segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Boas novas para a 7ª Arte


Boas novas para a 7ª Arte

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A notícia que São Paulo pode ter um dos maiores circuitos de salas públicas de cinema do mundo, é extraordinária. Ora, em tempos em que a Cultura anda tão abandonada, negligenciada, aviltada, esse projeto acende uma luz importantíssima no fim do túnel.

Sobretudo, porque a ausência de salas de cinema fora de shoppings e galerias tornou-se uma realidade impeditiva ao acesso da grande maioria dos cidadãos. Usufruir de um programa cultural como esse é caro, impacta muito severamente no orçamento das pessoas; de modo que, lentamente, elas vão sendo privadas da expressão artística que flui do cinema. Daí a relevância da proposta das Secretarias Municipais de Educação e de Cultura de São Paulo conjuntamente com a Spcine, de criar “10 novas salas de cinema do circuito Spcine na periferia da cidade” 1.

Dessa forma, “aos 77 lugares do pequeno Bijou, irão se somar os cerca de 3000 das dez novas salas que, em conjunto com as 20 em funcionamento desde 2016, alcançarão cerca de 10 mil cadeiras em cinemas públicos e gratuitos, em regiões onde inexistiam salas” 2.

Portanto, abrem-se as cortinas da 7ª Arte tanto para um público majoritariamente em idade escolar; mas, também, para as produções cinematográficas nacionais, as quais nem sempre encontram espaço nas salas convencionais dos grandes conglomerados.

Esse projeto é, sem sombra de dúvidas, a pavimentação para um caminho não só cultural; mas, particularmente, cidadão. Na medida em que ele cria pontes de linguagem, de comunicação e de construção de conhecimento com o público espectador, cujo alicerce lúdico e afetivo contribui para que essas aquisições não se percam com o tempo.

Bem, eu sempre fui uma apaixonada pelo cinema. Meu primeiro filme foi aos 4 anos de idade, aproximadamente. Fui assistir “Marcelino Pão e Vinho”, uma obra lançada em 1955; mas, reexibida no final da década de 1970. Gostei tanto daquela experiência que nunca mais me distanciei dela.

Confesso que, algumas vezes saí um pouco desapontada da sessão; mas, isso foi bem raro. A probabilidade de se extrair boas informações e reflexões, a partir dos roteiros desenvolvidos, é muito grande. O cinema, apesar desse recorte temporal tão limitado, em torno de 2 horas de exibição, tem essa capacidade sintética lapidada o suficiente para não perder a qualidade e, nem tampouco, a essência das histórias.

É como um mergulho de olhos abertos. Você se lança de corpo e alma ao magnetismo produzido por aquela imensa tela e viaja sem saber qual será o destino final. O certo é que você nunca sai o mesmo de uma sessão de cinema.

E foi graças as essas minhas experiências culturais, que reconheci nele uma das ferramentas mais interessantes e criativas para o exercício docente, independentemente da faixa etária dos meus alunos.

Com um bom planejamento e objetivos bem definidos, os filmes podem abrir vieses e oportunidades discursivas inimagináveis, tornando-se aliados importantes ao processo de ensino-aprendizagem, na medida em que podem se desdobrar, também, em outras manifestações artísticas – literatura, teatro, desenho, pintura, dança etc.

Haja vista a inúmera quantidade de roteiros cinematográficos baseados em best sellers, como por exemplo, a saga de Harry Potter (J. K. Rowling), Cidade de Deus (Paulo Lins), A Elite da Tropa (Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Pimentel), A culpa é das estrelas (John Green), Como eu era antes de você (Jojo Moyes), Dona Flor e seus dois maridos (Jorge Amado), Os miseráveis (Victor Hugo), O menino do pijama listrado (John Boyne). A lista é longa!

Essa junção entre livros e roteiros pode propiciar atividades fantásticas e altamente produtivas, surpreendendo os alunos de maneira única, inclusive, pela construção de perspectivas argumentativas diferenciadas. O cinema como ferramenta de ensino traz novas possibilidades à leitura de mundo e adere perfeitamente as proposições da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Considerando que os filmes têm naturalmente um infinito potencial inter e transdisciplinar, o professor consegue trabalhar conteúdos diferentes em um mesmo momento, de modo a criar uma melhor suficiência e eficiência do tempo de aula.

O aspecto lúdico e afetivo envolvido nesse processo catalisa a atenção e o foco dos alunos, facilitando a conquista dos resultados dessa aprendizagem. Ainda que seja preciso considerar que, eventualmente, possa não existir consenso do grupo sobre a escolha do filme, quando bem apresentado e discutido o plano de aula com os alunos, eles acabam se rendendo à decisão e respondendo bem às propostas.

Aliás, esse é um outro aspecto positivo do cinema, a formulação dialógica. Uma aula nesses moldes se torna não impositiva, não forçosamente diretiva. O debate, a discussão, a argumentação, o compartilhamento de pontos de vista, é a base do processo construtivo intelectual.

Sem contar que, dependendo do perfil do grupo, nem sempre a aquisição da obra literária é acessível a todos, então, a sessão de cinema sai do individual da leitura para o coletivo, ou seja, um número maior de pessoas passa a ter acesso à aquela história, aquela obra.  Trata-se de um caminho para popularizar, de certa forma, a aquisição de um determinado elemento cultural.

Por isso, é tão fundamental iniciativas como essa. Afinal de contas, “nossa deformação cultural nos faz pensar que cabe a um segmento da sociedade levar cultura a outro”, quando, na verdade, “nós temos é que buscar a cultura no povo, dando condições para que ela brote” (Fernanda Montenegro – atriz brasileira e membro da Academia Brasileira de Letras).

E o cinema pode sim, exercer essa função de despertar, de acordar, de expandir a identidade cultural brasileira. Sendo assim, espero que São Paulo possa aspergir as boas energias desse projeto, de modo que outras sementes possam germinar iniciativas semelhantes em todo o país.

Que surjam parceiros, patrocinadores, investidores, para serem fiéis depositários dessa esperança cultural tão necessária ao povo brasileiro. Segundo o dramaturgo brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, “Só a cultura propicia a possibilidade de sonhar, de imaginar, de criticar, de saber de si mesmo, de saber do seu corpo, de saber da natureza. A cultura, e não a macroeconomia, é a infraestrutura da vida, a energia propulsora. A macroeconomia está fazendo mal à humanidade. Quando o indivíduo, por meio da cultura, desperta para a autopercepção de que é livre, na hora ele sai da miséria”3, ou pelo menos, começa a se questionar para sair.   

domingo, 30 de janeiro de 2022

Dois pesos e duas medidas...


