Anistia
dosimétrica???
Por Alessandra
Leles Rocha
Vamos imaginar uma situação
hipotética do cotidiano. A criança pega escondido o cartão de crédito da mãe e
gasta milhares de reais em joguinhos. A fatura do cartão chega em casa e a mãe
se descontrola diante do valor elevadíssimo. Em razão da gravidade da situação,
ela decide impor um castigo ao filho.
Ele não poderia sair de casa,
para brincar com os amigos da escola, por seis meses, que seria, segundo ela, o
tempo necessário para a família reequilibrar as finanças. Além disso, o garoto teria
o celular bloqueado e a mesada cortada, pelo mesmo período.
Acontece que o pai, ao saber do
fato, considerou que a mãe foi severa demais. Que o ocorrido era parte das
costumeiras travessuras do garoto e, portanto, a punição poderia ser reavaliada
e reduzida. Para o pai, bastava que o garoto não pudesse sair de casa, por um
mês.
Portanto, ele aplicou uma anistia
dosimétrica, ou seja, um perdão com base no cálculo feito mediante as
circunstâncias da travessura; bem como, considerando agravantes e atenuantes do
comportamento do garoto.
Sem aprofundar em todas as camadas
de análise existentes nesse exemplo, ainda assim, é possível perceber que a
atitude do pai abre uma possibilidade, um precedente, para que o garoto reincida
no seu comportamento travesso, na medida em que ela foi atenuada e flexibilizada.
Ora, como explica a própria
física, através da 3ª Lei de Newton, para toda ação existe uma reação de igual
intensidade e no sentido oposto. De modo que a aplicação de uma punição deve
acontecer pautada pelos mesmos princípios, ou seja, ela deve ser entendida como
um mecanismo social que visa regular de maneira proporcional o comportamento e
a culpabilidade.
Afinal de contas, a punição molda
a conduta social e os significados dentro de um coletivo humano. Punições
desalinhadas ao perfil da má conduta cometida acabam por criar,
inevitavelmente, uma ideia de permissividade, que não só tolera ou permite
comportamentos tradicionalmente antiéticos e imorais, como apontam para uma
total não aderência às regras sociais convencionais.
Infelizmente, é exatamente uma
anistia dosimétrica que um grupo de parlamentares brasileiros tenta emplacar em
relação aos condenados pela tentativa recente de Golpe de Estado, no país. Como
se os crimes apontados, os quais incluem a construção de organização criminosa
armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe
de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União, e/ou deterioração de patrimônio
tombado, pudessem ser minimizados, contemporizados, e/ou abrandados.
Essa tal anistia dosimétrica
parece se esquecer, também, o vultoso montante de dinheiro público que esteve
envolvido nessa trama golpista. O próprio conjunto probatório da ação penal
demonstra esse aspecto, com bastante clareza. Sem contar que o Brasil já teve a
prova cabal dos efeitos negativos que suas anistias anteriores trouxeram ao
país.
Bem, essa ideia de perdão
concedido pelo Estado às pessoas que cometeram determinados crimes, extinguindo
a punibilidade, é totalmente fracassada. É preciso compreender que por trás dos crime
políticos existe uma motivação, um fator interno, uma razão, que move alguém,
individualmente ou coletivamente, a agir.
De modo que, tais crenças,
convicções, princípios, não desaparecem em um piscar de olhos, ainda que diante
de uma proposta de anistia. Trata-se de algo muito profundo, de certa forma,
arraigado no inconsciente coletivo, ao longo do tempo.
Daí essa motivação poder ser silenciada
momentaneamente; mas, ela não deixa de existir e ao menor sinal de
oportunidade, ela pode sim, emergir com todo o seu ímpeto. Por isso, é tão rasa
e ingênua a ideia de que uma proposta de anistia, seja ela qual for, é suficiente
para construir uma prevenção ou, quem sabe, uma reabilitação, do ponto de vista
ideológico- comportamental.
Não se pode negar que nos
bastidores dos crimes contra a Democracia, o Estado de Direito, às
instituições, à cidadania, existem interesses e poderes considerados, por uns e
outros, inegociáveis e inflexíveis. Ora, está nesses interesses e poderes a
chama vital que nutre o ideário golpista!
De modo que ele pode arrefecer;
mas, ele não desaparece, ele não se extingue. O que significa que a
possibilidade de anistia, seja ela qual for, é um impulso motivacional para
fortalecer o golpismo. Razão pela qual, o cidadão não pode considerar normal anistiar
pessoas que cometeram crimes gravosos contra o país, nem tampouco, apoiar esse
tipo de proposta de atenuação de pena.
Assim, não se esqueça de que o
Brasil vive um momento crucial para compreender que “Se você não desenvolver
uma cultura democrática constante e viva, capaz de cobrar os candidatos, eles
não farão as coisas pelas quais você votou. Apertar um botão e logo ir embora
para sua casa não vai mudar as coisas” (Avram Noam Chomsky - linguista,
filósofo, sociólogo, cientista cognitivo e ativista político estadunidense).