sábado, 14 de agosto de 2021

A vida não é de papel


A vida não é de papel

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Artistas e celebridades são o que são, em termos de fama e notoriedade, a expressão do que lhes é atribuído por fãs e seguidores. Entretanto, além das alegorias e adereços que fazem luzir a sua visibilidade, está, ainda que só em vestígios para alguns, um ser de carne e osso, com o seu “combo” de defeitos, qualidades, bizarrices e encantamentos.

De modo que essa criatura, merece sim, a garantia de exercer o seu direito de escolha no cotidiano da vida. Só não se pode esquecer de que escolhas precisam ser bem medidas e pesadas, amparadas por fundamentos consistentes, a fim de que o peso de eventuais contestações públicas não venha fazer sucumbir à própria escolha.

Infelizmente, a contemporaneidade ultrapassou o seu status de recorte temporal, para transformar-se em uma arena de polarizações ideológicas brutas e irracionais. Os argumentos parecem ter se reduzido a somente duas palavras “contra e “a favor”. Nada mais. E a partir delas a ruptura parcial ou total de uns com os outros. Sem convivência. Sem coexistência. Sem diálogo. Esse movimento, dentro desses moldes, é o que mantém acesa, constantemente, a chama do acirramento entre os polos.  

Acontece que isso vai impedindo as pessoas de perceberem que nem tudo tem dois lados para se posicionar. A vida, por exemplo. Ela é um direito igualitário e inalienável; pelo menos, é o que dizem as leis, códigos, declarações e doutrinas jurídicas. No entanto, pela lente polarizada do mundo fica cada vez mais claro como a vida tem sido relativizada e seletivizada, nas balanças do SER e do TER.

Lamentavelmente, ela vem perdendo em si mesma a importância fundamental da existência humana, para ceder aos caprichos dos interesses vulgares e mesquinhos do materialismo capital. Já não faz mais nenhuma diferença se um país perde 2, 200, 2000 ou meio milhão de cidadãos para uma doença inesperada, porque há pessoas preocupadas em defender outras prioridades, legislando em causas próprias.

Aliás, elas nem se preocupam em questionar como se alcançou tal estatística dramática. Simplesmente, elas fizeram uma dissociação completa entre a Pandemia e o cotidiano. Não se vê, por parte dessas pessoas, qualquer preocupação ou constrangimento que motive questionar as razões pelas quais o país permitiu a falta de insumos e equipamentos, contribuindo diretamente para o colapso do atendimento médico-hospitalar em diversas cidades brasileiras, porque demorou-se tanto na aquisição de vacinas e, agora, persiste a passos lentos a vacinação, ...

Do mesmo modo que parecem viver à margem de todas as demais mazelas crônicas, as quais ferem e matam milhares de brasileiros todos os dias. Miséria. Desemprego. Falta de moradia. Inacessibilidade aos serviços básicos de saúde. Violências. Inflação. ... Porque essas pessoas optaram por não questionar as raízes desses problemas, satisfazendo-se com os discursos e narrativas que culpam e responsabilizam as camadas mais vulneráveis e desprotegidas da população por seus próprios infortúnios. Como dizia Martin Luther King Jr., “Nunca se esqueça de que tudo o que Hitler fez na Alemanha era legal”, porque “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça em todo lugar”.

Por isso é preciso entender que artistas e celebridades, quando exercem a sua liberdade de expressão cidadã, estão visibilizando crenças e valores profundos existentes em sua alma. Naquelas palavras e gestos está sendo desnuda suas convicções a respeito de assuntos que vão muito além das banalidades e das fofocas.

Ali, naquele instante, é possível, inclusive, aferir o nível de apreço, de respeito, de empatia e de solidariedade que eles dispõem para com seus fãs. Afinal de contas, nem todo fã nasceu em berço de ouro, com a vida ganha, com influência e notoriedade compatível ao seu ídolo. Muito pelo contrário, esse é um país que tem 94% da sua população distribuída entre a classe média tradicional e a classe baixa.

Essas questões fazem refletir sobre o que disse Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, a respeito da contemporaneidade; “Esquecemos o amor, a amizade, os sentimentos, o trabalho bem feito. O que se consome, o que se compra, são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos”.

Portanto, “nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam” (Martin Luther King Jr.). A questão é que se ela acaba, acaba para mim, para você, para qualquer um. Como acabam, também, a fama, o sucesso, os aplausos, a histeria, a notoriedade, a influência, o poder, ... tudo aquilo que o dinheiro faz parecer comprável. No fim das contas, não se preocupar com os outros é só um jeito torto de não se preocupar consigo mesmo, seja em que circunstância for.


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