sábado, 30 de outubro de 2021

O peso do “invisível” sobre a vida


O peso do “invisível” sobre a vida

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muitos, talvez, não se recordem da história do “Vale da Morte”, como ficou conhecida a região do vale de Cubatão, no estado de São Paulo, por conta dos altíssimos índices de poluição decorrentes do parque industrial ali localizado. As chaminés em frenético movimento de dispersão de fumaça tóxica, liberando toneladas de monóxido de carbono, benzeno, óxido de enxofre e de nitrogênio, hidrocarbonetos e particulados diversos, promoveram impactos socioambientais tão drásticos que ganharam repercussão internacional.

Entre as décadas de 1970 e 1980, a população do local conviveu com os impactos da insalubridade, dada a fragilidade da legislação ambiental no Brasil e, por isso, dos mecanismos fiscalizatórios e preventivos. Assim, “o ar de Cubatão no início dos anos 80 era denso, possuía cheiro e cor. Segundo dados da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo (CETESB), 30 mil toneladas de poluentes eram lançadas por mês no ar da cidade, peixes e pássaros sumiram da poluição de Cubatão, pois não havia condições naturais para sobreviverem e nem para se reproduzirem” 1.

No entanto, o efeito mais cruel e perverso veio do fato de que “entre outubro de 1981 e abril de 1982, cerca de 1800 crianças nasceram na cidade, destas, 37 já nasceram mortas, outras apresentavam graves problemas neurológicos e anencefalia” 2. Eram chamadas de “cara de sapo” porque tinham uma cabeça completamente achatada, sem cérebro. Decorrência da inalação constante da poluição, que também promovia uma exacerbação dos casos de doenças respiratórias na população local.

A mudança, porém, só começou a se delinear de maneira mais satisfatória a partir da década de 1990, tendo em vista um conjunto de mobilizações internacionais impulsionadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e outras entidades e Organizações Não-Governamentais (ONGs) ligadas as questões ambientais e de sustentabilidade. O que trouxe melhora para os parâmetros de análise da poluição; mas, não uma solução concreta para os problemas enfrentados, os quais Cubatão foi só mais um exemplo dentre milhares espalhados ao redor do planeta.

E esse é o ponto-chave para a reflexão. Quando as legislações ambientais se propõem a estabelecer limites toleráveis para a população, o que elas acabam fazendo é criar uma resposta ambiental e socialmente aceitável, ao invés de uma medida que proteja de maneira efetiva o ser humano e o meio ambiente. Ora, as grandes plantas industriais, por exemplo, operam diuturna e ininterruptamente, de modo que a exposição a esses poluentes ocorre de maneira contínua e em grandes quantidades, tanto pelo ambiente quanto pela população.

Assim, nesses casos, as escalas ou medidas de tolerabilidade e de risco à saúde, quase sempre desconsideram a heterogenia populacional. Sim, somos diferentes, constituídos por especificidades naturais; mas, não é isso que importa para esse tipo de análise. Tratam-se de aspectos como gênero, idade, raça, peso, altura, informações nutricionais, presença ou não de comorbidades, tempo de exposição aos agentes poluentes e tipo de poluente, que determinam as probabilidades de maior ou menor letalidade e intercorrências à saúde das pessoas.

De modo que a maneira como são analisadas essas referências, propostas pela legislação ambiental, tende-se a estabelecer um enviesamento dos resultados e, por consequência, a construção de um panorama errático para a aplicação de fiscalização e de controle ambiental, no campo das atividades geradoras de impacto negativo. Colocando em risco, principalmente, os segmentos mais vulneráveis e desassistidos da população. Afinal, quanto mais biológica e socialmente fragilizadas estiverem as pessoas expostas continuamente aos agentes poluidores, mais graves e letais podem ser as consequências desse processo. Aliás, muitas das doenças surgidas nesse contexto apresentam uma progressão lenta e duradoura, que se torna acentuada em razão da exposição incessante.

Não é à toa, portanto, que desde a década de 1960 a humanidade se viu obrigada a enfrentar a reflexão sobre os desafios socioambientais oriundos das Revoluções Industriais. Em quase três séculos desde sua primeira geração, ocorrida na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII, o impacto das consequências foi se tornando cada vez mais impossível de invisibilizar e de contemporizar. Gradativamente, as inúmeras promessas de realização, sucesso, desenvolvimento e fortuna que encheram os olhos do mundo foram sendo desconstruídas para dar lugar as reparações, indenizações, morticínios, desequilíbrios e instabilidades socioambientais.

Um breve apanhado junto a história, para se dar conta de que os grandes eventos de discussão ambiental ocorreram em número bem menor do que as grandes fatalidades que eles tentam evitar. Muitas delas, inclusive, inspiraram o cinema mundial a se basear para construir grandes enredos e promover preciosas reflexões. A mais recente delas é “Minamata” 3, dirigida por Andrew Levitas e estrelada por Johnny Depp, Bill Nighy, Minami Hinase e Hiroyuki Sanada, que trata do “Desastre de Minamata” 4, quando essa cidade japonesa foi envenenada por mercúrio lançado no mar por uma grande indústria química.

Esse foi um caso tão emblemático na história mundial que “foi realizado um tratado internacional com o objeto de oferecer proteção à saúde humana e ao meio ambiente, sendo reconhecido o impacto do mercúrio e seus compostos. Em outubro de 2013, aprovado o texto final da Convenção de Minamata, foi aprovado e assinado por 92 (noventa e dois) países, incluindo o Brasil” 5. No entanto, apesar da gravidade que representa a utilização do mercúrio teima a acontecer de maneira inadvertida e indiscriminada, como nos garimpos ilegais para extração de ouro.

Segundo o núcleo brasileiro da Organização Não-Governamental World Wide Fund for Nature (WWF), “o bloqueio de uma carga de 1,7 toneladas de mercúrio no porto de Itajaí, em Santa Catarina, em 29 de março de 2018, dá uma ideia do tamanho do desafio que o Brasil enfrenta para cumprir a Convenção de Minamata [...]. O destino seria, na verdade, o garimpo ilegal de ouro na Amazônia, mostrou investigação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis), responsável pelo controle nacional do comércio, da produção e da importação de mercúrio metálico” 6.

Pois é, nem tudo é ficção, nem tudo é invenção, nem tudo corre dentro dos parâmetros, ... A cada segundo o planeta é acometido por um risco diferente provocado pelo próprio ser humano. Negando, invisibilizando, distorcendo a realidade é que se chegou rapidamente à beira do precipício. Sobreviver ou não está nas mãos de cada ser humano; assim como, se contaminar ou não, morrer de fome/sede ou não ... Seja por mera ironia (ou não) do destino, a contemporaneidade que rejeita todo e qualquer limite, em nome do infinito controle sobre a própria liberdade, está refém do limite ambiental se quiser sobreviver. A iminência de xeque-mate está bem debaixo do nariz, aguardando por alguém que tenha cacife ou coragem para pagar para ver mais uma vez. Então, não adianta fugir, não adianta correr, muito menos disfarçar o temor que corre nas veias, porque há tempos já havíamos sido avisados sobre uma tal “feia fumaça que sobe, apagando as estrelas” 7; mas, insensíveis demais para aprender com poesia, não demos a menor atenção.

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