quinta-feira, 31 de março de 2022

Rir ou chorar???


Rir ou chorar???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não há o que comemorar. Mantendo-se estagnada em 11,2% nesse primeiro trimestre do ano, a taxa de desemprego no país é só mais um componente do desarranjo social brasileiro.  Afinal, isso significa que há 12 milhões de desempregados, 4,7 milhões de desalentados, uma interrupção no contingente populacional ocupado e na queda de rendimento do cidadão 1. Enquanto isso, a inflação galopa, os juros extrapolam as expectativas, o PIB (Produto Interno Bruto) é constantemente reavaliado para baixo, e não se vê uma economia com sinais de recuperação, ou avanços, ou melhorias.

Portanto, esse cenário não torna o Brasil nenhum espelho de desenvolvimento e progresso. Muito pelo contrário. Esse acirramento das conjunturas econômicas não só traduz uma precarização do trabalho; mas, por consequência, da vida do próprio cidadão. Porque ela não se restringe as relações de trabalho em si; mas, ela tem uma capilaridade assustadora por toda a engrenagem produtiva e de comercialização. Tudo está visivelmente se precarizando, ano após ano, sem que medidas eficientes e suficientes sejam tomadas a esse respeito.

Perdemos o bonde da história? Esquecemos de fazer o dever de casa? Parece que sim.  Muito antes que quaisquer imprevisibilidades rompessem com o equilíbrio do mundo, a situação por aqui já não era das melhores. Então, não há outra maneira senão pagar o custo alto e amargo que advém dessa inação. O Brasil quer um protagonismo no cenário global; mas, insiste em se manter no atraso, absorvido por convicções retrógradas, desalinhado das inovações nos meios de produção. Não se vê um planejamento bem estruturado para os diversos setores da economia, tudo parece pontual, desconectado, como se estivessem mesmo, correndo atrás dos prejuízos.

São raras as exceções, nos parques industriais brasileiros, que se mostram estruturadas a partir das mais modernas tecnologias e inovações. No geral, a realidade está bem aquém dos concorrentes mais diretos no mercado. Temos dificuldade de mão de obra técnica e especializada para diversos setores. Pecamos na ausência de investimentos e de produção de certos insumos que poderiam desafogar a dependência de importação; bem como, reduzir custos ao produto final. Esbarramos na precariedade do escoamento de produtos através de rodovias, hidrovias, portos e/ou aeroportos que não conseguem atender as demandas mais elementares do processo. Enfim...

Além disso, no que diz respeito a ausência de uma nova formulação para as relações de trabalho há uma visível incompatibilidade com as demandas produtivas contemporâneas; bem como, com as demandas de trabalhadores existentes e a chegar no mercado. Afinal, esse trânsito às cegas da economia, inevitavelmente, esbarra na escassez e na fragilidade de políticas públicas que possam mitigar as fronteiras da desigualdade social.

Isso significa que o país, portanto, perde muito em termos de competividade internacional e quem paga o preço disso são os seus cidadãos. Porque lá fora, eles simplesmente nos colocam de fora das mesas de negociação. Eles param de comprar os nossos produtos e vão dar lucro para quem possa atendê-los mais satisfatoriamente. Eles querem bom preço, boa qualidade, agilidade na entrega, alinhamento as práticas comerciais contemporâneas. 

A percepção que se tem, olhando para o Brasil, especialmente nos últimos três anos, é que não se vê, por parte do governo, quaisquer problemas em dissociar a precarização nos processos de produção da precarização do trabalho, ou seja, como se não estivesse no somatório dessas precarizações uma parte importante da expressão do perfil conjuntural da crise econômica que se tem. Basta ver que a quantidade de vagas disponíveis, por exemplo, é cada vez menor e supre cada vez menos as demandas de um contingente de trabalhadores que só faz crescer. O que obriga essas pessoas, então, a buscarem soluções alternativas para sua sobrevivência que representam uma verdadeira precarização da precarização.

E um dos aspectos importantes a ser destacado é o fato de que em paralelo a essas precarizações citadas, houve mais uma precarização extremante importante que diz respeito a Educação.  Sem planejamento e investimentos na Educação não há Ciência e nem Tecnologia para atender tanto as necessidades dos meios de produção quanto da formação profissional e cidadã do trabalhador.

Sim, porque uma Educação bem consolidada, bem pensada, possibilita ao indivíduo transitar por épocas de “vacas gordas”; mas, também, de “vacas magras” no mercado de trabalho. Porque lhe possibilita conhecer seus próprios talentos, suas próprias habilidades, suas próprias competências, suas multifacetadas aptidões, permitindo criar planos A, B, C, ... na hora de enfrentar as adversidades do cotidiano. Gente assim, conscientemente preparada, não deixa a peteca da economia cair, mantendo o consumo seguindo o fluxo, as contas em dia, os planos em pleno vapor.

Mas, por isso precisa ser uma “senhora Educação”! Não pode ser mais ou menos! Anos e anos nos bancos da escola, canudos na mão, já mostraram que não são por si só a chave do sucesso profissional. Infelizmente, a Educação no Brasil está impregnada de idealizações, de elitismos, na sua formulação e aplicação que fragilizam tanto a formação profissional quanto cidadã. Não é à toa que, em pleno século XXI, ainda se venda, por aí, a ideia de certas profissões como passaporte de uma vida estável e bem-sucedida, quando a realidade é bem outra.

Pois é, entre esses milhões de desempregados, de desalentados, há tantos diplomados, tanta gente teoricamente qualificada, habilitada; mas, segundo os analistas de talentos humanos, não “cabem no perfil” das vagas disponíveis. Às vezes, são muito qualificados. Outras são menos. Às vezes, estão migrando de áreas muito diferentes. Às vezes, a formação implica em salários superiores aos oferecidos e, por essa razão, contratá-los pode significar problemas jurídicos futuros. Às vezes, a distância do local de trabalho se torna um obstáculo para contratação. E por aí vai... Senões para não contratar esse ou aquele candidato se proliferam, também, aos milhões.

