terça-feira, 26 de outubro de 2021

Para retóricas vazias e delirantes ... ouvidos de mercador


Para retóricas vazias e delirantes ... ouvidos de mercador

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, seria uma maravilha se pudéssemos num piscar de olhos ou num estalar de dedos tornar a realidade ajustada aos nossos interesses e vontades! Mas, não é assim que acontece e a insistência em se permitir agir dessa maneira, só deteriora e compromete ainda mais a credibilidade dos discursos e narrativas manifestos, como se quem os fizesse não tivesse nenhuma consciência, habilidade ou competência para fazê-lo.

Já disse outras vezes que a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), que irá acontecer entre 31 de outubro e 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia, não tende a ser um palco para retóricas vazias e delirantes. Os problemas socioambientais não estão mais no campo das perspectivas ruins, eles já são um fato concreto, visível e assolador para a grande maioria dos 196 países que estarão presentes no evento.

Em maior ou menor escala o equilíbrio da dinâmica ambiental vem sendo rompido pelas ações antrópicas, as quais respondem, então, sobre a dinâmica social, quase em um efeito boomerang. Por essa razão é que se torna imprescindível debater sobre propostas exequíveis e economicamente viáveis, dentro das condições apresentadas pela atual conjuntura pandêmica, para que os esforços individuais e coletivos não sejam frustrados. Daí o fato dos desafios serem muitos e complexos.

Então, diante da apresentação do Programa Brasileiro de Crescimento Verde, ontem à tarde, a perplexidade foi total. A toque de caixa o governo federal rascunhou uma série de ideias descoladas da atual realidade do país e as apresentou como um programa que será levado a Glasgow. Apesar de se criar um caráter multiministerial para o referido programa, como precisa ser no campo da sustentabilidade socioambiental, o fato de não se permitir guiar pelas estatísticas e dados objetivos da conjuntura atual para sua construção deixou inúmeras lacunas e incongruências, fragilizando a sua credibilidade.

Embora o Brasil tenha muito potencial para se tornar um expoente relevante dentro do cenário global da Economia Verde, as suas constantes investidas na contramão desse conceito esvaziam as expectativas e perspectivas. Tomando como base de exemplo a situação da Amazônia, “Em vez de absorver dióxido de carbono, o sudeste da floresta tropical está se transformando gradualmente num emissor de poluentes, de acordo com relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgado nesta segunda-feira (25/10)” 1.

É preciso entender que as ações antrópicas sobre os biomas brasileiros vieram se intensificando, nos últimos três anos, de uma maneira brutal. Sem contar, todo o trabalho de desconstrução e desmantelamento das estruturas institucionais de gestão e fiscalização ambiental, que trazem os impactos negativos para além da fauna e flora; mas, para outros aspectos socioambientais.

Haja vista o recente leilão promovido pela Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP), que ofereceu 92 blocos para exploração de petróleo e gás natural e inclui áreas em Fernando de Noronha e no Atol das Rocas, expondo a riscos a fauna e a microfauna marinha. Por sorte, apenas 5 dos 92 blocos foram arrematados, todos na Bacia de Santos, porque a mobilização da sociedade civil contra o leilão, com base em argumentos socioambientais e jurídicos consistentes, dissuadiu os possíveis interessados.

Além disso, os sucessivos erros de condução da economia brasileira consolidaram uma crise que se torna robusta a cada dia, o que dificulta permitir investimentos importantes para a Economia Verde e realinhar o país dentro de uma política socioambiental sustentável. Basta olhar para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), que é uma prévia da inflação, ele registrou 1,20% em outubro e 10,34% no acumulado de 12 meses. “Foi a maior taxa para o mês em 26 anos” 2.

Considerando que o otimismo que havia sido projetado para o mundo no Pós-Pandemia se mostrou bem menos realista do que o esperado, “o Brasil corre o risco de ingressar em um cenário de estagflação, a combinação perversa entre a estagnação do crescimento econômico, desemprego e inflação alta”. Isso porque há a probabilidade de “crescimento perto de zero no ano que vem e a inflação não caindo na velocidade esperada”; posto que, “um desafio é o câmbio, um dos principais responsáveis pela inflação brasileira. O dólar deve seguir acima de 5 reais (ou mais) em 2022, elevando os custos de produção em quase todos os setores e o preço para o consumidor”3.

É; temos que reconhecer que o Brasil errou. Errou feio. Se permitiu perder oportunidades diversas de desenvolvimento e progresso. A opção por não exercitar correções e ajustes naquilo que considerava desalinhado à sua governança para desconstruir e fazer do zero, deu nisso. De modo que ele se perdeu no meio do caminho. Não sabe como corrigir os próprios erros. Não sabe como recomeçar a partir de uma nova perspectiva. Não sabe olhar para dentro e fora de suas fronteiras para traçar seus caminhos. Não sabe fazer mea culpa e se enovela cada vez mais no próprio constrangimento.

Sendo assim, essa realidade que se exibe arrogante e insensata, diante de nós, traduz na prática exatamente o que disse José Saramago, ou seja, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses”. Então, se realmente pulsa algum desejo de transformação, seja ela socioambiental ou socioeconômica, havemos de não esquecer que “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada” (José Saramago).

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