O
mundo em ebulição
Por
Alessandra Leles Rocha
Muito além das mudanças
climáticas, a ebulição do mundo se dá em outras direções e sentidos. O colapso
parece surgir para trazer o esgotamento definitivo das ideias que não cabem
mais. Tempos difíceis, muito difíceis; mas, profundamente necessários para
reorganizar a vida e colocar todas as questões humanas em ordem.
Desde as Cruzadas, entre os
séculos XI e XIII, o que sempre pesou nas relações entre cristãos e muçulmanos não
foi necessariamente as diferenças religiosas; mas, a potencialidade que a
religião poderia lhes oferecer em termos de influência geopolítica. Daí o fato das tentativas de paz entre eles
não prosperarem e, ao contrário, fazerem surgir em seus respectivos meios,
grupos cada vez mais radicais e extremistas de suas ideologias.
Por isso, é tão importante olhar
para todos os lados da história. Bons e maus não vestem sempre a mesma roupa.
Não estão sempre em lados opostos. De uma hora para outra os ventos mudam,
porque mudam os interesses e as alianças. E muitos são os instrumentos
utilizados para legitimar e, em alguns casos, até legalizar, as investidas;
como acontece com os livros sagrados das religiões. O modo como são
interpretados pode desencadear discursos e narrativas consistentes e inflamados,
o bastante, para influenciar nas diretrizes sociais, dentro e fora das próprias
fronteiras.
Afinal, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar” (Michel Foucault – A ordem do discurso). Assim, do mesmo
modo que no Absolutismo havia a Teoria do Direito Divino dos Reis, na qual o poder
do monarca estava fundamentado na vontade de Deus; no Islamismo, o poder
político também está subordinado ao poder religioso determinado a partir do Alcorão.
Acontece que essas interpretações
variam segundo as conjunturas e os interesses de quem detém a regência, o que
se explica por uma vasta gradação de análises. Por isso, quanto mais espaço se
dá para a influência das interpretações religiosas no poder, mais se oportuniza
o acirramento do radicalismo interpretativo. Razão pela qual, nesses regimes o
primeiro pilar de desconstrução venha a ser a Educação, porque “todo sistema de educação é uma maneira
política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes
e os poderes que eles trazem consigo” (Michel Foucault – A ordem do
discurso).
Não é à toa, então, a preocupação
que se estabeleceu no mundo, nos últimos dias, pela retomada do Afeganistão
pelo Talibã, um movimento fundamentalista islâmico nacionalista que havia
controlado o país entre 1996 e 2001. Ele havia sido retirado do poder por uma
coalizão militar liderada pelos EUA, em 2001, que visava conter as ações da
Al-Qaeda, responsável pelos ataques do 11 de Setembro. Porém, após a recente retirada
das tropas norte-americanas da região, ele voltou a dominar o país.
O Talibã conseguiu se instalar no
poder, inicialmente na década de 90, pela promessa de erradicar a corrupção,
diminuir os crimes e tornar as áreas sob seu controle seguras para o comércio.
Mas, seu principal objetivo era impor a sua interpretação escrita da Lei Sharia,
a qual regula, civil e criminalmente, a conduta individual, pessoal e moral dos
cidadãos muçulmanos. O que quer dizer que, em linhas gerais, eles representam uma
milícia de extrema-direita, cujas ideologias sustentam tendências anticomunistas,
autoritárias, nacionalistas e nativistas.
Tendo em vista o fato de que renegam
a ciência, a cultura e a educação, perseguem minorias, submetem mulheres a violências
diversas e, tem como lema o culto a Deus, a pátria, a família e as armas, o
Talibã é uma expressão de retrocesso civilizatório para a geopolítica mundial. Suas
investidas acabam por fortalecer o radicalismo e o extremismo de outros grupos
mundo afora; mas, também, desencadeiam a expansão dos processos de deslocamento
forçado de pessoas para outras regiões do planeta, que já sofrem com os impactos socioeconômicos desse movimento migratório.
O que acontece, agora, no Afeganistão,
pode ser a representação de um gigantesco “Efeito
Borboleta” de dimensões inimagináveis, dadas as instabilidades já geradas
pela própria Pandemia. Afinal de contas, o mundo se depara com o confronto das
investidas promovidas por diferentes manifestações da extrema-direita, em meio
ao caos instituído pela presença de um inimigo viral que o obriga, lenta e
gradualmente, a se reconstruir e ressignificar suas bases. Portanto, ele não é
mais o mesmo de ontem, e nem tampouco, de 20 anos atrás.
O importante, então, é ter a consciência
de que “os analfabetos do século XXI não
serão aqueles que não conseguem ler e escrever, mas aqueles que não conseguem
aprender, desaprender e reaprender” (Alvin Toffler – escritor norte-americano).
Estão aí, centenas de milhares de páginas
da história da humanidade, para alicerçar a nossa capacidade em entender que “não há nada que ensine mais do que se
reorganizar depois do fracasso e seguir em frente” (Charles Bukowski).
Desapego. Essa é a palavra de ordem. A palavra da sobrevivência humana, seja em que tempo for, em que lugar for. Porque sem ela, “os extremos delimitam a fronteira para além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, tanto em arte como em política, é um desejo de morte disfarçado” (Milan Kundera – escritor checo-francês). De modo que a única pergunta a se fazer é: para o que serve, então, o poder ou a ideologia, quando não importa matar ou morrer? ...