De modo que a pergunta a se fazer é: sinceramente, temos ou não razões para comemorar? Porque a impressão, no momento, é de que chegamos a um beco sem saída e que os prognósticos não apontam para nada muito positivo mais adiante. Há um universo de crises dentro de uma crise econômica e elas tensionam o sistema, afetando outros setores da vida cotidiana e exacerbando o descontentamento, a indignação, a preocupação popular. Tamanha instabilidade, insegurança, imprevisibilidade nos rumos da economia nacional não tem oferecido outra perspectiva a não ser tirar o sono e a tranquilidade do cidadão. Afinal, não dá para esquecer de que a fome tem pressa. A doença tem pressa. ... A vida tem pressa.

quarta-feira, 30 de março de 2022

Brasil: seus precedentes, suas vergonhas, seus constrangimentos...


Brasil: seus precedentes, suas vergonhas, seus constrangimentos...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há quem considere que abrir precedente é um atitude bastante diplomática e mitigadora de certos conflitos; mas, eu não concordo. Abrir precedente é romper com limites já estabelecidos, é subverter a ordem definida, possibilitando repercussões e desdobramentos imprevisíveis.

Afinal, se há um parâmetro definido a se seguir é porque foram pesados prós e contras a respeito, estimados os riscos e as vantagens. Quando se toma uma atitude nesse sentido, também, se está colocando os indivíduos em posições de importância ou de desimportância muito bem definidas. E, no Brasil, essa é uma prática comum.

Precedentes por aqui são pretextos bem-vindos aos interesses mais questionáveis possíveis. O que de certa forma contribui diretamente para a degradação e difamação da sua imagem; sobretudo, no campo internacional.

Pois é, por trás das nossas vergonhas, dos nossos constrangimentos, das nossas humilhações públicas, estão muitos precedentes distribuídos aleatoriamente, sem quaisquer critérios de análise e/ou reflexão. A tal ponto que muitos deles nos fazem lamentar profundamente as terríveis mazelas emergidas.

Todas as vezes em que as situações apertam, que os calos doem, o brasileiro recorre a possibilidade de que uma “boa alma” lhe abra um precedente para que não fique em maus lençóis. Quem nunca ouviu falar sobre o famoso “jeitinho brasileiro”?  Ele, nada mais é do que um modo de estabelecer um precedente criativo diante da resolução de conflitos extremamente graves, até mesmo, crimes, incluindo aqueles contra a administração pública.

Então, se enviesa a interpretação daqui, distorce dali, deturpa acolá, e quando se vê, tudo foi atenuado para fazer caber dentro dos interesses de uns e outros. Afinal, tem muita gente com telhado de vidro, por aí!

No fim das contas, os precedentes custam caro para a sociedade, pois arranham a moral, a ética, a imagem, a credibilidade, a lisura de pessoas físicas e jurídicas, de instituições, de poderes. Vejamos o exemplo da atual guerra no leste europeu.

A maneira com a qual o mundo lidou com a invasão e a anexação da Criméia, em 2014, pela Rússia, constituiu um precedente para o conflito atual. Ora, o modo como as situações são respondidas diz muito sobre as relações humanas que se pretendem estabelecer.

Especialmente, quando as ações infringem limites definidos jurídica, institucional e geopoliticamente, como nesse caso. Os precedentes sinalizam até que ponto se pode ir em uma situação, porque deixam claras as respostas de que como os outros reagiram a investida inicial.

Aliás, crianças fazem isso desde pequenas. Elas testam os adultos o tempo todo para saber se podem ou não fazer isso ou aquilo. Se os pais acham engraçado em um primeiro momento e depois se enraivecem em uma segunda ocasião, elas ficam desnorteadas porque houve uma ruptura de precedente. Daí a necessidade de não se criar precedentes que sejam exceções esporádicas, eventuais, segundo a vontade ou a intenção no contexto de um determinado momento.

É estranho, mas em pleno século XXI, vemos cada vez mais a necessidade de nos questionarmos sobre o óbvio, ou seja, o que nos leva a criação de tantos precedentes? Por que não podemos agir dentro da naturalidade das regras, dos princípios, das normas, das leis, que foram criadas para harmonizar um senso comum? Por que tamanho ímpeto em infringir, em transgredir, em se diferenciar negativamente dos demais?

Afinal, estamos não apenas transformando excepcionalidades em regras como, também, tornando as exceções individualizadas, ou seja, os precedentes surgem sob medida. Serve para esse; mas, não serve para aquele.

De modo que as pessoas ao se sentirem incomodadas, desconfortáveis, acuadas dentro de certas circunstâncias, saem por aí clamando por um precedente, o qual nem sempre vai estar ao seu alcance, porque ele existe atrelado ao protocolo da desigualdade.

Vejam, por exemplo, que um cidadão que comete um furto famélico, ou seja, quando furta comida, ou medicamento, ou algo imprescindível à sua sobrevivência, sem uso de violência ou arma, é apresentado a autoridade policial de pronto e aguarda audiência preso.

Mas, um cidadão que comete um delito, do tipo “colarinho branco”, por exemplo, ele pode passar uma vida inteira sem nada a responder à Justiça, porque se estabelecem precedentes diversos para que isso aconteça, no Brasil.   

O pior é que, de algum modo, uma grande parcela da população é conivente com esse tipo de situação. Muitos acreditam estar em uma posição que podem eventualmente vir a se beneficiar dos precedentes. Então, se calam, silenciam, se abstém de pensar ou discutir a respeito.

Porque os precedentes levam em consideração um enquadramento subjetivo do cidadão dentro de certos quesitos instituídos pela própria sociedade. De modo que o inconsciente coletivo da identidade nacional acaba por ter um peso gigantesco nesse processo. 

Em síntese, isso quer dizer que alguns são considerados bons, ou estão acima de qualquer suspeita, e, portanto, aprovados para se abrirem precedentes a seu favor. Outros são ruins, ou estão sempre sob suspeita, então, não são merecedores para se abrirem precedentes a seu favor.

