domingo, 4 de fevereiro de 2024

Tempos narcísicos


Tempos narcísicos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A pós-verdade é sim, algo presente na contemporaneidade, impactando diretamente nas relações sociais. Todo esse movimento de criação e/ou modelação da opinião pública, o qual desconsidera os fatos objetivos para dar espaço à manipulação intencional das emoções e das crenças pessoais, na verdade, só fez exacerbar um traço da própria personalidade humana.

Na observação, cada vez mais atenta, do ser humano, comecei a perceber que a pós-verdade só encontrou guarida nos tempos contemporâneos, porque muitos indivíduos têm em si uma tendência nata a viver sob uma realidade idealizada, a qual desconsidera os fatos e os acontecimentos. Portanto, nessa perspectiva, o outro não tem direito de fala, não existe. É o narcisismo à flor da pele.

Portanto, estamos falando de indivíduos totalmente encapsulados no seu próprio mundinho. Isso acontece em razão de não estarem dispostos a se abster de certos comportamentos, tais como mentiras, vitimismo, necessidade excessiva de atenção, falta de empatia ou empatia reduzida, dificuldade de aceitar críticas. Afinal, é dentro desse rol de atitudes que eles preservam a zona de conforto da sua idealização.

Daí a sua imensa dificuldade em lidar com o factual da vida. O ideal é perfeito, não erra, não comete falhas, não gera sobressaltos, não questiona, enfim... De modo que essas pessoas precisam fazer um sacrifício enorme para aceitar a vida como ela é, para conviver com quaisquer pessoas além de si mesmas. Sim, porque por mais que vistam uma personagem afável, bem educada, sociável, sempre chega o momento em que a máscara cai. Basta um pequeno deslize do mundo. A sua pseudosinceridade não passa da página dois.

Não é à toa que exista tanto disse me disse, por aí. A contemporaneidade tem sido um celeiro de intrigas, boatarias, falatórios, falsidades, fuxicos, invencionices. Pois é, a humanidade está mais e mais carente de transparência, de franqueza, de lisura, de honestidade, fazendo com que a reciprocidade dos melhores valores, princípios e crenças, seja perdida. Afinal, o que era para ser uma convivência, uma coexistência, equilibrada, passa a acontecer sob o signo da assimetria, o qual fragiliza os laços, os afetos, os sentimentos.

Quando movidos pelo narcisismo, que expressa claramente um viés egoísta e individualista, certas pessoas ofertam de si o que querem, como querem e quando querem. Como se as relações humanas fossem vias de mão única. O outro tem sempre que lhes estar à disposição, acessível, inteiro nas suas habilidades e competências, em um processo de objetificação; pois, ele foi sumariamente destituído das suas emoções, dos seus sentimentos, das suas fragilidades e vulnerabilidades. O modo como o outro se sente nesse processo, não importa.

E se ele demonstra a sua insatisfação, o seu desconforto ou o seu inconformismo, com essa estrutura relacional, ele passa a ser visto como indesejável, inconveniente, ingrato. Ora, no contexto do ideário individualista não há nada de errado com a submissão, a invisibilização, a inferiorização, do outro. Porque na mente narcísica o seu direito se sobrepõe ao do outro. Não importa se isso vai afetá-lo em diferentes formas, ou seja, na sua objetividade ou na sua subjetividade. Ele tem direito e ponto final.

O que aponta para o fato de que o narcisismo, dentro da sociedade contemporânea, não só tem flexibilizado, de maneira brutal, os limites; mas, em muitos casos, esgarçado eles completamente. Gerando um quadro de tensões sociais, bastante intensas, em alguns casos, e em outros, afetando a saúde mental e psicoemocional dos indivíduos. Infelizmente, o narcisismo é nocivo e a sua toxicidade repercute em curto, médio e longo prazo, na salubridade social, trazendo desdobramentos incalculáveis.

Ainda que muitos não percebam ou não compreendam, refletir sobre o comportamento humano é fundamental. O adoecimento populacional não acontece só por causa de epidemias virais ou bacterianas, por agentes patogênicos, por distúrbios orgânicos em si. Componentes psicoemocionais sociais têm sido, cada vez mais, responsáveis por essa realidade. É preciso pensar que a contemporaneidade é cheia de gatilhos em relação ao narcisismo humano, seja em menor ou em maior escala.

Daqui e dali tem muita gente acreditando que é a última bolacha do pacote. A idealização exacerbada sobre si mesmo faz com que muitos pensem que o mundo gira ao seu redor. Que a sua existência é que mantém tudo fluindo, acontecendo. Como escreveu Lacan 1, “Cada um alcança a verdade que é capaz de suportar”. No entanto, isso não é suficiente para eximir o narcisista do seu senso tirânico, autoritário, no qual os outros são obrigados, sabe-se lá porquê, a aceitar essa perspectiva idealizada por ele. Goela abaixo, sem questionar.

Acontece que tudo isso afasta as pessoas. Cria abismos para uma convivência e uma coexistência profícua e salutar. Não é à toa que Frida Kahlo dizia, “Se você me quer em sua vida, coloque-me nela. Eu não deveria estar lutando por uma posição”.  Mas, o narcisista impõe o desequilíbrio, as suas mentiras, o seu vitimismo, a sua necessidade excessiva de atenção, a sua falta de empatia (ou empatia reduzida), a sua dificuldade de aceitar críticas. Daí a conta não fecha e as relações humanas se esgarçam, deixando o mundo mais frio, mais sofrido, mais cético, mais ... desumanizado.  

 



1 Jacques-Marie Émile Lacan – psiquiatra e psicanalista. Seguidor dos ensinamentos de Sigmund Freud.  

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