiador mundialmente que, em 2017, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs a Convenção de Minamata. O nome é uma referência ao acidente ocorrido na Baía de Minamata, no Japão, quando milhares de pessoas morreram ou ficaram gravemente doentes após consumirem peixes contaminados por mercúrio.

Assim, o objetivo desse documento, assinado por 132 países, incluindo o Brasil, “é proteger a saúde humana e o meio ambiente dos efeitos adversos do mercúrio, um elemento onipresente que pode causar desde malformações congênitas a doenças renais” 2.

A Convenção busca, portanto, conter “as liberações antropogênicas de mercúrio em todo o seu ciclo de vida: mineração, importação e exportação, produtos e processos, emissões para a atmosfera, liberações para o solo e a água, locais contaminados, gerenciamento de resíduos e muitos outros”. Tendo em vista que “a exposição pode prejudicar o cérebro, o coração, os rins, os pulmões e o sistema imunológico. É especialmente perigoso para bebês e crianças pequenas, afetando sua capacidade de pensar e aprender” 3.

Viram o tamanho desse imbróglio?! Isso explica o desespero das comunidades indígenas, que estão presenciando in loco os acontecimentos.  Que estão sendo prejudicadas e contaminadas à revelia dos seus direitos naturais.

A reportagem que alerta sobre o fato de que a “Funai proíbe equipe da Fiocruz de levar assistência aos Yanomami em meio à desnutrição, surto de malária e abandono do governo” 4, acaba, portanto, não fazendo justiça a dimensão da tragédia. A realidade dos povos originários brasileiros, na Amazônia, tende a ser muito pior do que se imagina, ao ponto de que a Fundação Nacional do Índio (Funai) vetou pesquisa sobre contaminação de mercúrio entre yanomamis proposta pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 5.

Mas, se as perdas locais são inúmeras havemos de ampliar o raio de visão sobre o assunto. Ora, os incêndios e os desmatamentos provocados em larga escala, nos últimos três anos, que sustentam a expansão de novas fronteiras para agropecuária, estariam, então, sob ameaça. Agricultura e criação de gado em solo contaminado, com água contaminada, não sei se isto seria um bom negócio.

É preciso entender que metais pesados, tais como o chumbo, o arsênio, o mercúrio, o alumínio, o cromo, o níquel e o cádmio, não podem ser metabolizados pelas células humanas, o que leva a um processo de bioacumulação no organismo capaz de desenvolver inúmeras doenças. Dentre elas estão alterações cerebrais, diversos tipos de câncer, anemia, Parkinson, Alzheimer, problemas renais e hepáticos.

Talvez, agora, diante dessa breve exposição seja possível começar a entender que a questão ambiental não se resume em si mesma. Não, não dá para dissociá-la da saúde pública, da qualidade de vida, da economia, da produção, da alimentação, dos recursos hídricos, do uso e ocupação do solo, da geração de resíduos e da educação, porque todos esses aspectos representam demandas do ser humano.

Portanto, não é possível priorizar um, ou alguns, em detrimento de outro, ou outros. Tudo está conectado. Em caso de desconsideração ou negligência, o efeito dominó acontece. Só não se esqueça de que ele não poupa ninguém; de um jeito ou de outro, todos acabam respingados pelos desdobramentos e consequências. Você pode acabar como passageiro involuntário das “Balsas do Inferno”. Afinal, a história de “pagar para ver” não é uma hipótese a se considerar; pois, este não é um risco calculável.  

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A política e sua tendência aos “regimes autoritários de estimação”


A política e sua tendência aos “regimes autoritários de estimação”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A diplomacia internacional tem como fundamento básico, o respeito à soberania dos povos, o que significa que cada país tem o poder de decidir e legislar dentro dos seus limites territoriais. No entanto, essa premissa não é capaz de alterar o status das ações, das decisões e dos fatos que acontecem dentro de cada espaço geográfico específico. Manifestações arbitrárias, autoritárias, violentas, opressivas ou ditatoriais não deixam de ser o que são pelo respeito que se dá à soberania. Elas são o que são. Nenhum verniz, nenhum adorno, nenhuma palavra, pode torná-las mais palatáveis, mais inofensivas ou menos brutais.