E assim, os precedentes vão reafirmando cada vez mais que “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo lugar” (Martin Luther King Jr.), especialmente, porque “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu – Prêmio Nobel da Paz, 1984). Os precedentes são, na maioria das vezes, então, os melhores instrumentos para materializar as injustiças.

Não nos esqueçamos de que a vida não é receita de bolo e tudo aquilo que deixamos passar pelo silêncio, ou pela indiferença, ou pela negligência, mais cedo ou mais tarde vai cobrar seu preço.

Por mais semelhanças possam existir entre muitos acontecimentos da vida, cada caso deve ser submetido a uma análise própria, a fim de que erros, distorções, equívocos não sejam propagados e/ou perpetuados.

Cuidado para os espaços abertos para o ”Ah! Mas...”, porque os acontecimentos incluem pessoas e essas são diferentes, são únicas na sua forma de ser, de agir, de pensar, de dizer; e, esse é o ponto da virada na história. 

terça-feira, 29 de março de 2022

O avesso do Brasil...


O avesso do Brasil...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De fato, entender o Brasil não é para principiantes. Vira daqui, mexe dali, e as pessoas se perdem em um labirinto de contradições que impossibilita se chegar a alguma conclusão consistente. Estamos em pleno ano eleitoral; mas, não parecem claros os sinais lançados pela população.

A princípio a insatisfação com a realidade aponta para um movimento popular que almeja mudança, um desejo de reconstrução do país. Mas, basta um piscar de olhos, para se descobrir que o tal brado não é uníssono e que o senso de cidadania do brasileiro é muito frágil.

Duas matérias jornalísticas me chamaram a atenção. “’Feiras do rolo’ em SP vendem bicicletas nacionais e importadas sem notas fiscais; polícia apura se bikes são roubadas. Reportagem gravou vídeos que mostram comércio irregular de bicicletas importadas sendo vendidas por preços mais baixos de mercado. Pasta da Segurança informa que polícia irá investigar denúncia. Estado e capital tiveram aumento de casos de roubos e furtos. Na capital foram 21% entre 2020 e 2021” 1 e “Furto em estação da Deso compromete abastecimento de água em 34 localidades sergipanas. Cabos e componentes elétricos foram levados de estação do sistema Sertaneja” 2.

Para início de conversa, antes de qualquer outro comentário, vale destacar que não importa se esses crimes são cometidos contra entes privados ou públicos. São crimes e ponto final. Mas, não deixa de ser lastimável se deparar, através deles, com a materialização da anticidadania.

Ora, na medida em que, sem qualquer pudor ou constrangimento, certos (as) brasileiros (as) se consideram “acima do Bem e do Mal” não só para desafiar as leis do seu país; mas, para causar prejuízos aos seus semelhantes e ao próprio erário, eles não deveriam ser considerados cidadãos. Afinal de contas, a cidadania implica necessariamente em assumir direitos e deveres dentro de uma sociedade.     

No entanto, esse tipo de comportamento ilustrado acima não começa e termina no ato delituoso em si. O que leva alguém a praticar crimes dessa natureza é porque tem a certeza de que na outra ponta da história haverá, sempre, os receptadores e os compradores para os produtos furtados.

Portanto, a cadeia do “malfeito” costuma ser bem maior do que se imagina, o que leva a pensar que espalhados dentro da sociedade, nos mais diferentes espaços, há muita gente que coaduna com tais práticas.

Trata-se de um sinal da existência real de uma gradação para as situações do cotidiano, a fim de atenuar ou contemporizar questões que são graves em si mesmas. Não há crime maior ou menor. Há crime. Não há prejuízo maior ou menor. Há prejuízo. ...

Isso significa que muitos (as) brasileiros (a) se comportam mal, se desviam da sua cidadania, porque acreditam na existência de uma suposta legitimidade social. Considerando que os esforços institucionais e jurídicos parecem insuficientes para conter e coibir a diversidade de práticas delituosas exercidas recorrentemente no país. De modo que paira no ar a presença de um pacto velado a esse respeito, favorecendo a sua manutenção em qualquer tempo, em qualquer lugar.

Sobretudo, porque não se pode esquecer o fato de que a humanidade vive, mais e mais, enovelada pelas tramas tecidas por uma sociedade de consumo, enquanto o poder aquisitivo da imensa maioria se reduz de maneira inversamente proporcional.

Bem estimulado, o desejo de ter não tem freios, porque ele é um elo com o pertencimento, com a visibilidade, com a expressão do status social. Então, quando não podem adquirir pelas vias legais os bens do seu interesse, as pessoas se lançam nessa espiral de transgressão, de vale-tudo. Se permitem cair na tentação de que “os fins justificam os meios”.

Ora, ora; mas, não é exatamente esse um pequeno fragmento da realidade nacional brasileira que todos julgam ser errado, ser ruim, ser prejudicial? Como é que pode? Dois pesos e duas medidas? Essa é a receita do Brasil?

Esse é o modus operandi que nos coloca em xeque quanto à credibilidade da decepção, do descontentamento, da indignação popular, às vésperas de uma eleição tão importante, que irá definir os rumos do país, dos estados e do Distrito Federal pelos próximos 4 anos.

Não dá para relativizar, para compartimentalizar, para ranquear a cidadania, a fim de fazê-la caber, sem maiores conflitos, dentro dos interesses individuais e coletivos. Quaisquer manifestações de anticidadania estão impregnadas de tamanho individualismo que ao beirar às raias do absurdo não se importam, nem mesmo, em cometer crimes.  

Daí fica uma impressão de que todo o falatório, todas as reclamações, todas as falas ásperas, no fundo, têm um certo ar de “dor de cotovelo”, como se quisessem mesmo, era estar naquela posição, naquele lugar, sobre o qual extravasam a sua raiva.

Talvez, por isso, a classe política esteja como está. Ela é feita do povo. Ela conhece a fundo o que passa na alma e na consciência dessa gente. Pode-se pensar até, que são espelhos que se refletem mutuamente. Daí a reprodução contínua da história, ou seja, “Macaco senta no próprio rabo para falar do rabo dos outros”.