Dois pesos e duas medidas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O (a) brasileiro (a) tem por hábito histórico considerar normal a prática de “dois pesos e duas medidas”. Pois bem, o atual Presidente da República foi intimado a depor na Polícia Federal (PF), pelo Supremo Tribunal Federal (STF); mas, não compareceu e, até o momento, ainda não se sabe quais serão as reais consequências desse crime de desobediência.

No entanto, em 2016, quando o ex-presidente Lula foi levado a prestar depoimento à PF, não só ele foi conduzido de maneira coercitiva, como houve um aparato de vários policiais no cumprimento da ação, como se houvesse iminência de fuga ou de resistência.  

Esse é só um exemplo. O importante nessa reflexão é descortinar a que ponto as desigualdades no Brasil são flagrantes e contrariam de maneira absoluta a igualdade entre os indivíduos. Basta subir no tijolinho, por aqui, para se acreditar que é mais e melhor do que os outros. Que determinadas condições, tais como status, poderes, riqueza, gênero, raça, escolaridade, crença, são suficientes para justificar a execução dos “dois pesos e duas medidas”.

Nesse caso, a própria lei se fez desigual. O que faz lembrar as palavras de Rui Barbosa, “[...]O povo sabe que não tem justiça; o povo tem certeza de que não pode contar com os tribunais; o povo vê que todas as leis lhe falham como abrigo no momento em que delas precise, porque os governos seduzem os magistrados, os governos os corrompem, e, quando não podem dominar ou seduzir, os desrespeitam, zombam das suas sentenças, e as mandam declarar inaplicáveis, constituindo-se desta arte no juiz supremo, no tribunal de última instância, na última corte de revisão das decisões da justiça brasileira” 1.  

O que a maioria das pessoas não percebe é que sempre existirá alguém se baseando nesses parâmetros para colocar em franca posição a desigualdade, ou seja, todo mundo vive sob um imenso telhado de vidro. A afronta a igualdade humana é uma eterna dança de cadeiras, onde sempre alguém vai sobrar no desalento, na desassistência, na indiferença, na humilhação. De modo que, mais dia menos dia, chega a vez de experimentar o gosto amargo da desigualdade, com todo o peso de uma justiça tendenciosa que ela vangloria em ostentar.

A questão é que não há fundamento consistente, ou argumentação robusta, capaz de sustentar a existência de “dois pesos e duas medidas” no contexto da convivência e da coexistência humana. Seres humanos são seres humanos. Se foram estabelecidas leis, códigos, doutrinas, diretrizes e protocolos para criar um ambiente equitativo, isso ocorreu justamente para combater e distensionar as divergências que poderiam emergir, a partir de eventuais desalinhos nos pontos de vista.  Assim, sob o abrigo desses mantos comuns, não há motivos para enxergá-los ou entendê-los diferentes.

Pena que o ranço colonial histórico brasileiro persiste em reafirmar uma gradação analítica aos fatos, às práticas cotidianas. Tudo o que acontece é enviesado, manipulado, ajustado, reelaborado, para caber nesse ou naquele interesse. Como se os dias ganhassem uma mão de verniz para esconder as imperfeições e fazer parecer tudo bem, tudo em plena harmonia e equilíbrio, quando na verdade está longe de ser.

Não é à toa que, em pleno século XXI, ainda há quem pense que no Brasil não há racismo, nem misoginia, nem sexismo, nem aporofobia, nem homofobia, nem quaisquer outros extremismos e radicalismos. Confesso que não acredito nessa pseudoingenuidade. Particularmente, penso que tudo não passa de um jeito sutil de não cruzar as zonas de confortos sociais instituídas, porque é trabalhoso desconstruir, romper com paradigmas tão cristalizados nas relações humanas.

Mas, a verdade é que todas essas manifestações estão aí, presentes em cada esquina, em canto do país, sob o véu de um conservadorismo de fachada. E é esse véu que vem garantindo “dois pesos e duas medidas”. O véu de uma permissividade velada, estabelecida de comum acordo entre certos pares sociais que se unem para impedir que seus poderes sejam ameaçados, ou afrontados, ou questionados.

Por isso ele é tão curto, tão estreito, tão limitado. Afinal de contas, na concepção dessas pessoas têm que ser assim, para poder deixar os outros de fora. Os outros que eles consideram socialmente desimportantes. Na mais completa parcialidade e injustiça.

Acontece que, quanto mais esse movimento se recrudesce, mais ele fomenta uma corrida de fins justificando os meios, ou seja, cria-se uma consciência coletiva em torno da necessidade de fazer qualquer coisa para obter a ascensão social e desse modo tornar os tais “dois pesos e duas medidas” ao seu alcance para favorecê-los também.

De algum modo, isso explica os caminhos de certas práticas sociais historicamente comuns como, por exemplo, a corrupção, o peculato, a concussão, a prevaricação, que se disseminam pelas entranhas das instituições e esferas de poder público ou privado. Trata-se de um jeito torto, equivocado, de tentar equilibrar ou mitigar as desigualdades, porque sabidamente esses movimentos não alcançam a sociedade como um todo.

Então, elas acabam se tornando um instrumento de desigualdade dentro da própria desigualdade; bem como, prejudicando ainda mais os vulneráveis e desassistidos, lançando-os à condição de eternos requerentes das sobras e restos que os demais venham lhes conceder. Na mira das injustiças que lhes sejam lançadas indistintamente.

Por isso, enquanto não houver uma análise e reflexão crítica profunda em relação a isso, não haverá transformação social que realmente satisfaça a insatisfação pública diante da atual conjuntura.

Hoje, o Brasil não tem só “dois pesos e duas medidas”. Depois de mais de 500 anos de história, ele conseguiu o feito de dispor de milhares de pesos para milhares de medidas, segundo os seus interesses e demandas.

Haja vista a quantidade de emendas constitucionais e outras leis, criadas nesses 34 anos da Constituição Federal vigente, que fogem, na maioria das vezes, do interesse coletivo da população, a partir do desvirtuamento dos seus próprios fundamentos.