No entanto, valendo-se desse subterfúgio, dessa interpretação tendenciosa, não é raro que, por razões ideológicas e/ou mercantis, algumas lideranças mundiais passam a tecer um tipo de relação bizarra que transforma esses países em “regimes autoritários de estimação”. Há uma tendência por essas lideranças de invisibilização ou desconsideração do autoritarismo empregado pelo outro, em nome de seus próprios interesses.

O que em relação ao olhar do mundo se configura em diferentes interpretações. Alguns atribuem esse tipo de comportamento uma sinalização de caráter interno, ou seja, um aviso subliminar aos seus cidadãos de que existe uma possibilidade, mesmo que remota, que em algum momento aquelas práticas e condutas possam vir a ser aplicadas dentro do seu país. O que seria, portanto, uma carta na manga para coibir ou afugentar quaisquer potenciais discordâncias e insatisfações populares quanto ao regime vigente.

Outros apenas encontram eco nesses regimes. O que significa que tais países representam exatamente o modo de governar que eles gostariam de exercer; mas, pela dinâmica de seus países encontram impossibilidades jurídicas e burocráticas para fazê-lo a contento. Então, eles passam a exercitar certo tipo de admiração, de culto, de simpatia, como a expressão de um alento para suas idealizações mais secretas.

E há, também, aqueles que pensam que tudo não passa de um movimento no campo da “política da boa vizinhança”, que tem como objetivo prospectar eventuais perspectivas de consolidação de projetos econômicos. Por essa razão, evitam-se rusgas ou comentários “indesejáveis” para manter as relações pacificadas e potencialmente profícuas. Do tipo “amigos, amigos, negócios à parte”.

Mas, seja porque motivo for, o fato de essa relação existir estabelece uma compreensão clara de como o ser humano se encontra no fim da fila das prioridades. A final de contas, esses regimes tratam do poder pelo poder. Os cidadãos estão ali, no meio do seu caminho, podendo ser úteis como massas de manobra ou como obstáculos a serem superados. Só isso. O que eles precisam, querem, aspiram, sonham, ... nada disso importa, nada disso entra na conta do governo. Porque os regimes autoritários são narcísicos, eles supervalorizam a si mesmos, necessitando total reconhecimento de seus feitos e conquistas, enquanto desvalorizam os demais. 

Em suma, o que é prioridade nesses regimes é a ênfase ao culto do líder, de modo que quaisquer oposições ou supostas calúnias a respeito dessa figura são editadas ou silenciadas. Razão pela qual  busca-se consolidar um único partido político, centralizando o poder e garantindo um papel importante na doutrinação popular, uma ferramenta importante para a exacerbação do nacionalismo. De modo que para garantir o sucesso desse processo, eles utilizam das práticas de terror e de censura. 

Entretanto, em pleno mundo contemporâneo, em plena era das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), a realidade dos regimes autoritários extrapola suas próprias fronteiras com muito mais facilidade do que há pouco mais de meio século. De modo que quaisquer tentativas de alegar desconhecimento, ou desinformação, ou ignorância a respeito do que acontece em qualquer canto do mundo, soa propositadamente infame.

Basta uma passada de olhos pela mídia internacional para ser soterrado por uma avalanche de notícias sobre acontecimentos terríveis saídos do forno.  Gente que sumiu de repente. Gente que foi presa por manifestação contra o governo. Jornalistas agredidos ou mortos durante o trabalho. Veículos de imprensa depredados. E por aí vai.

E o que é mais estarrecedor nesse processo é constatar que o número de países com viés arbitrário, autoritário, violento, opressor ou ditatorial tenta se ampliar mundo afora, particularmente, pelo trabalho da extrema-direita. O que essas pessoas não entendem é que se conseguirem, em algum momento, destruir a Democracia, terão restado inúmeros regimes autoritários que começarão a brigar entre si, em nome da hegemonia mundial. Porque não se pode jamais esquecer de que os regimes autoritários são narcísicos, o que dificulta pensar em eventuais alianças ou em coalizões bem-sucedidas. Ora, é o poder que está em jogo.