Acaba-se criando, então, uma zona de conforto que retém as ousadias, os ímpetos de transformação, porque aqui e ali todos têm medo do que podem eventualmente perder dentro da sociedade. Desse modo, se não houver uma ruptura desse processo, algo consciente e ressignificativo, a sociedade brasileira tende a não alcançar, em nenhum tempo da sua história, nada de novo para as suas relações sociais e, particularmente, políticas.  

segunda-feira, 28 de março de 2022

Um tapa?!


Um tapa?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um tapa é um ato de violência? Sim. Por essa razão deve ser repudiado? Sim. Acontece que essa linearidade de pensamento é insuficiente para dar conta de todo um processo que levou a essa atitude extrema, o tapa. Só mediante um desequilíbrio total, para que alguém saia por aí distribuindo tapas, sopapos e socos, gratuitamente.

99,99% das vezes, o destempero que gera tamanho espanto, tamanha incredulidade, tamanha perplexidade, é somente o fruto amargo de uma tecitura de longa data, de repetidas vezes em que as tentativas em contemporizar, atenuar, desconsiderar, palavras e atitudes, foram empregadas.

Ora, mas vive-se na contemporaneidade e ela, infelizmente, tem sido pródiga em promover desgastes emocionais desnecessários, a fim de mensurar até que ponto resiste a paciência, o sangue frio, a tolerância do outro. Trata-se da velha história de esticar a corda até que ela finalmente arrebente.

E para isso, caro (a) leitor (a), as pessoas têm se valido dos motivos mais estapafúrdios e torpes possíveis para empregar a prática, não importando se vai ferir, vai magoar, vai ofender, vai difamar, vai humilhar, o outro.

O que os praticantes desse confronto contemporâneo almejam é fazer com que seus semelhantes percam as estribeiras, para depois virem cheios de razão afirmar que foi só “uma brincadeira”, “uma piada”, que não se teve quaisquer outras intenções. O problema é que sempre tem, ninguém age assim, dessa forma, sem pretensões agressivas.

Porque, por mais que a linguagem possa ser atravessada por interpretações diversas, ela jamais impede que se extraia dela quaisquer gotas ácidas de fel ofensivo. O ser humano sabe muito bem distinguir uma coisa da outra. O ser humano conhece a ironia. Conhece o desdém. Conhece a afronta. Conhece todos os meandros da violência verbal, mesmo quando fala com a placidez de uma voz macia como um veludo.

Mas, muita gente conta com a ideia de que o ser humano, desde que mundo é mundo, adora viver o fervor das arenas, dos confrontos, dos conflitos, e passa a fomentá-los cada vez mais inadvertida e irresponsavelmente. Fazendo da verborragia uma chama que se mantém alta e perigosa.

Porque não parece encontrar nenhum tipo de resistência interior, nenhum filtro de bom senso, de ética, de respeito, de empatia. É só falar, falar, falar... até que, de repente, encontre uma voz dissonante que lhe confronte.

Mas, quando isso acontece, quase sempre a paz já se esgarçou entre os indivíduos. Aliás, não deveria ser preciso dizer para se ter o cuidado da observação e perceber que a humanidade vive tempos muitos difíceis, de muitas tensões, de muitas angústias, de muitos problemas, de muitas adversidades. Seu eixo de equilíbrio está sendo constantemente posto à prova por inúmeras razões.

De modo que ninguém precisa de mais nenhum peso colocado sobre os ombros para eventualmente sucumbir. Não, não se precisa de palavras, nem de atitudes adicionais, para que uma reação destemperada emerja repentinamente. Inclusive, é em momentos assim, que muitas pessoas se surpreendem com elas mesmas, porque é algo muito estranho ao seu padrão habitual.

Por isso é fundamental compreender que determinadas circunstâncias deflagram um conjunto de emoções e de sentimentos que vieram sendo meticulosamente acumulados, durante um certo tempo, e que não foram suficientemente digeridas e resignificadas. Ficaram lá, paradas, indigestas, aguardando por um momento em que pudessem ser extravasadas. O que nem sempre vai acontecer da maneira mais adequada, no momento mais oportuno, minimizando os estragos e as consequências.

O que fica de situações assim, é bastante óbvio. O ser humano é uma incógnita. Ninguém consegue medir exatamente as reações dos outros, em nenhuma situação. Nem ele próprio. Porque ninguém é 100% consciência o tempo todo.

Parte de nós é regida e dominada pelo inconsciente, e esse é capaz de nos trair, de nos afetar as decisões, de modificar nossas percepções e juízos, de exacerbar nossas emoções e sentimentos, enfim... Algo que explica a total impossibilidade de creditar nas atitudes e comportamentos um caráter totalmente inofensivo.

Portanto, nada é ao acaso. Como dizia Sigmund Freud, “Somos as palavras que trocamos...”. O lado bom e o lado ruim das vidas humanas são construídos tijolo por tijolo, passo a passo. Por isso, o ponto de análise não pode se dar a partir daquele que caiu inesperadamente. É preciso observar em que ponto da jornada as falhas começaram a interferir na sua estabilidade.

Tudo isso é sinal de humanidade. Seres humanos erram. Seres humanos falham. Seres humanos são incompletos. E nada mais forte e pujante do que seus instintos protetivos, seu amor, seu cuidado, seu afeto, seu carinho, para fazê-los viver à flor da pele. Afinal, esse é um traço da sua identidade desde os primórdios da civilização.

Quando somos severamente impactados, tudo transborda a nossa essência e nos lançamos, sem redes de proteção, como uma imensa fortaleza daqueles que nos são mais caros. O nosso ser, a nossa vontade, o nosso eu, ... tudo fica em segundo plano. Não importa o que vamos perder, ou se vamos sofrer, ou se vamos nos arrepender.