Como dizia Rui Barbosa, “Saudade da justiça imparcial, exata, precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o que faz a justiça é o ‘ser justo’. Tão simples e tão banal. Tão puro. Saudade da justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. Aquela que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade da justiça capaz” 2.

Porque sem essa justiça, muitos continuarão insistindo em fazer a mesma pergunta, “O que são pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – escritor uruguaio), ou seja, mantendo a desigualdade cada vez mais passível de justificativa e os “dois pesos e duas medidas” cada vez mais aceitáveis.



1 Obras Completas de Rui Barbosa. p.81. Publicado por Ministério da Educação e Saúde, 1942.

2 Obras Completas de Rui Barbosa. Tomo IV. p.60. Publicado por Ministério da Educação e Saúde, 1942. 

sábado, 29 de janeiro de 2022

O céu ... em rosa


O céu ... em rosa

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A beleza em rosa, no amanhecer e pôr do sol carioca, no dia de ontem. Tão extraordinariamente belo, que era como se Édith Piaf entoasse a sua “La vie en rose” 1 pela imensidão. Era delicado. Era hipnotizante. Era sublime. Era a natureza em puro momento de encanto. A princípio, todos rendidos apenas à contemplação. Até que, de repente, a curiosidade inquietou-se e quis saber mais sobre o fenômeno.

Bem que poderia ser; mas, segundo a Ciência, todo aquele céu cor de rosa não era um sinal de que Deus é mulher. Eram vestígios da explosão do vulcão submarino que devastou Tonga, no oceano Pacífico, que haviam chegado até o Rio de Janeiro; bem como, em outras cidades de São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Mato Grosso.

Mas, o céu rosa promovido pelas partículas de sulfato em contato com a frequência luminosa do nascente e do poente, conseguiu dizer muito mais no seu silêncio. Não sejamos tolos ou imprevidentes para pensar que as ondas de propagação dos acontecimentos bons e ruins, na sua objetividade e subjetividade, estão limitadas a certos espaços. Não, isso não é verdade.

Essa pequena esfera solta na imensidão do Universo, chamada Terra, permite que sua estrutura ligeiramente circular movimente os ventos arrastando partículas e particulados diversos, dentro de uma geografia de vastas distâncias. Lição simples e trivial de que “longe é um lugar que não existe”, como escreveu Richard Bach. E considerando que tal geometria não aponta nem início, nem meio e nem fim, isso fica ainda mais evidente.

Dessa vez fomos premiados com o encanto repentino da Natureza. Dessa vez foi um processo genuinamente físico-químico. Sem intervenção ou participação humana. Mas, não se engane, porque a Terra não gira só nessa frequência. Infelizmente, a maior parte das surpresas têm sido frutos de ações antrópicas, as quais ao contrário desse sentimento de graça, de perfeição, carrega a feiura, a tristeza, o desencanto.

Ora, quantos resíduos e efluentes, navegam através das correntes oceânicas, alterando a composição e as características da água? Quantos céus multicoloridos surgem no horizonte de cidades sufocadas pelas chaminés industriais, tornando a vegetação local uma paisagem cinza e melancólica? Quantos mares enegrecidos pelo tingimento irresponsável dos derramamentos de petróleo? ... São milhares os exemplos de uma natureza interrompida pelos impactos destrutivos sobre a sua sublime engenharia.

Não é à toa, então, que diante de um fenômeno genuinamente natural nos sintamos completamente extasiados. Sim, porque é um bálsamo para os olhos, para a alma, para os sentidos, depois de tantas paisagens desoladoras erguidas pelas próprias mãos humanas. Parando por um segundo, isso chega a ser profundamente contraditório. Afinal, o ser humano parece que ainda não perdeu por completo a sua sensibilidade, a sua noção de certo e errado, de bom ou ruim; mas, se permite entregar a tantos arroubos destrutivos como esses citados acima.

O problema é que se ele não recobrar os sentidos, não retornar ao seu eixo de equilíbrio, cada vez mais raras serão as oportunidades de viver a luz do belo, de viver a vida em rosa. Até aqui, ao invés disso, o que o ser humano faz é se valer de “lentes-cor-rosa” para se abster da realidade, da sua própria consciência diante do fato de que as ações humanas vêm afetando não só a Natureza; mas, as suas próprias relações sociais.

Como bem escreveu o teólogo alemão, Albert Schweitzer, “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da Criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante”. Não, não é só a geografia física que está se descolorindo, se fragmentado, se perdendo; mas, a geografia humana também. De modo que a simbiose que deveria existir entre as duas se esgarça e se transforma em pura excepcionalidade a olhos vistos. Essa ideia de “Justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco – escritor italiano).

Assim, a fraternidade pode ser vermelha, a liberdade azul, a igualdade branca 2; mas, a esperança tem um quê de cor-de-rosa. Eu sinceramente espero que essa imagem tenha sido um presságio, um maravilhoso presságio, de uma expectativa positiva. Afinal, se “Deus escreve certo por linhas tortas”, por que não poderia escrever uma mensagem alvissareira dessa maneira?

No entanto, cabe nessa reflexão pensar que se “No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim” (Fernando Sabino – jornalista e escritor brasileiro), talvez, seja porque estamos reticentes na nossa inação, na nossa irresponsabilidade, na nossa negligência com a natureza, com a vida em si. Então, mãos à obra!   



2 Uma alusão à trilogia cinematográfica das cores, de Krzysztof Kieslowski (A Liberdade é azul [1993], A Igualdade é branca [1994], A Fraternidade é vermelha [1994]). 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Por que devemos nos lembrar?


Por que devemos nos lembrar?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em diversos espaços das redes sociais, ontem, 27 de janeiro, estava manifesta uma campanha “#WeRemember” (#NósLembramos), em razão do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. De fato, precisamos lembrar sim, os horrores da 2ª Guerra Mundial. Mas, não basta apenas não esquecer, é preciso refletir e aprofundar o conhecimento até alcançar os meandros mais sutis dos fatos.

Infelizmente, as marcas produzidas pelo holocausto não se resumem aos acontecimentos mais brutais e perversos, tais como os campos de concentração, as câmaras de gás, as experiências médicas, a apropriação indébita de bens e riquezas, a separação de famílias inteiras, a dizimação de pessoas.

Tudo isso ficou devidamente registrado nas páginas materiais e imateriais da história, como um legado de profunda consternação e perplexidade a respeito de tempos tão sombrios. A questão é que a Guerra acabou; mas, essas ideias absurdas não. Esse é ponto. O ódio que permanece se propagando entre os seres humanos. Que depois da 2ª Guerra trouxe outras, e outras, e outras...  