Porém, enquanto eles se lançam nessa empreitada o mundo está se deteriorando a olhos vistos. Seja pelos desafios ambientais hercúleos. Seja pelos desafios econômicos, os quais incluem a pobreza, a miséria, o desemprego, a inflação, os altos juros, a desaceleração produtiva. Seja pelas doenças que emergem e se alastram com voracidade sobre as populações. ... Individual ou coletivamente esses fenômenos estão levando o planeta a um cenário de desolação, a um imenso deserto de vida, de esperança, de criatividade, de trabalho, de dignidade, ... E mesmo assim, ainda, há quem queira ter “regimes autoritários de estimação”.

Como escreveu David Horowitz, “A questão nunca é a questão; a questão é sempre o PODER”. Cultivar “regimes autoritários de estimação” acaba, então, expressando a certeza de que “A adoração do Estado é a adoração da força. Não há ameaça mais perigosa para a civilização do que um governo de homens incompetentes, corruptos ou vis. Os piores males que a humanidade já suportou foram infligidos pelos governos” (Ludwig Von Mises – economista austríaco).

Desse modo, “Uma diferença fundamental entre as ditaduras modernas e todas as outras tiranias do passado é que o terror não é mais usado como um meio para exterminar e assustar os oponentes, mas como instrumento para governar massas de pessoas que são perfeitamente obedientes” (Hannah Arendt – filósofa alemã).

Afinal de contas, esse tipo de obediência só se torna possível a partir da construção de argumentos impactantes, por exemplo, “Onde livros são queimados, no fim, as pessoas também serão queimadas” (Heinrich Heine – escritor e poeta alemão). Simples assim. Porque, apesar de toda obviedade expressa, ainda, há quem não compreenda que “A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos a frente” (José Saramago - Ensaio sobre a cegueira). 


terça-feira, 23 de novembro de 2021

Democracia...


Democracia...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Então, de repente, o mundo se deu conta de que a Democracia está em declínio. Que bom! Porque já passou da hora de refletir a esse respeito e desconstruir todas aquelas concepções idealizadas. Sim, porque ainda que ela represente um regime de governo, no qual a origem do poder emana do povo, na prática do cotidiano as relações são bem mais complexas e desafiadoras.

Primeiro, porque o direito à participação política, no que diz respeito ao exercício do voto, é bastante relativa. A Democracia permite eleições diretas; mas, também, indiretas. Segundo, porque a existência de concepções distintas – Democracia Liberal, Socialdemocracia e Democracia Neoliberal – torna o princípio da Isegoria, estabelecido na democracia grega, em que todos têm direito à voz e ao voto para que sejam tomadas as decisões, não é efetivamente exercido em todas as suas expressões contemporâneas. O que significa que essa ideia de “poder do povo” só existe até a página dois da história.   

Afinal, o tempo vem descortinando as verdades subjacentes aos fatos. De modo que todo aquele ideário sobre liberdade individual, de opinião, de expressão, de imprensa, sobre igualdade de direitos e de oportunidades, sobre acesso à informação e sobre alternância do poder, é só um ideário. No dia a dia ele vem sendo flexibilizado, moldado e manipulado, segundo os interesses daqueles que realmente têm e estão no poder. É nesse instante que as pessoas tendem a começar a perceber o seu papel nesse movimento de suposta “fragilização” e “declínio” democrático, pela perspectiva das suas escolhas.

É triste admitir; mas, a contemporaneidade tem esse papel bruto de revelar de maneira nua e crua, o que é profundamente nocivo para a displicência social. Vestida pela couraça de um individualismo exacerbado, que perdeu a capacidade de se compreender integrante e integrada a um senso coletivo, a humanidade passou a se sentir senhora da sua liberdade, dos seus desejos, dos seus interesses, sem quaisquer restrições. Ficou pelo caminho o equilíbrio que se tentava manter entre liberdade e segurança, por exemplo. E justamente nesse ponto, a humanidade acabou vulnerabilizando os regimes democráticos.

