A
vida não é de papel
Por
Alessandra Leles Rocha
Artistas e celebridades são o que
são, em termos de fama e notoriedade, a expressão do que lhes é atribuído por
fãs e seguidores. Entretanto, além das alegorias e adereços que fazem luzir a
sua visibilidade, está, ainda que só em vestígios para alguns, um ser de carne
e osso, com o seu “combo” de defeitos, qualidades, bizarrices e encantamentos.
De modo que essa criatura, merece
sim, a garantia de exercer o seu direito de escolha no cotidiano da vida. Só
não se pode esquecer de que escolhas precisam ser bem medidas e pesadas,
amparadas por fundamentos consistentes, a fim de que o peso de eventuais
contestações públicas não venha fazer sucumbir à própria escolha.
Infelizmente, a contemporaneidade
ultrapassou o seu status de recorte temporal, para transformar-se em uma arena
de polarizações ideológicas brutas e irracionais. Os argumentos parecem ter se
reduzido a somente duas palavras “contra e “a favor”. Nada mais. E a partir
delas a ruptura parcial ou total de uns com os outros. Sem convivência. Sem coexistência.
Sem diálogo. Esse movimento, dentro desses moldes, é o que mantém acesa,
constantemente, a chama do acirramento entre os polos.
Acontece que isso vai impedindo
as pessoas de perceberem que nem tudo tem dois lados para se posicionar. A vida,
por exemplo. Ela é um direito igualitário e inalienável; pelo menos, é o que
dizem as leis, códigos, declarações e doutrinas jurídicas. No entanto, pela
lente polarizada do mundo fica cada vez mais claro como a vida tem sido
relativizada e seletivizada, nas balanças do SER e do TER.
Lamentavelmente, ela vem perdendo
em si mesma a importância fundamental da existência humana, para ceder aos caprichos
dos interesses vulgares e mesquinhos do materialismo capital. Já não faz mais
nenhuma diferença se um país perde 2, 200, 2000 ou meio milhão de cidadãos para
uma doença inesperada, porque há pessoas preocupadas em defender outras prioridades,
legislando em causas próprias.
Aliás, elas nem se preocupam em
questionar como se alcançou tal estatística dramática. Simplesmente, elas
fizeram uma dissociação completa entre a Pandemia e o cotidiano. Não se vê, por
parte dessas pessoas, qualquer preocupação ou constrangimento que motive questionar
as razões pelas quais o país permitiu a falta de insumos e equipamentos,
contribuindo diretamente para o colapso do atendimento médico-hospitalar em
diversas cidades brasileiras, porque demorou-se tanto na aquisição de vacinas e,
agora, persiste a passos lentos a vacinação, ...
Do mesmo modo que parecem viver à
margem de todas as demais mazelas crônicas, as quais ferem e matam milhares de
brasileiros todos os dias. Miséria. Desemprego. Falta de moradia. Inacessibilidade
aos serviços básicos de saúde. Violências. Inflação. ... Porque essas pessoas
optaram por não questionar as raízes desses problemas, satisfazendo-se com os
discursos e narrativas que culpam e responsabilizam as camadas mais vulneráveis
e desprotegidas da população por seus próprios infortúnios. Como dizia Martin
Luther King Jr., “Nunca se esqueça de que
tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal”, porque “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça em todo lugar”.
Por isso é preciso entender que
artistas e celebridades, quando exercem a sua liberdade de expressão cidadã,
estão visibilizando crenças e valores profundos existentes em sua alma. Naquelas
palavras e gestos está sendo desnuda suas convicções a respeito de assuntos que
vão muito além das banalidades e das fofocas.
Ali, naquele instante, é possível,
inclusive, aferir o nível de apreço, de respeito, de empatia e de solidariedade
que eles dispõem para com seus fãs. Afinal de contas, nem todo fã nasceu em
berço de ouro, com a vida ganha, com influência e notoriedade compatível ao seu
ídolo. Muito pelo contrário, esse é um país que tem 94% da sua população distribuída
entre a classe média tradicional e a classe baixa.
Essas questões fazem refletir
sobre o que disse Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, a respeito da contemporaneidade;
“Esquecemos o amor, a amizade, os
sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome, o que se compra, são
apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos”.
Portanto, “nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as
coisas que importam” (Martin Luther King Jr.). A questão é que se ela
acaba, acaba para mim, para você, para qualquer um. Como acabam, também, a
fama, o sucesso, os aplausos, a histeria, a notoriedade, a influência, o poder,
... tudo aquilo que o dinheiro faz parecer comprável. No fim das contas, não se
preocupar com os outros é só um jeito torto de não se preocupar consigo mesmo,
seja em que circunstância for.