sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Por que devemos nos lembrar?


Por que devemos nos lembrar?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em diversos espaços das redes sociais, ontem, 27 de janeiro, estava manifesta uma campanha “#WeRemember” (#NósLembramos), em razão do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. De fato, precisamos lembrar sim, os horrores da 2ª Guerra Mundial. Mas, não basta apenas não esquecer, é preciso refletir e aprofundar o conhecimento até alcançar os meandros mais sutis dos fatos.

Infelizmente, as marcas produzidas pelo holocausto não se resumem aos acontecimentos mais brutais e perversos, tais como os campos de concentração, as câmaras de gás, as experiências médicas, a apropriação indébita de bens e riquezas, a separação de famílias inteiras, a dizimação de pessoas.

Tudo isso ficou devidamente registrado nas páginas materiais e imateriais da história, como um legado de profunda consternação e perplexidade a respeito de tempos tão sombrios. A questão é que a Guerra acabou; mas, essas ideias absurdas não. Esse é ponto. O ódio que permanece se propagando entre os seres humanos. Que depois da 2ª Guerra trouxe outras, e outras, e outras...  

A razão disso está no fato de que apesar da maldade conseguir eleger protagonistas, o que a sustenta é uma legião de fiéis seguidores anônimos, quase invisíveis, que passam até certo ponto despercebidos na população. Gente comum, sem grandes projeções sociais. Alguns com alguma importância econômica; mas, não como elemento constituinte dos pilares de poder.

Acontece que essas pessoas não são massas de manobra, como muitos acreditam. Elas não foram necessariamente induzidas, ou influenciadas, ou coagidas a se integrarem aos ideais desse movimento destrutivo. Não. A sua concordância se deu com base nas afinidades ideológicas e comportamentais. Elas encontraram eco nas narrativas e discursos disseminados. Não é à toa que houve quem se manteve à distância disso e trabalhasse na contramão do holocausto, lutando pelas vidas de quem estava sendo perseguido e massacrado.

Daí a necessidade de se lembrar. A Xenofobia, o Racismo, o Sexismo, a Misoginia, a Homofobia, a Transfobia, a Intolerância Religiosa, a Aporofobia, a Escravização, a Eugenia, a Supremacia branca, sempre esteve presente na história da humanidade. Em pensamentos, palavras e ações, essas manifestações tomam conta do cotidiano, diariamente, em todo o planeta.

O que significa se tratar de uma ameaça real, não necessariamente uma ameaça que aguarda pela deflagração de guerra para se firmar. Considerando a consciência de que esse perfil não se sustenta majoritariamente na sociedade, seus simpatizantes apenas aguardam, sempre à espreita, por condições favoráveis, por legitimações governamentais, por exemplo, para o extravasarem com vistas à sua consolidação como pautas de comportamento.

Um exemplo disso pode ser observado, neste que é o Dia do Combate ao Trabalho Escravo (28/01), no Brasil, quando o Vice-Coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento do Tráfico de Pessoas (Conaete), afirmou em entrevista que “houve um aumento da quantidade de pessoas em situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social. Esse tipo de situação as torna mais propensas a serem aliciadas e submetidas a ações de exploração extrema” 1.

Mas, além disso, a matéria acrescentou que o “[Aumento está relacionado com] a falta efetiva de fiscalização e da política de afrouxamento da mesma pelo governo federal, que continua o desmonte do Ministério do Trabalho e Previdência e da retirada de direitos dos trabalhadores”.

Portanto, é preciso entender que as atrocidades promovidas por governos mundo afora se sustentam e se retroalimentam dentro da própria população, por gente que aplaude, que aceita, que concorda integralmente com elas. Começando pela trivialização, pela banalização, dos episódios envolvendo Xenofobia, Racismo, Sexismo, Misoginia, Homofobia/Transfobia, Intolerância Religiosa, Aporofobia, Escravização, Eugenia, Supremacismo.

Utilizando de argumentos que aviltam os direitos civis das vítimas, tornando-as, inclusive, responsáveis por essas violências, esse movimento, liderado pela direita e suas ramificações extremistas, tenta negar as estatísticas que comprovam essa barbárie, na contemporaneidade. O que muitas vezes acaba favorecendo a construção de uma estatística subnotificada, que colabora e muito, para a formação de um tabu que invisibiliza essas discussões.

Bem, invisibiliza; mas, não extingue. Independentemente de dia, hora, e lugar, é possível sentir a força dessa aura extremista rondando. Pelas linguagens verbais e não verbais, ela é expressa e disseminada amiúde, por qualquer classe social. De modo que as ideologias que estiveram presentes no Holocausto, há mais de 80 anos, conseguem se perpetuar, de geração em geração, através de pequenas células simpatizantes, no culto dessas crenças, valores e comportamentos.

Apesar da importância da criminalização desses atos, as leis ainda esbarram na dificuldade de sobreposição à continua reafirmação dessas ideologias. Elas buscam frear os arroubos, os instintos, as intenções; mas, nem sempre, conseguem o mais importante que é a promoção de uma transformação crítica e reflexiva nos indivíduos. Quem assistiu ao filme “A outra história americana” (American History X), de 1998, entende isso de maneira muito clara e objetiva.

Muitas vezes, as conjunturas acabam capturando os protagonistas, as lideranças, as personalidades mais importantes desses movimentos; mas, se esquecem de toda a estrutura popular que os sustenta. Se esquecem de que eles não estavam sozinhos, não agiam sozinhos. Portanto, ainda que percam as vozes mais expressivas, eles não perderam a sua própria voz. A tendência natural é que eles sigam em frente, que assumam novos papéis dentro do contexto, que se tornem figuras de notória importância.

Daí, mais uma vez, a necessidade de se lembrar. De pensar. De refletir. De sair da superficialidade da história e construir uma linha do tempo. Parar de considerar os acontecimentos do cotidiano, como meros frames. Pontuais. Desconectados. Pouco representativos.

Prestar mais atenção naquilo que se ouve. Nem tudo é bobagem. Nem tudo é teatro. Nem tudo é para “causar”. Essa ideia de acreditar que as pessoas falam sem pensar é tolice. Nem sempre é o consciente que diz; mas, certamente é o inconsciente. E ele é o espelho da essência humana. A caixa que guarda todos os segredos, todos os mistérios, todos os anjos e demônios que habitam o ser.

Não se esqueça de que você escolhe a roupa que vai vestir, a comida que vai comer, o caminho pelo qual vai transitar, o programa de TV que vai assistir, o amigo que vai lhe acompanhar, ... ou seja, você age por afinidade, o tempo todo. Aquilo que cabe ou não dentro da sua lógica de crenças, valores, princípios, ideias.

Isso explica, então, porque a maior ameaça para os seres humanos não são as pessoas “diferentes”; mas, as que são iguais ou semelhantes, porque unidas por suas afinidades ideológicas e comportamentais, elas podem levar o mundo ao caos, à penúria, a desestabilização e, até mesmo, a uma 3ª Guerra. Afinal, elas acreditam que são melhores, superiores e mais importantes do que qualquer um que não se enquadre ao seu check list de exigências e padrões. É aí que mora o perigo! Em toda e qualquer tentativa de homogeneização humana.

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