Ora, na medida em que cada um se considera no direito de clamar pela expressão da sua própria liberdade, isso significa aspectos muito particularizados, de demandas muito próprias, então, ao contrário de ser um grito uníssono, ele se torna a expressão do dissenso, que não alcança um denominador comum capaz de fortalecer uma determinada reivindicação. E as Democracias precisam reconhecer as demandas advindas da vontade popular coletiva, porque elas dependem dos consensos para se moverem adiante. Sem isso, elas se tornam vetores de mesma direção e sentidos opostos que, inevitavelmente, irão se anular, mantendo o estado de inação.

Esse panorama conjuntural tende, então, a ampliar e fortalecer o poder que se encontra nas mãos dos representantes eleitos pelo povo. Porque ao mesmo tempo em que eles enxergam nesse dissenso a impossibilidade de compreender as demandas populares manifestas nesse verdadeiro “balaio de gatos”, eles se veem obrigados a serem “freios de arrumação” para suas respectivas sociedades. Eles passam, então, a atuar de certo modo à revelia do princípio da Isegoria. Assim, quanto mais o direito à voz se torna desproporcional ao voto, para que sejam tomadas as decisões, mais a Democracia é esfacelada pelas tensões que emergem desse processo.

Como o povo não consegue expressar satisfatoriamente os seus anseios, as suas necessidades, as suas prioridades, desencadeando um imenso ruído não decodificável, as nações passam a transitar pelo viés dos interesses determinados pelos representantes eleitos democraticamente.  Daí o melhor recorte que se extrai para explicar esse processo esteja na desigualdade social. As Democracias em tal “declínio” são o espelho desse processo de ruptura com a igualdade, a equidade, o senso holístico. Não é à toa que, quando a situação aperta, o nível de instabilidade se acirra, elas lançam mão de paliativos, de medidas emergenciais, e até placebos, para frear a insatisfação popular, sem permitir o restauro dos verdadeiros alicerces democráticos, ou seja, o princípio da Isonomia e o princípio da Isegoria.   

Então, olhando com total atenção para a Democracia brasileira se torna imperioso tecer algumas considerações importantes. Não sei se, de fato, possa ser atribuído à nossa Democracia a ideia de declínio. Na verdade, para uma eventual decaída seria necessário que ela tivesse, em algum momento, sido efetivamente firme e pujante; o que não foi o caso. Nosso histórico colonial, que ainda exala seu ranço em pleno século XXI, faz crer que nunca houve uma apropriação literal do senso democrático pelos brasileiros.

Aqui e ali no curso da história, o povo sempre esteve sob jugo de certos grupos dominantes, os quais faziam questão de se auto atribuir o papel de representantes da maioria. E mesmo quando o direito ao voto foi determinado juridicamente, demorou muito tempo, só em 1988, para que todos os cidadãos tivessem o direito de fazê-lo. O que, infelizmente, permitiu que muitas práticas de coação e/ou cerceamento das liberdades, inclusive de escolha política, permanecessem. Considerando que velhas práxis são bastante resistentes às mudanças, isso ajuda a explicar a baixa adesão ao protagonismo democrático no país.

Vejam que, de um pleito para outro, uma expressiva parcela da população nem se recorda quem foram suas escolhas representativas. Portanto, não se inteiraram do trabalho de quem escolheram, das suas realizações políticas em favor do povo, se gastaram muito ou pouco, bem ou mal, o dinheiro público, enfim... No fundo, nossa Democracia é, como dizem, “para inglês ver”. Poucos direitos. Muitos deveres e obrigações; mas, que acabam pelas vias do “jeitinho” desrespeitadas e não cumpridas. Com um engajamento político de conveniência, por interesses pouco ortodoxos.

Portanto, o que trouxe o relatório “The Global State of Democracy 2021” (Estado da Democracia global), publicado pela Organização International IDEA, com sede em Estocolmo, sobre o declínio das democracias, me faz entender que o Brasil apenas encontrou eco no cenário internacional para expressar a sua própria essência, para surfar na esteira de outras democracias ameaçadas, como se esse “esfacelamento” fosse algo recente. Acontece que não.