A razão disso está no fato de que apesar da maldade conseguir eleger protagonistas, o que a sustenta é uma legião de fiéis seguidores anônimos, quase invisíveis, que passam até certo ponto despercebidos na população. Gente comum, sem grandes projeções sociais. Alguns com alguma importância econômica; mas, não como elemento constituinte dos pilares de poder.

Acontece que essas pessoas não são massas de manobra, como muitos acreditam. Elas não foram necessariamente induzidas, ou influenciadas, ou coagidas a se integrarem aos ideais desse movimento destrutivo. Não. A sua concordância se deu com base nas afinidades ideológicas e comportamentais. Elas encontraram eco nas narrativas e discursos disseminados. Não é à toa que houve quem se manteve à distância disso e trabalhasse na contramão do holocausto, lutando pelas vidas de quem estava sendo perseguido e massacrado.

Daí a necessidade de se lembrar. A Xenofobia, o Racismo, o Sexismo, a Misoginia, a Homofobia, a Transfobia, a Intolerância Religiosa, a Aporofobia, a Escravização, a Eugenia, a Supremacia branca, sempre esteve presente na história da humanidade. Em pensamentos, palavras e ações, essas manifestações tomam conta do cotidiano, diariamente, em todo o planeta.

O que significa se tratar de uma ameaça real, não necessariamente uma ameaça que aguarda pela deflagração de guerra para se firmar. Considerando a consciência de que esse perfil não se sustenta majoritariamente na sociedade, seus simpatizantes apenas aguardam, sempre à espreita, por condições favoráveis, por legitimações governamentais, por exemplo, para o extravasarem com vistas à sua consolidação como pautas de comportamento.

Um exemplo disso pode ser observado, neste que é o Dia do Combate ao Trabalho Escravo (28/01), no Brasil, quando o Vice-Coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (Conaete), afirmou em entrevista que “houve um aumento da quantidade de pessoas em situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social. Esse tipo de situação as torna mais propensas a serem aliciadas e submetidas a ações de exploração extrema” 1.

Mas, além disso, a matéria acrescentou que o “[Aumento está relacionado com] a falta efetiva de fiscalização e da política de afrouxamento da mesma pelo governo federal, que continua o desmonte do Ministério do Trabalho e Previdência e da retirada de direitos dos trabalhadores”.

Portanto, é preciso entender que as atrocidades promovidas por governos mundo afora se sustentam e se retroalimentam dentro da própria população, por gente que aplaude, que aceita, que concorda integralmente com elas. Começando pela trivialização, pela banalização, dos episódios envolvendo Xenofobia, Racismo, Sexismo, Misoginia, Homofobia/Transfobia, Intolerância Religiosa, Aporofobia, Escravização, Eugenia, Supremacismo.

Utilizando de argumentos que aviltam os direitos civis das vítimas, tornando-as, inclusive, responsáveis por essas violências, esse movimento, liderado pela direita e suas ramificações extremistas, tenta negar as estatísticas que comprovam essa barbárie, na contemporaneidade. O que muitas vezes acaba favorecendo a construção de uma estatística subnotificada, que colabora e muito, para a formação de um tabu que invisibiliza essas discussões.

Bem, invisibiliza; mas, não extingue. Independentemente de dia, hora, e lugar, é possível sentir a força dessa aura extremista rondando. Pelas linguagens verbais e não verbais, ela é expressa e disseminada amiúde, por qualquer classe social. De modo que as ideologias que estiveram presentes no Holocausto, há mais de 80 anos, conseguem se perpetuar, de geração em geração, através de pequenas células simpatizantes, no culto dessas crenças, valores e comportamentos.

Apesar da importância da criminalização desses atos, as leis ainda esbarram na dificuldade de sobreposição à continua reafirmação dessas ideologias. Elas buscam frear os arroubos, os instintos, as intenções; mas, nem sempre, conseguem o mais importante que é a promoção de uma transformação crítica e reflexiva nos indivíduos. Quem assistiu ao filme “A outra história americana” (American History X), de 1998, entende isso de maneira muito clara e objetiva.

Muitas vezes, as conjunturas acabam capturando os protagonistas, as lideranças, as personalidades mais importantes desses movimentos; mas, se esquecem de toda a estrutura popular que os sustenta. Se esquecem de que eles não estavam sozinhos, não agiam sozinhos. Portanto, ainda que percam as vozes mais expressivas, eles não perderam a sua própria voz. A tendência natural é que eles sigam em frente, que assumam novos papéis dentro do contexto, que se tornem figuras de notória importância.

Daí, mais uma vez, a necessidade de se lembrar. De pensar. De refletir. De sair da superficialidade da história e construir uma linha do tempo. Parar de considerar os acontecimentos do cotidiano, como meros frames. Pontuais. Desconectados. Pouco representativos.

Prestar mais atenção naquilo que se ouve. Nem tudo é bobagem. Nem tudo é teatro. Nem tudo é para “causar”. Essa ideia de acreditar que as pessoas falam sem pensar é tolice. Nem sempre é o consciente que diz; mas, certamente é o inconsciente. E ele é o espelho da essência humana. A caixa que guarda todos os segredos, todos os mistérios, todos os anjos e demônios que habitam o ser.

Não se esqueça de que você escolhe a roupa que vai vestir, a comida que vai comer, o caminho pelo qual vai transitar, o programa de TV que vai assistir, o amigo que vai lhe acompanhar, ... ou seja, você age por afinidade, o tempo todo. Aquilo que cabe ou não dentro da sua lógica de crenças, valores, princípios, ideias.

Isso explica, então, porque a maior ameaça para os seres humanos não são as pessoas “diferentes”; mas, as que são iguais ou semelhantes, porque unidas por suas afinidades ideológicas e comportamentais, elas podem levar o mundo ao caos, à penúria, a desestabilização e, até mesmo, a uma 3ª Guerra. Afinal, elas acreditam que são melhores, superiores e mais importantes do que qualquer um que não se enquadre ao seu check list de exigências e padrões. É aí que mora o perigo! Em toda e qualquer tentativa de homogeneização humana.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Dia Internacional da Lembrança do Holocausto





Coincidência? Será mesmo?!


