segunda-feira, 28 de março de 2022

Um tapa?!


Um tapa?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um tapa é um ato de violência? Sim. Por essa razão deve ser repudiado? Sim. Acontece que essa linearidade de pensamento é insuficiente para dar conta de todo um processo que levou a essa atitude extrema, o tapa. Só mediante um desequilíbrio total, para que alguém saia por aí distribuindo tapas, sopapos e socos, gratuitamente.

99,99% das vezes, o destempero que gera tamanho espanto, tamanha incredulidade, tamanha perplexidade, é somente o fruto amargo de uma tecitura de longa data, de repetidas vezes em que as tentativas em contemporizar, atenuar, desconsiderar, palavras e atitudes, foram empregadas.

Ora, mas vive-se na contemporaneidade e ela, infelizmente, tem sido pródiga em promover desgastes emocionais desnecessários, a fim de mensurar até que ponto resiste a paciência, o sangue frio, a tolerância do outro. Trata-se da velha história de esticar a corda até que ela finalmente arrebente.

E para isso, caro (a) leitor (a), as pessoas têm se valido dos motivos mais estapafúrdios e torpes possíveis para empregar a prática, não importando se vai ferir, vai magoar, vai ofender, vai difamar, vai humilhar, o outro.

O que os praticantes desse confronto contemporâneo almejam é fazer com que seus semelhantes percam as estribeiras, para depois virem cheios de razão afirmar que foi só “uma brincadeira”, “uma piada”, que não se teve quaisquer outras intenções. O problema é que sempre tem, ninguém age assim, dessa forma, sem pretensões agressivas.

Porque, por mais que a linguagem possa ser atravessada por interpretações diversas, ela jamais impede que se extraia dela quaisquer gotas ácidas de fel ofensivo. O ser humano sabe muito bem distinguir uma coisa da outra. O ser humano conhece a ironia. Conhece o desdém. Conhece a afronta. Conhece todos os meandros da violência verbal, mesmo quando fala com a placidez de uma voz macia como um veludo.

Mas, muita gente conta com a ideia de que o ser humano, desde que mundo é mundo, adora viver o fervor das arenas, dos confrontos, dos conflitos, e passa a fomentá-los cada vez mais inadvertida e irresponsavelmente. Fazendo da verborragia uma chama que se mantém alta e perigosa.

Porque não parece encontrar nenhum tipo de resistência interior, nenhum filtro de bom senso, de ética, de respeito, de empatia. É só falar, falar, falar... até que, de repente, encontre uma voz dissonante que lhe confronte.

Mas, quando isso acontece, quase sempre a paz já se esgarçou entre os indivíduos. Aliás, não deveria ser preciso dizer para se ter o cuidado da observação e perceber que a humanidade vive tempos muitos difíceis, de muitas tensões, de muitas angústias, de muitos problemas, de muitas adversidades. Seu eixo de equilíbrio está sendo constantemente posto à prova por inúmeras razões.

De modo que ninguém precisa de mais nenhum peso colocado sobre os ombros para eventualmente sucumbir. Não, não se precisa de palavras, nem de atitudes adicionais, para que uma reação destemperada emerja repentinamente. Inclusive, é em momentos assim, que muitas pessoas se surpreendem com elas mesmas, porque é algo muito estranho ao seu padrão habitual.

Por isso é fundamental compreender que determinadas circunstâncias deflagram um conjunto de emoções e de sentimentos que vieram sendo meticulosamente acumulados, durante um certo tempo, e que não foram suficientemente digeridas e resignificadas. Ficaram lá, paradas, indigestas, aguardando por um momento em que pudessem ser extravasadas. O que nem sempre vai acontecer da maneira mais adequada, no momento mais oportuno, minimizando os estragos e as consequências.

O que fica de situações assim, é bastante óbvio. O ser humano é uma incógnita. Ninguém consegue medir exatamente as reações dos outros, em nenhuma situação. Nem ele próprio. Porque ninguém é 100% consciência o tempo todo.

Parte de nós é regida e dominada pelo inconsciente, e esse é capaz de nos trair, de nos afetar as decisões, de modificar nossas percepções e juízos, de exacerbar nossas emoções e sentimentos, enfim... Algo que explica a total impossibilidade de creditar nas atitudes e comportamentos um caráter totalmente inofensivo.

Portanto, nada é ao acaso. Como dizia Sigmund Freud, “Somos as palavras que trocamos...”. O lado bom e o lado ruim das vidas humanas são construídos tijolo por tijolo, passo a passo. Por isso, o ponto de análise não pode se dar a partir daquele que caiu inesperadamente. É preciso observar em que ponto da jornada as falhas começaram a interferir na sua estabilidade.

Tudo isso é sinal de humanidade. Seres humanos erram. Seres humanos falham. Seres humanos são incompletos. E nada mais forte e pujante do que seus instintos protetivos, seu amor, seu cuidado, seu afeto, seu carinho, para fazê-los viver à flor da pele. Afinal, esse é um traço da sua identidade desde os primórdios da civilização.

Quando somos severamente impactados, tudo transborda a nossa essência e nos lançamos, sem redes de proteção, como uma imensa fortaleza daqueles que nos são mais caros. O nosso ser, a nossa vontade, o nosso eu, ... tudo fica em segundo plano. Não importa o que vamos perder, ou se vamos sofrer, ou se vamos nos arrepender.

O que importa é que aquela pessoa querida sabe compreender a dimensão daquele gesto. Que ela está sendo guardada no fundo do coração, aconchegada, acalentada. Ela não está só, nem vulnerável, nem desprotegida em relação as brutalidades, as grosserias, a insensatez, a crueldade, materializadas por palavras e/ou gestos que se mantêm inconvenientemente sendo dispersas pelo mundo. A sua voz encontrou eco. A sua vida tem significado para alguém. 

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