O mundo e
o ódio
Por Alessandra
Leles Rocha
A saga humana sobre a Terra é
sim, marcada pelas idas e vindas do seu fracasso civilizatório. Domar o
instinto primitivo, o bárbaro que habita as profundezas da inconsciência humana,
não é tarefa fácil! De vez em quando, sob ondas rompantes e tenebrosas, o lado
escuro da força se manifesta. O exemplo da ocasião é o ódio. Em todas as suas
formas. Sob todos os pretextos. Odiar no mundo virtual. No mundo real. Odiar...
E apesar de não mudar em nada, no
curso da própria história de quem odeia, ele o faz porque o senso deturpado do
individualismo lhe aponta esse tipo de comportamento como uma forma de poder. A
ideia de poder odiar o outro resulta uma satisfação, um sentimento de coragem
infracional, de superioridade social. Mas, não é só isso. O ódio ao outro
exerce sempre a função de evitar que se enxergue a própria imagem, na sua
devida dimensão factual.
Assim, a pseudoideia de superioridade,
de força, de capacidade, ... se mantém inabalável no indivíduo. Segundo o
escritor tcheco Milan Kundera, “O valor de um ser humano reside na
capacidade de ir além de ele próprio, de sair de dentro de si próprio, de
existir dentro de si próprio e para as outras pessoas”. Talvez, por isso, o
ódio seja tão importante para uns e outros, por aí.
Não é à toa que estudiosos no
campo do comportamento identificaram a explosão do interesse e do
compartilhamento do ódio nas mídias sociais. O ódio lidera na capitalização de
recursos. De modo que, na busca de engajamento nesses espaços virtuais, a opção
pela disseminação da paleta de manifestações odiosas cresce tão vertiginosamente.
Algo que vem fragmentando a dinâmica existencial
em pequenos pretextos para a deflagração do ódio. Racismo. Xenofobia. Homo e
Transfobia. Sexismo. Misoginia. Etarismo. Gordofobia. Aporofobia. Classismo. Capacitismo.
Intolerância Religiosa. ...
Daí o ódio ser cada vez mais
atemporal e amplo na sua distribuição socioespacial. Não há um dia sequer em
que os veículos de informação e de comunicação, tradicionais e alternativos,
não exibam registros de ódio aqui, ali ou acolá. Aliás, essa intensificação discursiva,
em torno da reverberação do ódio, acaba elevando a hostilidade ao nível de caminho
único para a convivência e a coexistência humana.
Acontece que esse processo conduz
a sociedade a um silenciamento coletivo, em nome do medo. Os indivíduos começam a construir, ainda que subjetiva
e metaforicamente, os seus muros, os seus guetos, as suas bolhas, as suas
ilhas. De modo que somente nesses ambientes predeterminados é que eles se sentem
confortáveis para ser, para existir. Ainda que, muitas vezes, pisando em ovos
para evitar quaisquer abalos ou rupturas ao seu pertencimento e aceitação
social.
Lembrei-me, então, do que escreveu
Mia Couto em seu livro O último voo do flamingo (2022), “A guerra nunca
partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a
amadurecer no ódio da gente miúda”. Esse silenciar, dentro do cenário
social, não deixa de ser uma práxis mórbida de gestação do ódio. Se você ainda
não leu, ou assistiu ao filme, “O ÓDIO QUE VOCÊ SEMEIA”, de Angie Thomas, penso
deveria fazê-lo. Trata-se de uma obra que aborda especificamente essa dimensão
do assunto.
Queiramos ou não admitir, é dentro
desse viés que a raça humana está inserida, nesse exato momento. Estamos, até
certo ponto, reféns do ódio! Porém, “Dos medos nascem as coragens; e das
dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os
delírios, outra razão” (Eduardo Galeano - O livro dos abraços. Porto
Alegre: L&PM, 2002). Cabe, então, a cada ser humano entender e absorver
que “Não importa de onde vim, mas, sim, aonde quero chegar” (Eduardo Galeano
- escritor e jornalista uruguaio).
Afinal de contas, a lição que está
posta é: “Nada mais civilizado do que saber conviver com as diferenças”;
pois, “Nada denuncia mais o grau de civilidade de um país e de um povo do
que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade.” (Gloria Kalil – jornalista
brasileira). Ignorar essa ideia é permitir, abertamente, que o ódio
prospere, na medida em que “Basta que um homem odeie outro para que o ódio
ganhe a pouco e pouco a humanidade inteira” (Jean-Paul Sartre – escritor e filósofo
francês).