MUROS
Por
Alessandra Leles Rocha
Parte da historicidade humana, os
muros se constituíram como um sistema de defesa territorial; mas, sobretudo, de
declaração de poder. Durante algum tempo, pode-se dizer que a estratégia funcionou;
embora, não tenha sido 100% eficiente, dada a quantidade de ações beligerantes
ao redor do planeta.
E a comprovação persiste em plena
contemporaneidade. Muros não intimidam mais! Não sei se um reflexo da flexibilidade
trazida pela organização social proposta pelo mundo virtual; mas, fato é, que os
muros não são mais intransponíveis. Criminosos fogem dos presídios pulando os
muros. Assaltantes invadem as casas transpondo altas muralhas. Migrantes desafiam
os muros para ingressar em um outro país. Enfim...
Contudo, o que não parece ter
mudado em relação a eles é que permanecem como símbolos do exercício de poder
territorial. Trata-se de um mecanismo de reafirmação da autoridade e da
propriedade de alguém sobre aquele espaço geográfico.
Portanto, quem ultrapassa aquele
limite está sujeito às regras e à dominação do outro, o que abre precedente para
que o poder determine uma seletivização dos indivíduos. Estar do lado de dentro
do muro ou do lado de fora define, então, uma ordem de pertencimento social. Mas,
não para por aí. Ela fomenta as tensões.
Por mais que o poder pareça uma condição
inabalável, não é. Qualquer lugar em que existam expressões de segregação
social, ali existem focos de inquietude e apreensão. As aparências podem até
enganar; mas, a verdade factual é bem outra. Afinal, nenhum ser humano gosta de
ser preterido, de ser considerado desimportante, de não ser aceito, de não
pertencer.
Mas, o ponto nevrálgico nessa
reflexão deveria se concentrar nas razões que levam os seres humanos a construírem
muralhas. Dizer que é por segurança, não responde tudo. Se há a necessidade de
sentirem-se seguros é porque algo lhes traz fragilidade, vulnerabilidade.
De modo que a construção dos
muros é sim, uma forma de postergar o confronto direto com as escolhas e as
decisões relacionadas à reafirmação das desigualdades; sobretudo, a mobilidade
social.
Sem a pretensão de resolver ou de
mitigar as mazelas crônicas que afetam as camadas menos favorecidas da pirâmide
social, criam-se muros para invisibilizá-las e mantê-las distantes da convivência
com os privilegiados.
O seu trânsito se torna restrito
ao exercício laboral; pois, esse é necessário à manutenção do enriquecimento do
topo da pirâmide. No mais, elas são impedidas de permanecer do lado de dentro
do muro.
Entretanto, quando os menos
favorecidos insistem em permanecer, diante do desconforto ou de transtornos da
ordem social, segundo análise dos mais privilegiados, eles são confinados por
muros dentro do muro. Espaços extremamente monitorados e controlados. Como corpos
estranhos que são encapsulados pelo organismo a fim de não causarem danos ou prejuízos.
Acontece que nada disso muda os
fatos. Esses indivíduos não deixam de existir. Nem tampouco, as desigualdades
que os afetam. De modo que os muros
acabam se tornando uma maneira de tentar ocultar a própria desumanidade que há
em certos indivíduos.
Uma desumanidade que se traduz
pela incapacidade de existir e coexistir coletivamente, de disposição para
superar e resolver os problemas, de desconstruir os velhos e rotos paradigmas de
poder.
Por essas e por outras, que os muros,
na sua materialidade, perderam cada vez mais o seu sentido de existir. Porque,
no fundo, eles não escondem nada, não limitam nada, não resolvem nada. A sua
simbologia traduz uma expressão da falência civilizatória.
Segundo Yuval Noah Harari, “Quando
derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos na
verdade correndo para o pátio de uma prisão maior”.
Então, a sociedade contemporânea
desenvolveu seus muros metafóricos, a partir do mundo virtual. Essa nova
concepção de realidade não deixa de ser uma grande muralha para aprisionar, vigiar
e punir quem não está alinhado aos interesses e às idealizações das classes que
detêm o poder.
Pelos algoritmos que regem as Tecnologias
da Informação e da Comunicação (TICs), é possível saber quem são, o que pensam,
o que querem, o que gostam, o que fazem, ... os seres humanos, e assim, poder confiná-los
em grupos por afinidade, mensurando eventuais riscos e ameaças.
Portanto, ainda que muitos não tenham se dado conta, estamos diante de uma muralha sem limites, que desconstrói absolutamente o pseudoideário de liberdade, apregoado pela contemporaneidade. A verdade é que estamos todos presos entre muros.