Quando se compreende a Democracia, as palavras do sociólogo polonês Zygmunt Bauman fazem total sentido, ou seja, “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois”.

A questão é que nós, brasileiros, nunca a compreendemos. Por isso, o que chamamos de Democracia não passa de uma construção social de “meia pataca”, uma distorção, uma tendenciosidade vulgar, um enviesamento qualquer. Nos consideramos demasiadamente libertários, porque nossa identidade nacional foi assim constituída. De modo que qualquer eventual preocupação com a segurança nunca pareceu necessária porque sempre havia alguém para pensar, para decidir, para resolver, para fazer e acontecer. Bom ou ruim, o cotidiano tinha, então, que ser assimilado goela abaixo. Ninguém jamais ansiou pelo protagonismo de tomar a dianteira da situação. Talvez, pelo fato de nos sentirmos incapazes, inábeis, desajeitados, ... ou, simplesmente, preguiçosos, apáticos crônicos.

Quem sabe, então, esse relatório possa nos movimentar para fora dessa pseudo zona de conforto, hein? Porque “Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia” (Nelson Mandela – Nobel da Paz). Sem essa consciência, O Brasil permanecerá reafirmando a ideia de que “Democracia quer simplesmente dizer o desencanto do povo, pelo povo, para o povo” (Oscar Wilde – poeta e dramaturgo irlandês). Afinal de contas, “Se a liberdade e a democracia, não são termos equivalentes, mas são complementares: Sem liberdade, a democracia é despotismo, a democracia sem a liberdade é uma ilusão” (Octavio Paz – poeta, ensaísta, tradutor e diplomata mexicano).


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O Enem e o “balão de ensaio”


O Enem e o “balão de ensaio”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Passado o primeiro dia de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a reflexão e a análise começam a se mostrar reveladoras além do óbvio. De antemão já se sabia que o número de inscritos para o exame impresso de 2020 para 2021 reduziu em 31%, ou seja, de 5.783.357 para 3.903.664. Que o percentual de estudantes pretos, pardos, amarelos ou indígenas caiu de 63,2% para 56,4%. E quanto ao primeiro dia de provas impressas, o nível de abstenção foi de 26%, segundo informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

No entanto, considerando o recorde de abstenções do 1º dia, em 2020, quando 51,5% dos alunos não compareceu para realizar a prova impressa, era de se esperar que esse ano seria diferente, que as abstenções seriam praticamente mínimas, por conta da vacinação contra a COVID-19 e uma tendência de arrefecimento da Pandemia. Só que não.

Dessa vez, a crise institucional que se estabeleceu no Inep dias antes do início do Enem, com o pedido de demissão de 35 funcionários, após dois coordenadores-gerais também terem solicitado desligamento, e a confecção de um documento reunindo denúncias de perseguição aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC e falta de comando técnico, foi a gota d’água da desestabilização.

Mas, é importante salientar às conjunturas, o acréscimo devastador promovido pelas falas e narrativas, enviesadas e vazias, que partiram desde o Presidente da República ao Ministro da Educação e o Presidente do Inep sobre tais acontecimentos.  

Receio e apreensão configuraram, então, o sentimento que se abateu sobre alunos, professores e funcionários do Inep, especialmente, porque, “segundo o dossiê, ‘depoimentos indicam pressão política oriunda da presidência do órgão para retirada de questões, sem motivo idôneo, como relatado na imprensa12.

Afinal de contas, se houve quebra de sigilo das provas e censura a questões por motivos injustificáveis, é inevitável pensar na hipótese de eventual cerceamento da liberdade de expressão dos alunos na prova de redação, que tem o maior peso nas notas. Mas, também, no que estaria por vir desse processo, no próprio campo de ensino e preparação dos alunos dentro do ciclo de educação nacional.

