sábado, 18 de janeiro de 2025

MUROS


MUROS

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parte da historicidade humana, os muros se constituíram como um sistema de defesa territorial; mas, sobretudo, de declaração de poder. Durante algum tempo, pode-se dizer que a estratégia funcionou; embora, não tenha sido 100% eficiente, dada a quantidade de ações beligerantes ao redor do planeta.

E a comprovação persiste em plena contemporaneidade. Muros não intimidam mais! Não sei se um reflexo da flexibilidade trazida pela organização social proposta pelo mundo virtual; mas, fato é, que os muros não são mais intransponíveis. Criminosos fogem dos presídios pulando os muros. Assaltantes invadem as casas transpondo altas muralhas. Migrantes desafiam os muros para ingressar em um outro país. Enfim...

Contudo, o que não parece ter mudado em relação a eles é que permanecem como símbolos do exercício de poder territorial. Trata-se de um mecanismo de reafirmação da autoridade e da propriedade de alguém sobre aquele espaço geográfico.

Portanto, quem ultrapassa aquele limite está sujeito às regras e à dominação do outro, o que abre precedente para que o poder determine uma seletivização dos indivíduos. Estar do lado de dentro do muro ou do lado de fora define, então, uma ordem de pertencimento social. Mas, não para por aí. Ela fomenta as tensões.

Por mais que o poder pareça uma condição inabalável, não é. Qualquer lugar em que existam expressões de segregação social, ali existem focos de inquietude e apreensão. As aparências podem até enganar; mas, a verdade factual é bem outra. Afinal, nenhum ser humano gosta de ser preterido, de ser considerado desimportante, de não ser aceito, de não pertencer.

Mas, o ponto nevrálgico nessa reflexão deveria se concentrar nas razões que levam os seres humanos a construírem muralhas. Dizer que é por segurança, não responde tudo. Se há a necessidade de sentirem-se seguros é porque algo lhes traz fragilidade, vulnerabilidade.

De modo que a construção dos muros é sim, uma forma de postergar o confronto direto com as escolhas e as decisões relacionadas à reafirmação das desigualdades; sobretudo, a mobilidade social.

Sem a pretensão de resolver ou de mitigar as mazelas crônicas que afetam as camadas menos favorecidas da pirâmide social, criam-se muros para invisibilizá-las e mantê-las distantes da convivência com os privilegiados.

O seu trânsito se torna restrito ao exercício laboral; pois, esse é necessário à manutenção do enriquecimento do topo da pirâmide. No mais, elas são impedidas de permanecer do lado de dentro do muro.    

Entretanto, quando os menos favorecidos insistem em permanecer, diante do desconforto ou de transtornos da ordem social, segundo análise dos mais privilegiados, eles são confinados por muros dentro do muro. Espaços extremamente monitorados e controlados. Como corpos estranhos que são encapsulados pelo organismo a fim de não causarem danos ou prejuízos.

Acontece que nada disso muda os fatos. Esses indivíduos não deixam de existir. Nem tampouco, as desigualdades que os afetam.  De modo que os muros acabam se tornando uma maneira de tentar ocultar a própria desumanidade que há em certos indivíduos.

Uma desumanidade que se traduz pela incapacidade de existir e coexistir coletivamente, de disposição para superar e resolver os problemas, de desconstruir os velhos e rotos paradigmas de poder.

Por essas e por outras, que os muros, na sua materialidade, perderam cada vez mais o seu sentido de existir. Porque, no fundo, eles não escondem nada, não limitam nada, não resolvem nada. A sua simbologia traduz uma expressão da falência civilizatória.

Segundo Yuval Noah Harari, “Quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos na verdade correndo para o pátio de uma prisão maior”.

Então, a sociedade contemporânea desenvolveu seus muros metafóricos, a partir do mundo virtual. Essa nova concepção de realidade não deixa de ser uma grande muralha para aprisionar, vigiar e punir quem não está alinhado aos interesses e às idealizações das classes que detêm o poder.

Pelos algoritmos que regem as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), é possível saber quem são, o que pensam, o que querem, o que gostam, o que fazem, ... os seres humanos, e assim, poder confiná-los em grupos por afinidade, mensurando eventuais riscos e ameaças.  

Portanto, ainda que muitos não tenham se dado conta, estamos diante de uma muralha sem limites, que desconstrói absolutamente o pseudoideário de liberdade, apregoado pela contemporaneidade. A verdade é que estamos todos presos entre muros.