Coincidência? Será mesmo?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não acredito em coincidências e, também, não gasto minhas atenções com teorias da conspiração. Mas, a complexa teia conjuntural me parece suficientemente clara para entender que há uma tentativa explícita de desqualificar por completo a vacinação contra a COVID-19, no país, especialmente em relação às crianças.

Aqui e ali são relatados episódios de vacinas de vento, vacinas erradas, doses incorretas, para que eventuais problemas possam sustentar o argumento de que as vacinas não são uma boa opção na luta contra a COVID-19. Isso sem contar as exigências injustificáveis para imunização das crianças, tais como declarações dos pais (ou responsáveis) e/ou a recomendação médica, mesmo que não haja histórico de quaisquer comorbidades ou doenças pré-existentes.

Aliás, tudo tem girado no sentido de obstaculizar o combate à pandemia no país. Acontece que a sociedade acaba entrando nessa espiral insana, ao invés de agir orientada pelo bom senso. Tudo porque, a velha máxima de seguir as orientações das autoridades, dos cientistas, dos especialistas no assunto, para ter segurança de embasamento, de repente se tornou uma ameaça diante da gigantesca babel que as narrativas apresentadas se transformaram.

Governo, Ciência, órgãos reguladores, leigos, cada um diz uma coisa. Cada um imprime seu próprio viés ao assunto. A questão é que saúde é coisa séria. Bem séria. E precisa do respeito e da adesão ao consenso científico para funcionar de maneira segura e precisa. Coisa que as vacinas e toda a cadeia de produção de imunobiológicos, ao longo de décadas, já conseguiram afirmar e reafirmar.

Mas, não para por aí. Toda a pressa que se vê rondando as discussões sobre a pandemia só tem uma única razão de ser, os interesses econômicos. Ninguém parou e analisou a situação pela perspectiva do acontecimento em si. Todos ficaram batendo seus pezinhos e olhando para os relógios, ansiosos por estabelecer o tempo exato em que a doença desapareceria do mapa. Mas, na biologia da vida, isso não funciona. Não é assim que acontece. O vírus não conhece tempo, nem relógio, nem pressa, nem geografia. Ele é narcísico e legisla em causa própria o tempo todo, defendendo a sua sobrevivência.

Isso significa que acabar com a pandemia não é um truque de mágica. Não existe, pelo menos até o momento, nenhum remédio ou imunobiológico que faça a doença desaparecer em um piscar de olhos. Tudo obedece ao tempo de resposta biológico. Não dá para acelerar, para queimar etapas. A Ciência tem sido o mais ágil possível nesse processo de construção do conhecimento em torno desse novo vírus e de suas variantes; mas, essa agilidade não representa aquilo que espera a ansiedade coletiva.

De modo que, contrariando as expectativas mundiais, todas as relações socioeconômicas já contabilizam os seus prejuízos. E enquanto não se chegar ao tempo da Pós-Pandemia, os movimentos de avanço e retrocesso nessa dinâmica serão uma realidade a ser considerada. Porque, também, não faz qualquer sentido pensar economicamente, desconsiderando a personagem principal desse processo que é o ser humano.

Economia tem muito mais a ver com pessoas do que propriamente com dinheiro, com capital. Sem elas, a estrutura econômica deixa de existir, deixa de funcionar, pois não há produção, não há consumo, não há circulação de bens e serviços, não há demandas a serem satisfeitas, enfim... E o que se tem visto nesses últimos dois anos é justamente a inversão disso. Todos preocupados com a economia, com os prejuízos, não com a população em si.

Porém, apesar de todos os esforços nesse sentido, nada impediu que a economia balançasse vigorosamente na corda bamba. Haja vista a inflação, o desemprego, a perda do poder de compra, a miséria, a fome, a indigência, espalhadas por diversos cantos do mundo, inclusive, por aqui. Enquanto, paralelamente, a doença continuava se espalhando e ameaçando de morte a população; sobretudo, os não vacinados. Estabeleceu-se, então, um cabo de guerra entre a pandemia e os interesses socioeconômicos.

Aqui no Brasil, por exemplo, o governo lutou com unhas e dentes para investir o mínimo no combate ao Sars-Cov-2. A negação, o descaso, a negligência, portanto, foram armas estratégicas para não ter que retirar o dinheiro do bolso e tomar as decisões certas em favor da população. O que significava, por exemplo, fazer campanhas de orientação sobre a doença, adquirir equipamentos, insumos e vacinas em tempo hábil, construir um protocolo de imunização nacional, para dar proteção às pessoas o mais rápido possível.

Convencer a todos, principalmente as camadas mais desfavorecidas, de que tudo estava bem era fundamental para não desviar a sua gestão do roteiro econômico programado, o qual não havia se pautado na manutenção ou expansão de políticas públicas de caráter assistencial. Aliás, nunca se viu um recrudescimento tão acentuado na morosidade dos serviços prestados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Pensões, aposentadorias, perícias e outros serviços tiveram suas filas de espera ampliadas, deixando a população, em plena pandemia, ainda mais, desassistida e vulnerabilizada.    

Por isso, o governo não se comove e, nem tampouco, se demove dessas estratégias, seguindo em frente sem se abalar. Quanto mais marginalizadas, excluídas e desassistidas estiverem as camadas menos privilegiadas da população, mais susceptíveis aos infortúnios elas estarão. Isso significa que, lentamente, esse contingente vai perecendo e demandando cada vez menos atenção e recursos governamentais. O que de certa forma fez da pandemia, uma aliada de peso nessa engrenagem. Talvez, isso explique a inação em, ao menos, tentar contê-la.

Não tendo encontrado resistência jurídica nessa empreitada, capaz de fazê-los parar nas primeiras intenções de marginalização e banimento social, cada crítica, cada falatório, então, só fez retroalimentar as pretensões que tinham mente. Eles não se preocupam com o desconforto, com as notas de repúdio, com os palavrórios da opinião pública, porque se sentem livres para impor os seus pontos de vista, o seu modo bizarro de governar.

Portanto, o ponto de discussão não está em se perguntar, simplesmente, onde erramos; mas, qual a razão de nos termos permitido deixar os erros seguirem adiante. Porque se a pandemia serviu de algum modo aos interesses governamentais, para a população, ela descortinou uma realidade nua e crua do país. Ela aflorou de uma só vez todas as mazelas seculares. Ela colocou o dedo nas feridas mais profundas. Mas, apesar disso, um outro tipo de inação não permitiu agir.