Então, para os que decidiram comparecer aos locais de prova, o frisson em torno do controle “ideológico” se mostrou um verdadeiro “balão de ensaio”, cumprindo o seu papel de afugentar, de amedrontar, alunos já tão desgastados e consumidos pelos impactos da pandemia no seu processo de aprendizagem.

Inclusive, o tema da redação ter sido “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” surpreendeu pela possibilidade crítico-reflexiva. Porém, em relação a esse item da prova, como “precaução e caldo de galinha não faz mal a ninguém”, há de se esperar sob que viés serão corrigidos os textos.  

Ora, ora. Um pouco de observação às ações do Ministério da Educação, nos últimos três anos, para se constatar as intenções que transitam ao redor do Ensino Superior, no Brasil. Daqui e dali surgem iniciativas para desmantelar, desconstruir, desconfigurar as conquistas e os avanços nesse setor, começando por cortes de verbas cada vez mais substanciosos, que impedem as garantias de manutenção do tripé “Ensino, Pesquisa e Extensão”.

Mas, não para por aí. Há um visível propósito em resgatar o elitismo das universidades brasileiras, obstaculizando o ingresso das camadas menos favorecidas e predominantemente não brancas. Aliás, “Perto de completar uma década, a Lei de Cotas nas instituições de ensino federal entra em um momento decisivo. ‘Terá que ser revisada em 2022’ – um processo previsto em seu artigo sétimo que tem mobilizado defensores das políticas afirmativas. As inquietações são muitas. Ao mesmo tempo em que há o temor de que a polarização política ponha em risco uma medida com efeitos sociais claros, há a expectativa de que esta possa ser uma oportunidade para corrigir falhas” 3.

E no que diz respeito ao Enem, essa questão é de suma importância; pois, é através dele que negros, pardos, amarelos ou indígenas podem ultrapassar os portais das universidades brasileiras. E como são eles a grande maioria dos inscritos... Oriundos de escolas públicas e pertencentes as parcelas menos privilegiadas da população. Desse modo, há uma fragilidade na suficiência e eficiência da sua formação educacional para lhes possibilitar igualdade de disputa. Muitos trabalham, o que reduz o seu tempo e disposição de estudo. Muitos não têm acessibilidade digital e letramento digital capaz de suprir as suas demandas educacionais. ...

Cada obstáculo imposto no seu caminho, então, o afasta cada vez mais das possibilidades de ingresso ao Ensino Superior. O que mostraram as pesquisas realizadas durante a Pandemia, por exemplo. Foram esses alunos os que mais sofreram os impactos da suspensão das aulas presenciais, em todos os níveis de ensino, por um conjunto de desassistências sociais diversas. O que significa que as suas oportunidades de ruptura com o seu status social, através da ascensão escolar, são quase nulas dada a falta de políticas públicas efetivamente compromissadas com esse direito fundamental.

Para eles quaisquer mínimas desestabilizações em um momento tão importante de suas vidas, como é o Enem, significa um tsunami sobre seus sonhos, suas esperanças, suas expectativas. Suas histórias de perdas e decepções sociais são tão dilacerantes que já trivializaram o seu ímpeto de postergação ou desistência, a fim de mitigar as frustrações e os desalentos.

Por isso, o tal “balão de ensaio” funciona, porque eles têm uma projeção das suas habilidades, das suas competências, dos seus conhecimentos para fazer a prova, e sabem, quase sempre, que ela não é muito grande. Que eles vão ter que driblar muitas variáveis para reduzir a distância que os separa dos “bem preparados”; sobretudo, na redação. E de repente, estão sendo subliminarmente confrontados a pensar obedientemente, a silenciar a sua criatividade, a sua liberdade de expressão. Mais uma pedra a pesar sobre os ombros e cansar demasiadamente a esperança.

É tudo muito triste! O Enem foi criado para encurtar distâncias sociais, para promover mais igualdade de acesso às universidades, para oportunizar novos paradigmas para o país, e de repente... sob o silêncio ensurdecedor de milhares de pessoas, anônimas e influentes, ele deixa de ser um projeto de Estado para se tornar um projeto de governo. Sem se importar com o retrocesso que esse movimento representa. Sem se importar com as demandas do mercado de trabalho. Sem se importar com o desenvolvimento científico e tecnológico. Sem se importar com absolutamente nada.