O que importa é que aquela pessoa querida sabe compreender a dimensão daquele gesto. Que ela está sendo guardada no fundo do coração, aconchegada, acalentada. Ela não está só, nem vulnerável, nem desprotegida em relação as brutalidades, as grosserias, a insensatez, a crueldade, materializadas por palavras e/ou gestos que se mantêm inconvenientemente sendo dispersas pelo mundo. A sua voz encontrou eco. A sua vida tem significado para alguém. 

Para qualquer pessoa, em qualquer língua, em qualquer lugar...


Para qualquer pessoa, em qualquer língua, em qualquer lugar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dizem que festa sem “barraco” não é festa. Mas, não é pelo incidente infeliz que a 94ª cerimônia de entrega dos Academy Awards (Oscars) merece ser lembrada. Não. Foi por ter dado mais um passo firme rumo a sua transformação, nesse quase um século de existência, fortalecendo a diversidade sob diferentes aspectos.

As mulheres puderam celebrar suas conquistas1. Negros puderam celebrar suas conquistas2. A comunidade LGBTQIA+ pode celebrar suas conquistas3. Latinos puderam celebrar suas conquistas4. Surdos puderam celebrar suas conquistas5. Um novo modo de fazer cinema pode celebrar sua conquista6.  

Depois de dois anos sem cumprir os ritos da grande festa do cinema, por conta da pandemia, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood fez uma celebração digna para a volta aos holofotes e glamoures.

Talvez, o que ninguém poderia supor é que o período sabático imposto pela COVID-19 despertaria um senso de humanidade tão impactante ao mundo do cinema. Aqui e ali estavam presentes o amor, a família, a inclusão, a diversidade, permitindo lançar o pensamento além dos limites existentes.

Mas, na minha opinião, o ponto alto foi trazido pelo filme “CODA – No ritmo do Coração”, uma história humana, familiar, cuja estrutura se estabelece a partir de personagens surdos.

Para quem não sabe, segundo o Relatório Mundial da Audição, em 2021, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), “1,5 bilhão de pessoas têm algum grau de deficiência auditiva (surdez) hoje no mundo” 7. No Brasil, essas pessoas representam 10 milhões de indivíduos 8.

Daí a importância de oferecer representatividade para elas na produção cinematográfica. Não só porque se abre espaço em um mercado de trabalho tão seletivo e discriminatório; mas, porque se rompe de maneira mais contundente com o senso de exclusão e de incapacidade.

Infelizmente, não são raras as vezes em que o comportamento da sociedade em relação aos deficientes tende a gerar invisibilidade e marginalização, impondo-lhes impactos negativos profundos. O que no caso da surdez, por exemplo, repercute na comunicação e desenvolvimento da linguagem, no processo de ensino-aprendizagem, no acesso ao mercado de trabalho, na saúde mental e nas relações interpessoais.

Entretanto, não deveria haver razões para ser assim. Primeiro, porque “existem mais de 300 variantes da língua de sinais no mundo. Elas são responsáveis por boa parte da comunicação de surdos, que totalizam 466 milhões de pessoas” 9.

Segundo, porque a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) tem alertado que “até 2050, 900 milhões de pessoas podem desenvolver surdez” 10 em todo o mundo, o que significa que essa é uma situação estabelecida.

Se a surdez, então, é uma condição presente no mundo e a solução começa pela Língua de Sinais, o que falta para transformar a realidade? Para início de conversa, boa vontade, bom senso e disposição, no sentido de divulgar, promover e tornar cada vez mais acessível as diversas camadas de conhecimento e informação que desmistificam a surdez; bem como, a deficiência auditiva.

Aliás, aproveito para ressaltar que a diferença entre os termos está no fato de que a primeira se refere a uma perda profunda, acentuada, que incapacita o indivíduo de ouvir. A segunda se refere ao indivíduo que sofreu uma perde leve ou moderada. Assim, apesar de predominar entre os surdos o aprendizado das Línguas de Sinais, isso não significa que qualquer pessoa, surda ou não, não possa aprender também.

Feito esse esclarecimento, retomando a reflexão sobre a importância da comunicação e da informação, vejamos que no Brasil, a lei n. º 10436/2002 reconhece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como instrumento legal de comunicação e expressão dos surdos; mas, ela não se encontra presente no ensino da grande maioria das escolas brasileiras.

Ainda que o Decreto Federal n. º 5626/2005 tenha estabelecido o direito dos alunos deficientes auditivos a uma educação bilíngue nas classes regulares, ou seja, obter a LIBRAS como primeira língua e a Língua Portuguesa, na modalidade escrita, como segunda língua.

Mas, esse é só um viés da questão. As deficiências passam despercebidas em grande parte da sociedade, por conta de um sentimento de puro desinteresse ou falta de conexão e vivência com seus portadores.

E isso é facilmente perceptível, por exemplo, quando se questiona as pessoas se elas já ouviram falar sobre o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), no Rio de Janeiro? Ou sobre o aplicativo do jornal Primeira Mão 11? Ou sobre o VLibras 12? Ou sobre a existência de Línguas de Sinas Indígenas, tais como a Ka’apor Brasileira ou a Língua de Sinais do Povo Terena? O resultado traduz a realidade de que essas questões fazem parte de uma realidade paralela e alheia à grande maioria.

Lamentavelmente, a contemporaneidade tem nos aproximado cada vez mais de uma visão idealizada da perfeição humana. Corpos perfeitos. Beleza perfeita. Imagem perfeita. ... Ninguém quer ver ou lidar com aspectos da condição humana que possam apontar um desalinhamento aos padrões “determinados”.

De modo que tudo aquilo que foge à regra é sumariamente banido, ou desconsiderado, ou invisibilizado, como se tivesse rompido com esse pseudopacto de padronização. A ideia não é de que o mundo se ajuste e se adapte as demandas do indivíduo; mas, que ele se ajuste e se adapte as demandas do mundo.

Então, ao se promover iniciativas como a do filme “CODA – No ritmo do Coração”, a humanidade começa a desconstruir, a ressignificar esses paradigmas. Paulo Freire já dizia que “a inclusão acontece quando se aprende com as diferenças e não com as igualdades”; afinal, “não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes”.