É pensando sobre isso, tentando digerir esses processos sociais caóticos que lamento muito o mundo não ter alcançado ainda uma reflexão como esta: “Quando o dia começa, junto dele continuo a construção e desconstrução de mim mesma... há dias que sinto ter encaixado peças importantes, definitivas e dali tenho a sensação de que tudo que há por vir é só lucro, mas no dia seguinte retiro tudo aquilo. Desisto daquela ordem de montagem e começo do zero... eu gosto muito de um trecho de uma música “prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”... é muito chato ter verdades absolutas, planos definitivos, enfim, nada como um dia após o outro para se ter sempre a chance do recomeço... de um novo eu... de um novo plano de vida... de uma melhor verdade... “ (Caio Fernando Abreu – jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro).

Simplesmente, porque dessa forma é que as pessoas estariam livres e não se deixariam aprisionar por ideias equivocadas, por sociedades inescrupulosas, por artimanhas desumanas. Assim, não se permitiriam abrir mão da sua liberdade, dos seus direitos, da sua dignidade, dos seus sonhos, da sua identidade, da sua vida. Seriam mais fortes. Mais inteiras, no seu processo contínuo de transformação, de evolução.

Afinal, nada do que acontece é coincidência, é por acaso. A desconstrução é um processo construtivo fundamental. Ele não destrói, ele apenas dá a possibilidade de rever, de remodelar, de ressignificar, nossas crenças, valores, princípios e pontos de vista. Toda vez que isso não é permitido, sem se dar conta, o ser humano começa a morrer. Morre em vida. Cada dia um pouquinho. E não importa que seja pelas suas próprias mãos ou de quem lhe possa cruzar os caminhos, importa que ele morre.


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Chegou o BA.2...


Chegou o BA.2...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Vai brincando, vai! Detectada em mais de 40 países, o subtipo BA.2 da variante Ômicron já se mostra mais contagioso que as cepas anteriores do Sars-Cov-2 1. Portanto, enquanto essa inquietação coletiva, movida essencialmente pelos interesses econômicos, em detrimento da própria vida humana, se mantiver perturbando as tentativas de conter a pandemia, mais distantes de um final exitoso estaremos.

Somos aproximadamente 7,8 bilhões de habitantes no planeta e destes, até o momento, cerca de 52,7% foram totalmente vacinados. Como já se sabe, a imunização contra o Sars-Cov-2 e suas variantes, por questões ideológicas, políticas e econômicas, infelizmente, não está transcorrendo de acordo com as necessidades e expectativas.

O que expõe o planeta a uma constante situação de vulnerabilidade, que arrasta a pandemia por caminhos obscuros e perigosos, tendo em vista a possibilidade do surgimento de cepas cada vez mais potencialmente letais e não, somente, com elevada transmissibilidade.

Afinal, a porta para as mutações está aberta, com pessoas circulando excessivamente e descumprindo as medidas profiláticas amplamente difundidas ao longo dessa pandemia.

Acontece que, a cada vez que o cerco da doença acirra, e isso tem sido recorrente nesses dois anos, os serviços de saúde ficam sobrecarregados. O que a maioria da população não percebe, ou não quer entender, é que superadas as discussões sobre serviços públicos e privados, todos os profissionais envolvidos não puderam ainda baixar guarda no seu trabalho, exercendo-o exaustivamente em jornadas bem superiores ao recomendado.

Isso porque, as perdas humanas no setor foram imensas. Não apenas pelos que vieram a óbito pela doença; mas, por aqueles que impactados, física e emocionalmente, pelo processo pandêmico, decidiram abandonar a profissão.

E um profissional da área de saúde, seja ele qual for, não se forma da noite para o dia, especialmente aqueles que vão atuar nas emergências, nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Então, há uma visível escassez dessa mão-de-obra no mercado. Não há uma disponibilidade capaz de preencher as demandas.

Sem contar que os serviços de saúde não lidam apenas com a pandemia da COVID-19 ou com a epidemia de Influenza H3N2. Pessoas se acidentam. Pessoas infartam. Pessoas sofrem acidentes vasculares cerebrais. Pessoas sofrem de apendicite, de úlcera perfurada, de intoxicação alimentar. Gestantes entram em trabalho de parto. Enfim...

A rotina desses locais é, então, muito maior e complexa do que se possa imaginar. Porque o tênue limite entre a vida e a morte é regido pela imprevisibilidade, na maior parte do tempo.

De modo que aquelas cirurgias tidas como eletivas, nessas alturas do campeonato, podem ser consideradas uma excentricidade em meio ao caos instaurado. Tendo em vista as restrições logísticas e de pessoal impostas pelas conjunturas.

Pois é, não adianta tentar fazer a vida caber nos moldes dos nossos desejos e vontades, quando quem está no controle é um vírus. Ele está sempre a muitos passos à nossa frente. O que faz com que muitos caiam, inadvertidamente, na ilusão hipnotizante das fases de menor tensão, como se a normalidade tivesse sido recuperada.

Mas, não há normalidade com cepas virais altamente contagiantes circulando por aí, graças a nossa total disponibilidade em carreá-las para baixo e para cima, enquanto elas se multiplicam em cada uma das trilhões de células que nos compõem.

Se nós estamos cansados, exaustos, fadigados, o vírus não está. Ele não se cansa nunca. Nenhuma das estratégias humanas de tentar negá-lo, negligenciá-lo, esquecê-lo funcionou, porque não funciona mesmo.

Os imunizantes disponíveis trouxeram uma certa tranquilidade, quando aplicados corretamente, de acordo com o protocolo estabelecido pelos laboratórios, no sentido de conter o avanço dos casos gravíssimos e de maior potencial letal. Mas, nenhuma vacina tem a função de evitar ou conter a transmissão. Essa é uma responsabilidade, um dever, de cada indivíduo.

Quanto mais as pessoas esticam a corda, pior a situação fica. Elas não percebem que estão andando em círculos, caminhando sob as linhas demarcadas por erros que já deveriam ter se transformado em lições.

Estamos presos por um imobilismo deliberadamente ignorante, improdutivo, irracional, que nos aprisiona às correntes virais invisíveis. Sim, porque da mesma maneira que nos deparamos com o Sars-Cov-2, temos inúmeras probabilidades de confronto com outros agentes biológicos infectocontagiosos desconhecidos.

