terça-feira, 17 de agosto de 2021

A História explica a história


A História explica a história

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De repente, começo a entender porque a história teima em se repetir. Fios soltos de outras histórias tendem a se enovelar e reconectar antigas ideias. É exatamente isso o que está acontecendo no Afeganistão. Daí a necessidade de olhar para trás, de tentar encontrar os fios dessa meada complexa e divergente.

E para começar essa empreitada, o primeiro ponto de reflexão é abdicar de olhar os fatos pelo prisma exclusivista ocidental. Do mesmo modo que eles possam parecer estranhos, diferentes e esquisitos para nós, a recíproca é totalmente verdadeira. O que impõe a necessidade de se romper com certos paradigmas tais como, certo e errado, bom e mau, porque isso significa desconsiderar e cancelar as raízes socioculturais que tecem a identidade de cada nação.

Dentro dessa análise, é bom, também, não esquecer de que os muçulmanos representam quase ¼ da população mundial, segundo dados de 2010 1. O que não significa torná-los uma massa homogênea de pessoas que professam o islamismo da mesma maneira, sob os mesmos parâmetros socioculturais. Contrariando as expectativas, de que eles estejam concentrados no norte da África ou no Oriente Médio, 62% desse 1,6 bilhão de pessoas vive na região da Ásia-Pacífico.

E por que destacar essas diferenças e especificidades socioculturais é tão importante? Bem, embora elas sejam, no fundo, o grande fiel da balança na geopolítica mundial, quase nunca são levadas em consideração. Esse é um problema histórico, que remonta dos tempos do Colonialismo, passando pelo Neocolonialismo, até alcançar a contemporaneidade, quando as discussões Pós-Coloniais vieram buscar compreender melhor os processos de colonização, a partir de uma perspectiva global.

Pois é, as colonizações tiveram como fundamentação teórica principal a narrativa evolucionista eurocêntrica, ou seja, os países da Europa Ocidental seriam culturalmente mais evoluídos e, portanto, portadores de uma ideia de civilização a ser exportada do “centro” para a “periferia” do mundo. O resultado, ainda, possível de percepção está na marginalização dos “não europeus” sob diferentes formas e conteúdos.  

Algo que não foi rompido durante o Neocolonialismo, emergido depois da Segunda Guerra Mundial e bastante visibilizado pela Guerra Fria. Mas, dentro desse novo contexto, a ideia civilizadora, então, foi acrescida de novos patamares de alianças econômicas e político militares. Sob as asas das duas maiores potências mundiais, EUA e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os demais países se curvaram em nome de uma barganha de interesses, os quais resultasse, principalmente, na proteção e segurança de seus territórios. Ora, o mundo já conhecia o poder das bombas atômicas!

Acontece que, tanto no Colonialismo quanto no Neocolonialismo, a subserviência dos países se torna tão acirrada que eles, de repente, abdicam da sua autonomia e proatividade, porque acreditam na existência de uma “retaguarda” oferecida por seus dominadores.

Então, não precisam despender nenhum tipo de esforço para conduzir o cotidiano e as eventualidades; pois, há quem pense, quem resolva, quem faça, quem pague, ... enfim. Em contrapartida, para os dominadores isso é perfeito; afinal, os dominados não criam problemas ou resistências na hora de atender aos seus interesses, porque existe uma dívida de “gratidão diplomática”.  

Em tese, tudo certo; mas, na prática não. Por mais que os processos colonialistas e neocolonialistas tenham exercido uma forte “aculturação”, com consequente, desconstrução identitária, nos países dominados, em muitos casos o resultado frustrou. É o caso, por exemplo, dos países muçulmanos, cuja espinha dorsal da sua identidade e da sua organização sociopolítica é representada pela religião islâmica, codificada pelo livro sagrado do Alcorão.  Portanto, desconsiderar a força do islã dentro de uma sociedade muçulmana pode sim, ser considerado um erro crasso.

De certa forma, foi o que aconteceu com os EUA no Afeganistão. A aliança que buscava manter outros grupos radicais islâmicos fora do território afegão, tais como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), para que não pudessem organizar suas células e atividades terroristas, representou, em síntese, uma “troca de segurança por segurança”.

Porque, enquanto os EUA tentavam capturar o líder da Al-Qaeda, supostamente em território afegão, e evitar novos “dias de terror”, como havia sido o 11 de Setembro, a contrapartida foi armar e treinar o exército local contra as investidas do Talibã, que havia controlado o país entre 1996 e 2001.

No entanto, armar e treinar o exército afegão para conter os focos de violência e terrorismo não resumia a questão; pois, o Talibã continuava dentro do país e dominava algumas regiões, porque nem todos os cidadãos eram contrários a eles.

Ao que parece, nesses 20 anos de presença do exército de coalizão dos EUA, a população não foi convidada a dialogar com o governo e, nem tampouco, com as forças de segurança, para saber o que ela esperava daquela situação instituída e quais eram as demandas sociais que gostaria de ver resolvidas. Afinal, estamos falando não só de um dos países mais pobres do mundo; mas, franco transgressor dos direitos humanos, tanto pela violência terrorista quanto pela disseminação de refugiados.

O país permaneceu, então, como “brasa encoberta por cinzas”. Sem diálogo com todos os atores envolvidos no processo; mas, com todos os problemas seculares vigorando. Agora, mais uma parcela desse ônus de décadas de equívocos e distorções será cobrado.

Só os afegãos sabem mensurar o peso exercido pela fé islâmica na tomada de decisões, porque religião, política e sociedade não se dissociam para eles, como acontece no mundo ocidental. E, por mais que muitos tenham sido “ocidentalizados”, durante essas duas últimas décadas, outros permanecem firmes nas tradições de suas convicções.

Então, por mais que pareça difícil, impossível, a verdade nessa história toda é que a solução desse imbróglio depende do protagonismo dos próprios afegãos. Dizia Confúcio, que “de nada vale tentar ajudar aqueles que não se ajudam a si mesmos”, simplesmente, porque “somos responsáveis por aquilo que fazemos, pelo que não fazemos, e por aquilo que impedimos fazer” (textos cristãos).

Essa é uma história que está longe de chegar ao fim, na medida em que muito se precisa depurar sobre presenças e influências humanas. Afinal, são elas as responsáveis por balizar nossa compreensão sobre o fato de que “o importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós” (Jean-Paul Sartre – filósofo francês). E isso é algo que vai muito além de raça, credo, gênero, status, profissão ou geografia.

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