Nada pode ser obstáculo, empecilho, barreira, quando a vontade humana sobressai, exceto a ausência, a insuficiência, a limitação de oportunidades. Não, não é a deficiência que impede as pessoas disso ou daquilo; são as próprias pessoas. No seu medo de errar ou fracassar, na sua ausência de ousadia, na sua reticência diante dos julgamentos do mundo.

O importante é entender e aceitar o fato de que é fundamental “deixar as pessoas serem como são. Vivendo em suas diferenças e a partir de seus próprios pressupostos culturais” (José Saramago. “As palavras de Saramago”, 2010), porque “[...] o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho ímpar” (Carlos Drummond de Andrade. “Igual-Desigual”, em A Paixão Medida, 1980).

Desse modo, que esse seja apenas um entre muitos degraus a serem conquistados no sentido de que, cada vez mais, os Oscars e quaisquer outros prêmios e reverências cheguem para quaisquer pessoas, em quaisquer línguas, em quaisquer lugares.  



1 Jane Campion – Melhor Direção. (O ataque dos cães). Ela é a terceira mulher a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante. (Amor, sublime amor). Ela é a primeira afro-latina, e declaradamente queer, a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

The Queen of Basketball – Melhor Documentário de Curta-metragem. (A Rainha do Basquete). Ele conta a história de Lucy Harris, a primeira mulher a pontuar no Basquete Olímpico e a primeira e única mulher oficialmente convocada para a NBA.

2 Will Smith – Melhor Ator. (Richard King: Criando Campeãs). Ele é o sétimo homem negro a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciencias Cinematográficas de Hollywood. Além disso, o filme “King Richard: Criando campeãs” conta a história de Vênus e Serena Williams, cujo trabalho incansável de seu pai as transformou em um fenômeno do tênis mundial.

Summer of Soul - Melhor Documentário de Longa-metragem. Ele conta a história do Harlem Cultural festival, em 1969, o qual celebrou a música e a cultura afro-americana, promovendo o orgulho e a unidade do povo negro.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

The Queen of Basketball – Melhor Documentário de Curta-metragem.

3 Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

Jessica Chastain – Melhor Atriz. (Os olhos de Tammy Faye). Em seu discurso ela fez um alerta sobre os riscos de suicídio na contemporaneidade; especialmente, entre pessoas LGBTQIA+, um grupo com grande número de casos.

4 Encanto – Melhor filme de animação. Ele conta a história de uma família colombiana, os Madrigal, que vive escondida nas montanhas do seu país em uma casa mágica.

Ariana de Bose – Melhor Atriz Coadjuvante.

5 Troy Kotsur – Melhor Ator Coadjuvante. (CODA – No ritmo do coração). Ela é o primeiro homem surdo a ganhar a estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

CODA – No ritmo do Coração. Melhor Filme. 

CODA – No ritmo do Coração. Melhor Roteiro Adaptado. 

6 CODA – No ritmo do Coração. Melhor Filme. Foi a primeira vez que um filme pertencente a uma plataforma de streaming venceu o Oscar na sua principal categoria.

9 Idem 7.

10 Idem 7.

domingo, 27 de março de 2022

Um saco sem fundo


Um saco sem fundo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Me incomoda a ideia propagada por muitos de que a próxima eleição é a solução para o Brasil, porque ela não é completa. A mudança das peças no tabuleiro por si só é pouco relevante se não vier acompanhada de um entendimento sobre tudo aquilo que sustenta o emaranhado de problemas, que fazem do país uma terra de constante insuficiência.

Então, só para despertar o gatilho dessa reflexão, que tal parar e pensar sobre a carga tributária brasileira? Ocupando a 14ª posição nesse ranking mundial é preciso entender que não se trata apenas de uma questão de equívocos, distorções e absurdos a compor a cobrança de impostos no país, o verdadeiro problema. Nem tampouco, que uma reforma nesse contexto seria mesmo a solução efetiva.

Se a situação crítica chegou ao ponto que chegou foi porque os impostos por aqui, há mais de 500 anos, tendem a funcionar como uma boia de segurança para a manutenção dos desvarios e futilidades de quem se encontra lotado nas esferas do poder.

Não é à toa que a rede de impostos e tributos foi se desenvolvendo a cada situação em que a arrecadação se mostrou aquém das expectativas, ou seja, na medida em que essas pessoas se sentiam ameaçadas nos seus interesses era hora de o governo se dispor a criar novos impostos para resolver a situação.

Assim, no ano de 2021, por exemplo, foram quase cinco meses (149 dias)1 para que o cidadão brasileiro cumprisse com o pagamento de seus tributos. Algo que ele (a) não tem como escapar de fazer, considerando o sistema de cobrança que o envolve nas mínimas atividades do seu cotidiano.

Então, basta abastecer o veículo, ou fazer uma compra no supermercado, ou pagar uma conta na farmácia, ou produzir e/ou comercializar um produto, que os impostos estão lá embutidos na transação financeira.

O problema é que, como já manifestei diversas vezes, 94% da população brasileira mostrou em 2021 que vem perdendo significativamente a sua renda 2. Isso significa que o esforço para arcar com os custos da carga tributária vem se agravando e deixando um rastro de carências e insuficiências, que tendem a se cronificar pela inexistência de medidas de contenção e/ou solução, por parte do governo.

Assim, entra ano e sai ano, sem que a população brasileira vislumbre qualquer sinal de transformação e/ou de melhoria na sua qualidade de vida, a ser refletida através do retorno que se espera a partir da arrecadação dos tributos.

Muito pelo contrário, ela é levada à exaustão para dar conta das suas obrigações cidadãs; mas, cai na armadilha de ser obrigada a pagar, quantas vezes forem necessárias, para fazer por si mesma em termos dos seus direitos fundamentais.

Esse é o ponto. Ser a 14ª maior carga tributária do mundo não significa nada de positivo para o Brasil, porque ela visivelmente se perde pelos labirintos dos crimes cometidos contra a administração pública, de modo que jamais chega a cumprir o seu papel de garantidora e mantenedora das demandas do cidadão.