Lições são para serem aprendidas e apreendidas. Particularmente, quando elas carregam consigo o peso de milhões de vidas perdidas. Ora, os números são de uma guerra. Comparativamente, já perdemos ao longo desse tempo, mais de uma esquadrilha. Batalhões foram dizimados. Cemitérios foram insuficientes para dar o descanso eterno para milhares de pessoas. O rescaldo, além de incomensurável, é doloroso, cruel, demasiadamente difícil. E pensar que uma parte significativa desse caos poderia ter sido evitada.

Admitindo ou não, a raça humana vai carregar nos ombros essa tragédia. Não adianta desconstruir os fatos, reescrever os acontecimentos, alterar as estatísticas, porque a história resiste às investidas dessas intempéries. Mais dia menos dia, a verdade se ergue triunfante através das linguagens.

Porque as memórias, as lembranças, os registros, são em sua grande maioria um patrimônio privado. Então, em cada sobrevivente haverá um pedaço desse gigantesco quebra-cabeças. Só espero, que antes dele atingir o volume de bilhões de peças, a humanidade tenha recobrado a razão e posto fim a essa pandemia.

Acredito que chegamos a um ponto dessa jornada que não se trata mais de uma disputa entre nós e o vírus; mas, uma disputa entre nós e nossas próprias escolhas. E como escreveu o poeta chileno, Pablo Neruda, “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”. Por isso, “Más influências não são desculpas, cada um faz o que quer” (Corey Taylor – compositor, cantor e produtor cinematográfico norte-americano).

O convite da OCDE


O convite da OCDE

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já dizia o filósofo chinês, Lao-Tsé, “Mantenha os amigos sempre perto de você e os inimigos mais perto ainda”. E pensando a respeito, se começa a decodificar as entrelinhas da notícia da retomada das negociações entre o Brasil e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)1.

Afinal, uma análise fria e direta das conjunturas atuais do país aponta para uma não configuração de cenário promissor e atraente, especialmente no campo econômico e ambiental, capaz de agregá-lo às nações mais desenvolvidas do planeta.  

Antes de tudo, é bom ressaltar que esse novo convite teve dentre seus vieses, “um entendimento alcançado entre os Estados Unidos e sócios europeus da OCDE”; pois, eles “discordavam sobre o ritmo de ampliação da organização”.

Assim, “agora, todos os seis candidatos receberam cartas-convites para iniciar o processo de adesão. A confirmação da entrada depende de um consenso dos 38 países que integram o grupo” 2. No entanto, isso continua me parecendo insuficiente para justificar o fato, em relação ao Brasil.

Tomando como ponto de partida que “o Fundo Monetário Internacional (FMI) reduziu as previsões para Estados Unidos, China e a economia global e disse que a incerteza sobre a pandemia, inflação, interrupções na oferta e aperto monetário nos EUA representam mais riscos” 3, o que dizer, então, sobre o contexto brasileiro, hein?

O próprio Banco Mundial reviu as metas para o país e reduziu de 2,5% para 1,4% a projeção de crescimento da nossa economia em 2022, o que significa a menor taxa entre os 18 países emergentes e em desenvolvimento considerados.

Ora, diante do relatório Perspectivas Econômicas Globais, do Banco Mundial, essa desaceleração brasileira se deve a alguns fatores, tais como “o fraco sentimento dos investidores, à erosão do poder de compra em decorrência da alta inflação, às restrições da política macroeconômica, à redução da demanda pela China, e à queda nos preços do minério de ferro – antes de alcançar 2,7% em 2023” 4.

Bem como, também, pelas projeções de que “a pandemia deve continuar afetando a atividade econômica global no médio prazo” e “o fim dos estímulos monetários em economias desenvolvidas, que devem frear o avanço de países como Estados Unidos e China, além dos europeus” 5.  

Então, o que justificaria um convite dessa envergadura, ao Brasil, nessas alturas do campeonato? O mais plausível parece ser a tentativa de conter os arroubos autodestrutivos do país que podem sim, afetar diretamente o panorama global.

Trata-se de um trâmite burocrático relativamente curto, de 2 a 5 anos; mas, enquanto ele transcorre, o país precisa se ajustar ao processo de negociação que envolve se comprometer a aderir a uma série de boas práticas.

Isso significa dizer, questões como democracia, meio ambiente e sustentabilidade, direitos humanos, combate à corrupção e à pobreza, ajustes fiscais e tributários, ou seja, todos os pontos nevrálgicos para o país.

Porque, de certa forma, essas exigências escancaram ainda mais o descolamento brasileiro da realidade global, na medida da sua persistente insistência em governar pela perspectiva do próprio umbigo, na contramão do mundo.

Portanto, na busca por um alinhamento de ideias e ações com as nações mais desenvolvidas, a iniciativa da OCDE não é impor quaisquer interferências à soberania brasileira; mas, colocar ao Brasil o seu próprio poder de definir o grau de disposição para “cooperar entre os povos para o progresso da humanidade” 6.

Através da formalização do convite, o país sinaliza o aceite em se comprometer efetivamente com uma agenda de parâmetros estabelecidos pela entidade. Ou ele aceita as regras do jogo ou não pode se unir ao grupo.   

Bem, tudo isso me parece um ótimo motivo para celebrar. Não pelo convite; mas, pelo “freio de arrumação” que ele representa para o país. Alguém está tentando puxar o barco que está à deriva. E isso é muito bom.

Até aqui foram três anos ensimesmados, narcisicamente olhando para si mesmo, negligenciando o fato de estarmos ligados a uma realidade muito maior, muito mais complexa. Querendo se apropriar de uma autonomia e autossuficiência para as quais nunca tivemos cacife de fato.

Quanta vergonha destilada, sem nenhum constrangimento, sem nenhuma reflexão, meu Deus! De modo que, diante dessas circunstâncias, antes que as conjunturas desencadeiem consequências e desdobramentos ainda mais funestos e irreparáveis, o mundo decidiu agir.

Como dizem por aí, “Ninguém vai bater palma para maluco dançar”.  É a lei da sobrevivência, caro (a) leitor (a)! O tempo está cada vez mais veloz. O dinheiro cada vez mais curto, para se perder ou desperdiçar. A realidade cada vez mais arisca e cruel. Então...