A desconstrução do Enem para dar lugar aos caprichos, aos devaneios e as ignorâncias político-ideológicas em curso, não pune só a sociedade, pune o país como um todo. Pune o desenvolvimento. Pune o progresso. Pune a ciência. Pune o comércio. Pune a arrecadação de divisas. Pune... Por anos, por décadas, por séculos.

De modo que é impossível não pensar nas palavras de Paulo Freire, quando disse que “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. A continuar como estamos, então, ...

domingo, 21 de novembro de 2021

Sob o risco de “mais do mesmo”

Sob o risco de “mais do mesmo”

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A incipiente consciência cidadã do brasileiro é algo que me preocupa muito, particularmente, diante das conjunturas atuais. Vejam, por exemplo, a discussão que se forma em torno de uma terceira via para concorrer à Presidência da República, no ano que vem. Vejo as pessoas preocupadas com nomes e não com ideias, projetos, propostas, elementos suficientemente consistentes e distantes dos outros dois candidatos que se apresentam para a corrida eleitoral.

Ora, esse deveria ser o ponto de análise. Afinal, a atual gestão chegou ao poder depois de hastear inúmeras bandeiras, tais como “nova política”, “antipetismo”, “combate à corrupção”, “liberalismo econômico”, “resgate de valores conservadores”; as quais foram lentamente sendo rasgadas e destituídas para que “mais do mesmo” se apresentasse aos brasileiros e brasileiras.

Acontece que essas pautas apesar de chegarem juntas em um mesmo “pacote”, não eram recebidas igualmente pelos eleitores, ou seja, cada grupo elencava a sua para oferecer o apoio. Daí a debandada ter acontecido de maneira gradualmente desigual. Cada pauta que desaparecia do cenário fazia perder um percentual de apoiadores diferentes.

No entanto, esse movimento é bastante significativo. Porque ele evidencia como esses eleitores não se deram conta de que a deterioração do país nesse período se deu em razão desse “combo” de ideias. Não foi isso ou aquilo o fiel da balança do que se tem como realidade atual; mas, o somatório de tudo. De modo que ele atribuir a sua decepção, ou frustração, ou indignação, ou o que quer que seja, ao abandono dessa ou daquela pauta é uma visão muito limitada da situação.  

Trata-se de um sinal claríssimo de que se a pauta do seu interesse tivesse sido cumprida, para ele estaria tudo às mil maravilhas. Ele não faria objeção ao restante. Tudo poderia estar “explodindo”, “desabando”, “naufragando”, que para ele estaria tudo bem. Porque ele não consegue enxergar o país além dessa forma dissociada, fragmentada, partida em pedacinhos, que só faz atender aos seus interesses individuais e não, coletivos.

Mas, o cerne do problema, é que dentre esse contingente de eleitores que apoia (ou apoiou) a atual gestão se encontra uma massa expressiva da classe política nacional. Gente que não só depositou seu voto na urna, a favor da atual gestão; mas, também, subiu no palanque, discursou, fez campanha, tirou fotografia, enfim... exibiu publicamente a sua imagem de apoiador irrestrito. E agora, tenta emplacar um “mea culpa” meio desajeitado, meio esquisito, que não parece conseguir entoar, como fazem todos os cidadãos comuns decepcionados, frustrados, indignados etc.etc.etc.

Vejam que incrível esse fenômeno! Três anos depois de toda a manifestação esfuziante e aparentemente convicta de apoio, eles agora lançam as lembranças e as memórias sob o tapete da história, para se despontarem como a mais nova opção para o pleito de 2022. Tentam fazer de um tudo para repaginar o discurso e a narrativa da ocasião, como se o passado tivesse sido um transe, um evento errático inexplicável, que não coaduna em absolutamente nada com suas convicções. Será?!