Os discursos e as narrativas tentam sempre dar conta de uma insuficiência de recursos cronificada, para tentar justificar a inação, a incompetência, a negligência, o descaso que se avoluma pelos corredores do poder. Ué, mas ela não é a 14ª maior carga tributária do mundo???

Mas, para total tristeza da população, eis que esse vultoso montante de recursos, com uma frequência incomodamente recorrente, surge nas páginas dos veículos de informação e comunicação no flagrante de carros, de malas, de cuecas, de “búnqueres”, de aviões, ... recheados de dinheiro público.

Ora, o que é o dinheiro público senão dinheiro de impostos e tributos? Então, é como se a tal insuficiência de recursos alegada pelo governo risse bem alto na cara de cada cidadão.

Sim, daquela gente que se desespera pela falta de emprego, pela miséria, pela fome, pela inflação, pela sanha no preço dos combustíveis e tarifas de energia, pela falta de medicamentos e imunobiológicos, pela impossibilidade de um tratamento médico, pela casa perdida nas enchentes, pelo fogo criminoso que consumiu seu roçado, pela existência de rodovias em péssimas condições de tráfego, pelas águas contaminadas dos rios, pela ausência de saneamento básico, pela demora na formulação e execução de políticas habitacionais, ... apesar da consciência e da certeza de ter pago tão caro pela esperança.

É preciso deixar claro que ajustes ou reformas tributárias, ainda que bem-vindos, se não resultarem na aplicação adequada dos recursos arrecadados, jamais haverá a transformação aguardada pela população.

Pode-se fazer muito com pouco; mas, também, pode-se fazer nada com muito. Por isso, não é só uma questão de voto. É uma questão de eleger pessoas que estejam, de fato, dispostas a cumprir as suas obrigações constitucionais.

Essa ideia de sempre inverter o discurso e dizer que os problemas continuam porque a carga tributária é elevada, não cola mais. Porque, se é assim, então, haveria recursos suficientes para restituir a população na resolução das suas demandas. Tendo em vista de que o Brasil tem a 14ª maior carga tributária do mundo. A verdade é que estamos simplesmente diante do mau uso, do mau emprego de recursos públicos.

Assim, além de todos os subterfúgios fraudulentos, dos projetos sem pés nem cabeça, dos aditivos multimilionários, também, é pública e notória a existência de muitos veios para custear todos os crimes cometidos contra a administração pública. É por esse esgoto que vemos o país se esvair e afundar.

É preciso, então, descobrir quem vai dar a devida atenção a esse “saco sem fundo”, chamado Brasil.  Daí a necessidade de pessoas dispostas, interessadas, com vontade de arregaçar as mangas e trabalhar; pois, certamente, irão esbarrar e atrapalhar os interesses de muitos outros, por aí, que se acostumaram a essas práxis e não pretendem abrir mão, tão facilmente, da “boa vida”.  

sábado, 26 de março de 2022

Um pouquinho de Cultura. Um pouquinho de Brasil.


Um pouquinho de Cultura. Um pouquinho de Brasil.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Preferência é uma questão pessoal. Mas, para que ela exista é fundamental a diversidade, e nesse sentido, o Brasil é farto. Sobretudo, quando se trata da Cultura. São inúmeros os nossos artistas e suas manifestações. Oriundos das ruas ou das Academias, não importa. A expressão do talento, da competência e, porque não dizer, da genialidade desses artistas, é indiscutível e consagrável a todos os aplausos e reverências.

É por isso que se torna irrelevante tomar por base de opinião o comentário de uns e outros. O que anda faltando no Brasil é retirar dos olhos as travas e se permitir enxergar a Cultura na real dimensão que ela se permitiu alcançar por aqui. Afinal de contas, para quem ainda não se deu conta, “A Cultura é entendida como um modelo rico em símbolos que molda a consciência e o comportamento humano” (RAJABI; KETABI, 2012, p.705) 1.

Portanto, viva a nossa arquitetura, as nossas artes plásticas, a nossa literatura, as nossas artes cênicas, a nossa dança, a nossa música, não importando se individualmente ou através de suas variadas combinações! Muito além de traduzir as subjetividades que edificam a nossa identidade multicultural e miscigenada, elas também são um pedaço desse alicerce que sustenta o desenvolvimento e o progresso do país, dentro e fora de suas próprias fronteiras.

Ao olharmos para a nossa identidade cultural, com a devida atenção e respeito, conseguimos perceber o quanto ela é “um processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que resultam da interação social entre os indivíduos” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.27) 2. A cultura do Brasil não se resume a isso ou aquilo, ela está sempre aberta à sua capacidade e potencialidade de transformação, de renovação e de novas descobertas.

É certo que demorou para isso ser assimilado e compreendido. A cultura brasileira enfrentou muitos desafios para se consolidar, para romper a bolha das influências estrangeiras que se formou a partir do seu processo colonial. Durante muito tempo, éramos sim, uma cópia representativa das expressões culturais dos outros. Mas, como nada por aqui é definitivo é estático, a força dos movimentos internos provou que era preciso acompanhar o fluxo do tempo, da história, dos acontecimentos, da própria diversidade populacional.  

Índios, negros e brancos, cada qual ao seu modo, sempre impregnaram o país com suas contribuições culturais. O que houve, durante séculos, foi a existência de uma resistência a verdade dos fatos, pelo ranço colonial manifesto através da força da visão eurocêntrica que se disseminou pelo mundo. A cultura das antigas colônias padecia com a pecha de algo inferior, desimportante, fora dos padrões estabelecidos pelas metrópoles europeias.

Até que os realinhamentos, trazendo novas conjunturas e realidades geopolíticas capazes de interferir na dinâmica das relações sociais, estimularam as correntes culturais vanguardistas.  Trata-se do momento em que cada expressão cultural passou a buscar o seu lugar de fala no mundo, possibilitando dessa forma a sua visibilização dentro do coletivo social e, portanto, o surgimento da preferência, da escolha, da decisão dos indivíduos.