Talvez, agora, o Brasil entenda que não se consegue o “selo de qualidade da OCDE” sem fazer o “dever de casa”.  Discurso e ação não são excludentes. Para reconquistar a credibilidade, a confiança internacional, terá que “suar a camisa”, que provar por “a mais b” as suas intenções.  

Mas, também, terá que torcer. Terá que sonhar. Terá que se transformar da água para o vinho. Porque além de todas as fases burocráticas em curso, ainda, será preciso aguardar pelas análises de diversos comitês da referida organização. Dessa vez, são eles que têm a caneta nas mãos.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Muito além do obituário em si


Muito além do obituário em si

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pois é, damos muito pouca atenção ao que a vida nos ensina; sobretudo, quando o assunto é a morte. Uma grande maioria pensa que ela é simplesmente o fim. Morreu, acabou. Só que antes dessa derradeira partida, eis que a sua grandeza nos nivela em pé de igualdade. Bons morrem. Maus morrem. Gênios morrem. Ignorantes morrem. Enfim... É como diz a canção, “[...]Saiba / Todo mundo vai morrer / Presidente, general ou rei / Anglo-saxão ou muçulmano / Todo e qualquer ser humano [...]” 1.

Basta ser de carne e osso para perecer, para cumprir o ciclo da existência. Virtudes, defeitos, aparências, contas bancárias, poderes, status, ideologias, ... nada disso entra na conta na hora de atender ao chamado de adeus. A morte é a única certeza que temos; já que a vida foi apenas um golpe de sorte da biologia, uma travessura de algum espermatozoide em um momento de puro encanto por um óvulo.

Daí a importância de se dar o devido valor a cada instante da vida que se tem nas mãos. Pena, que muita gente se equivoca e transita pelos minutos do relógio na contramão da história, da lógica, do bom senso, da realidade, dos fatos, só para ter o gostinho de ser diferente, de ser ousado na irreflexão, de sentir correr pelo corpo o magnetismo da transgressão. Quase uma disposição surreal para não se importar com os custos que advenham desse movimento.

Particularmente, vejo nisso um traço de profunda frustração. Têm pessoas que teimam em acreditar em uma existência idealizada, como se isso fosse possível. Então, quaisquer mínimos desalinhos que surjam pelo caminho, tornam-se estopins para confrontar e guerrear com as conjunturas, a fim de subjugá-las aos seus ditames, aos seus interesses, aos seus sonhos. Uma luta inglória? Certamente.

Nosso poder de influência, de interferência, de organização e de transformação na vida, só existe até a página dois. Todo o resto é surpresa. É conjuntura. É a presença de milhares de outras personagens. São os desdobramentos do ontem e do agora, acontecendo simultaneamente ou não.  E nós, quem somos nós nesse gigantesco tabuleiro? Uma peça, que entra e sai na dinâmica de cada jogada das circunstâncias.

A grande questão é que, quando estamos em ação, somos tomados, invadidos por uma aura de importância, de destaque, de superioridade, que não se deixa perceber o tamanho da sua efemeridade. É; temos o péssimo hábito de acreditar que SOMOS ao invés de ESTAMOS. Por mais devotados que sejamos a nossa construção humana, objetiva e subjetiva, esse processo não nos garante a solidez da imortalidade, da eternidade. Os egípcios e suas pirâmides mortuárias provaram essa questão muito bem.

Dentro desse contexto, pessoas vêm e vão todos os dias. Deixando para trás um legado, um amontoado de coisas materiais; mas, também, imateriais. Questões resolvidas e não resolvidas. Dívidas. Pagamentos a receber. Pedidos de desculpas. Retratações. Projetos a cumprir. Viagens a fazer. Sonhos a reformular. Coisas a dizer. Enfim...

E em meio a tudo isso, pessoas que estiveram, direta ou indiretamente, presentes em seu caminho. Que podem ou não sentir tristeza pela sua partida. Que podem ou não reverenciar sua memória. Que podem ou não dar prosseguimento ao seu legado. Mas, que no fundo, justificam de alguma forma que a existência nunca é de fato solitária, como tantos querem crer.

Ainda que ninguém apareça no funeral, que ninguém se manifeste publicamente a respeito, nenhuma viva alma passa por esse mundo isenta da coexistência e convivência humana. Então, esse tipo de decisão é só uma escolha, que traz em si a certeza de ter dispensado alguma atenção, por mínima que seja, àquele (a) que acaba de partir.  

Algo que a grande maioria nunca saberá em detalhes como se deu. Aliás, nem mesmo, quem ou quantas são essas pessoas. O que nos coloca milhares de indagações sobre o que acontecerá, portanto, com o tal legado. Olhando para contemporaneidade, com todas as suas esquisitices e bizarrices, não dá para descartar a possibilidade de uma briga por esse espólio.

Afinal, não importa se o que restou é muito ou pouco. O que importa é o que podem fazer dele. E sem nos darmos conta, essas atitudes é que nos levam a entender as razões pelas quais algumas pessoas parecem resistir ao ponto final da morte. O culto que parece se fiar ao redor das reminiscências as mantêm se propagando pelo tempo.

Seja em termos bons ou ruins, considerando que a existência humana não existe amparada pela unanimidade. Os dois lados da moeda podem, assim, ser reverenciados indistintamente. De modo que até as piores críticas podem trazer a benesse de manter preservada a lembrança de quem já se foi.

Não é à toa que o poeta Mário Quintana escreveu, “[Inscrição para um portão de cemitério] A morte não melhora ninguém...”. A morte não nos isenta, não nos absolve dos nossos erros, dos nossos equívocos, das nossas maldades, da nossa estupidez, da nossa ignorância, da nossa pequenez. A morte, simplesmente, nos interrompe o fluxo, a caminhada, o respirar, dentro de uma perspectiva que não dava sinais de ser diferente do que era.  

Talvez por isso, a cultura ocidental tenha mais dificuldade em lidar com a morte, de falar sobre ela, de estabelecer reflexões a respeito. Mas, esse é um exercício a ser praticado por todo e qualquer ser humano. Não importa se homem ou mulher, jovem ou velho, preto ou branco, rico ou pobre, ateu ou fiel, letrado ou ignorante. Sobretudo, quando caem na tentação de se julgarem acima do Bem e do Mal, maiores e melhores do que os outros.

Afinal de contas, como escreveu Ariano Suassuna, diante da morte só nos resta dizer, “Cumpriu a sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre” (O Auto da Compadecida, 1955).