Depois de tudo é difícil acreditar. Mesmo porque, pessoas que mudam de opinião, como uma “folha de bananeira”, não costumam transmitir credibilidade, consistência, firmeza de opinião. Estão mais para satisfazer seus interesses pessoais, suas ambições, seus pontos de vista, suas jogadas no tabuleiro da vida. E por mais que isso pareça trivializado, banalizado, especialmente, no campo político, o resumo da ópera não muda, continua sendo frívolo, volúvel, instável, efêmero, ... o que não é nada bom.

Ainda mais, quando se fala de Brasil. Quando se olha ao redor e vê essa conjuntura caótica, seguindo à deriva, para acreditar que alguém de espírito leviano seja capaz de resolver a situação. Sim, porque esse tipo de pessoa se permitiu acreditar no suposto “programa de campanha”, apresentado em 2018, o qual fracassou como era de se esperar. Se o Brasil, hoje, exibe uma imagem caricata, que o torna pária internacional, é porque ela colaborou, ela se aliou a esse projeto absurdo.

Pois é, enquanto ventilam-se nomes, daqui e dali, como opção de uma terceira via; menos eles parecem sustentáveis. Direta ou indiretamente seus currículos políticos se ligam ao atual governo, ou seja, se ligam a esse modelo de gestão que está sumariamente esfacelando o país. Basta ver em suas breves falas à imprensa, linhas e entrelinhas que repetem o ideário vigente. Aliás, me parece que nem se preocupam em disfarçar ou omitir que pensam exatamente da mesma maneira. Então, por que se dizem terceira via? Essa é a pergunta das perguntas.

O que tende a acabar acontecendo é que sem perspectivas de se projetarem suficientemente concorrentes para competir com os outros dois candidatos, teoricamente já consolidados, em caso de segundo turno eles acabarão fazendo os seus eleitores migrarem para o lado da direita e extrema-direita, que é a representação das suas ideias.

Infelizmente, eles são sim, “mais do mesmo” e não se mostram constrangidos ou desconfortáveis com a realidade do país que pretendem governar. Pelo contrário, eles fortalecem e legitimam as pautas que vêm lançando o Brasil à bancarrota e que acirram as desigualdades sociais de maneira totalmente perversa e brutal. Eles pensam que podem fazer dar certo o que não deu nessa gestão, como se o problema não estivesse calcado nas próprias pautas.

Se esquecem de que elas vieram ancoradas em uma realidade de país, de mais de meio século atrás, de modo que não tinha como funcionar. Ora, quantas gerações transitaram por esse período até aqui? Quantas novidades passaram a compor a vida das pessoas? Quantos hábitos e costumes foram revolucionados? Quantas tecnologias transformaram as informações e comunicações sociais? ...

Portanto, não dá para desconsiderar uma reflexão a respeito. O cenário atual do país é muito grave, não é para amadores, nem para oportunistas, nem para “salvadores da pátria”. Há tanto por fazer na mesma proporção da impossibilidade de realizar. A complexidade dos desafios é imensa, especialmente, tendo em vista um déficit fiscal gigantesco já confirmado pelo governo, o qual retira o sono do mercado financeiro, das agências de risco e das entidades ligadas à Economia em todo o mundo.

Assumir a governança do Brasil não é o difícil. O difícil será governar. Será colocar o país nos trilhos do desenvolvimento, do progresso, do alinhamento globalizado contemporâneo. Será compreender que a questão é ser popular e não populista. Será se cercar de gente séria e responsável; mas, sobretudo, habilidosa e suficientemente competente para desfazer os nós e os entraves vigentes, não se esquecendo de que o país é feito de gente, de seres humanos, de milhares de vidas, todas elas importantes.

O tempo da governança política sob vieses, interesses, poderes, tudo isso está ultrapassado. O mundo do século XXI exige um olhar holístico, integrado, multifacetado, que conecte todas as peças do tabuleiro, que dialogue para atender a todas as demandas, que trabalhe com a realidade e não, com idealizações e projeções infundadas. Não alcançar essas perspectivas não significa simplesmente ficar no atraso ou à margem; significa não sobreviver. Então, cuidado com o seu voto!