A cultura adquiria, então, uma verdadeira apropriação por parte das pessoas, segundo o grau de significância que estabeleciam com aquelas expressões.  Ela se descobria, então, multi e intercultural. Você pode gostar disso, daquilo e daquilo outro. Você pode juntar, misturar, compor, segundo o seu próprio sistema de crenças, de valores, de atitudes, porque a cultura tem tudo a ver com a liberdade. A liberdade de ser, de estar, de sentir, de criar, de produzir... De modo que a cultura é sempre um terreno totalmente flexível, cujos limites existem para serem confrontados, desalinhados, desconstruídos, ressignificados.

Como escreveu Coll (2002), a interculturalidade “representa uma experiência libertadora para todas e cada uma das culturas que interagem, por meio da qual podemos reconhecer os limites inerentes às nossas culturas e nossos mundos; ao mesmo tempo, porém, ela nos permite perceber o caráter infinito e transcendente de nós mesmos, de nossas identidades e de nossos respectivos mundos” 3. A cultura é, portanto, um universo em expansão.  

Assim, antes de encerrar essa leitura e pôr fim à reflexão que ela propõe, convido o (a) leitor (a) a fechar os olhos, por um instante, e pensar nas seguintes personalidades. Pode ser que não as conheça em certa profundidade; mas, ao menos, já ouviu falar a seu respeito, seja na arquitetura, nas artes plásticas, na literatura, nas artes cênicas, na dança e/ou na música. Deixo aqui, então, um pouquinho de Cultura. Um pouquinho de Brasil. Para você pensar e sonhar.

®   Oscar Niemeyer. Lúcio Costa. Roberto Burle Marx. Ruy Ohtake. Lota de Macedo Soares. Aleijadinho. Rosa Kliass. Felipe Hess. Maurício Arruda. Marcelo Rosenbaum. ... Esses são alguns dos expoentes da nossa arquitetura, urbanismo e paisagismo. Artistas que alteraram a nossa percepção sobre o espaço geográfico brasileiro, seja do micro ao macro.

®   Tarsila do Amaral. Djanira da Motta e Silva. Almeida Junior. Cândido Portinari. Hélio Oiticica. Lygia Clark. Lygia Pape. Emanuel Araújo. José Leonilson. Siron Franco. Arthur Bispo do Rosário. Adriana Varejão. Rosana Paulino. ... Esses são alguns dos expoentes das nossas artes plásticas. Artistas, cujo trabalho têm o potencial devastador de transformar nossa relação com as formas, os materiais, os conteúdos, as energias.   

®   Carlos Drummond de Andrade. Jorge Amado. Zélia Gattai. Caio Fernando Abreu.  Cecília Meireles. Rachel de Queiroz. Marina Colasanti. Clarice Lispector. Rubem Alves. Paulo Coelho. Mário de Andrade. Manuel Bandeira. Vinícius de Moraes. Cora Coralina. Adélia Prado. João Cabral de Melo Neto. Ariano Suassuna. ... Esses são alguns dos expoentes da nossa literatura.

São artistas que nos apresentam, por meio de suas obras, a compreensão de que “A língua envolve todas as ações e pensamentos humanos e possibilita ao indivíduo exercer influências ou ser influenciado pelo outro, desempenhar o seu papel social na sociedade, relacionar-se com os demais, participar na construção de conhecimentos e da cultura, enfim, permitir-lhe se constituir como ser social, político e ideológico” (COELHO; MESQUITA, 2013, p.26).

®   Fernanda Montenegro. Fernando Torres. Gianfrancesco Guarnieri. Paulo Autran. Tony Ramos. Glória Pires. Raul Cortez. Tarcísio Meira. Glória Menezes. Chico Anysio. Taís Araújo. Lázaro Ramos. Cláudia Raia. Jarbas Homem de Mello. Tiago Abravanel. Amanda Acosta. Bibi Ferreira. Marília Pêra. Lucinha Lins. Miguel Falabella. Matheus Nachtergaele. Selton Mello. Bruno Gagliasso. ... Esses são alguns dos expoentes das nossas artes cênicas. Artistas que nos permitiram sonhar e expiar sobre a própria condição humana, através da ficção.

®   Ana Botafogo. Carlinhos de Jesus. Ivaldo Bertazzo. Ady Addor. Mercedes Baptista. Deborah Colker. Ismael Ivo. Cecília Kerche. Lia Rodrigues. Márcia Haydée. Thiago Soares. Iolanda Braga. Klauss Vianna. .... Esses são alguns dos expoentes da nossa dança. Artistas que nos permitiram voar sem asas, através da grandiosidade plástica dos seus corpos.

®   Chico Buarque de Hollanda. Caetano Veloso. Gilberto Gil. Geraldo Vandré. Maria Bethânia. Gal Costa. Elis Regina. Nara Leão. Ivan Lins. Milton Nascimento. Lô Borges. Roberto Carlos. Erasmo Carlos. Maria Rita. Cartola. Pixinguinha. D. Ivone Lara. Beth Carvalho. Zeca Pagodinho.  Demônios da Garoa. Zélia Duncan. Marisa Monte. Carlinhos Brown. Arnaldo Antunes. Maria Gadú. Lenine. Djavan. Rita Lee. Nelson Motta. Lulu Santos. Cazuza. Barão Vermelho. Engenheiros do Hawaii. Legião Urbana. Titãs. Os Paralamas do Sucesso. Anitta 4. Pabllo Vittar 5. ... Esses são alguns dos inúmeros expoentes da nossa música. Artistas que transcenderam a voz brasileira, tantas vezes silenciada e oprimida, para fazê-la ecoar além de quaisquer fronteiras.



1 RAJABI, S.; KETABI, S. Aspects of cultural Elements in Prominent English Textbooks for EFL Setting. Theory and Practice in Language Studies, Finland, v.2, n. 4, p.705-712, April 2012.

2 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade: Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34, jan./jul.2013.   

3 COLL, A. N. Interculturalidade - Propostas para uma diversidade cultural intercultural na era da globalização. São Paulo, Instituto Pólis, 2002. 124p.