A
História explica a história
Por
Alessandra Leles Rocha
De repente, começo a entender
porque a história teima em se repetir. Fios soltos de outras histórias tendem a
se enovelar e reconectar antigas ideias. É exatamente isso o que está acontecendo
no Afeganistão. Daí a necessidade de olhar para trás, de tentar encontrar os
fios dessa meada complexa e divergente.
E para começar essa empreitada, o
primeiro ponto de reflexão é abdicar de olhar os fatos pelo prisma exclusivista
ocidental. Do mesmo modo que eles possam parecer estranhos, diferentes e
esquisitos para nós, a recíproca é totalmente verdadeira. O que impõe a
necessidade de se romper com certos paradigmas tais como, certo e errado, bom e
mau, porque isso significa desconsiderar e cancelar as raízes socioculturais
que tecem a identidade de cada nação.
Dentro dessa análise, é bom, também,
não esquecer de que os muçulmanos representam quase ¼ da população mundial,
segundo dados de 2010 1. O que
não significa torná-los uma massa homogênea de pessoas que professam o
islamismo da mesma maneira, sob os mesmos parâmetros socioculturais. Contrariando
as expectativas, de que eles estejam concentrados no norte da África ou no
Oriente Médio, 62% desse 1,6 bilhão de pessoas vive na região da Ásia-Pacífico.
E por que destacar essas diferenças
e especificidades socioculturais é tão importante? Bem, embora elas sejam, no
fundo, o grande fiel da balança na geopolítica mundial, quase nunca são levadas
em consideração. Esse é um problema histórico, que remonta dos tempos do
Colonialismo, passando pelo Neocolonialismo, até alcançar a contemporaneidade, quando
as discussões Pós-Coloniais vieram buscar compreender melhor os processos de
colonização, a partir de uma perspectiva global.
Pois é, as colonizações tiveram
como fundamentação teórica principal a narrativa evolucionista eurocêntrica, ou
seja, os países da Europa Ocidental seriam culturalmente mais evoluídos e,
portanto, portadores de uma ideia de civilização a ser exportada do “centro” para a “periferia” do mundo. O resultado, ainda, possível de percepção
está na marginalização dos “não europeus”
sob diferentes formas e conteúdos.
Algo que não foi rompido durante
o Neocolonialismo, emergido depois da Segunda Guerra Mundial e bastante
visibilizado pela Guerra Fria. Mas, dentro desse novo contexto, a ideia
civilizadora, então, foi acrescida de novos patamares de alianças econômicas e político
militares. Sob as asas das duas maiores potências mundiais, EUA e União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os demais países se curvaram em nome
de uma barganha de interesses, os quais resultasse, principalmente, na proteção
e segurança de seus territórios. Ora, o mundo já conhecia o poder das bombas atômicas!
Acontece que, tanto no
Colonialismo quanto no Neocolonialismo, a subserviência dos países se torna tão
acirrada que eles, de repente, abdicam da sua autonomia e proatividade, porque acreditam
na existência de uma “retaguarda” oferecida
por seus dominadores.
Então, não precisam despender nenhum
tipo de esforço para conduzir o cotidiano e as eventualidades; pois, há quem
pense, quem resolva, quem faça, quem pague, ... enfim. Em contrapartida, para
os dominadores isso é perfeito; afinal, os dominados não criam problemas ou resistências
na hora de atender aos seus interesses, porque existe uma dívida de “gratidão diplomática”.
Em tese, tudo certo; mas, na
prática não. Por mais que os processos colonialistas e neocolonialistas tenham
exercido uma forte “aculturação”, com
consequente, desconstrução identitária, nos países dominados, em muitos casos o
resultado frustrou. É o caso, por exemplo, dos países muçulmanos, cuja espinha
dorsal da sua identidade e da sua organização sociopolítica é representada pela
religião islâmica, codificada pelo livro sagrado do Alcorão. Portanto, desconsiderar a força do islã dentro
de uma sociedade muçulmana pode sim, ser considerado um erro crasso.
De certa forma, foi o que
aconteceu com os EUA no Afeganistão. A aliança que buscava manter outros grupos
radicais islâmicos fora do território afegão, tais como a Al-Qaeda e o Estado
Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), para que não pudessem organizar suas células
e atividades terroristas, representou, em síntese, uma “troca de segurança por segurança”.
Porque, enquanto os EUA tentavam
capturar o líder da Al-Qaeda, supostamente em território afegão, e evitar novos
“dias de terror”, como havia sido o
11 de Setembro, a contrapartida foi armar e treinar o exército local contra as
investidas do Talibã, que havia controlado o país entre 1996 e 2001.
No entanto, armar e treinar o exército
afegão para conter os focos de violência e terrorismo não resumia a questão;
pois, o Talibã continuava dentro do país e dominava algumas regiões, porque nem
todos os cidadãos eram contrários a eles.
Ao que parece, nesses 20 anos de
presença do exército de coalizão dos EUA, a população não foi convidada a
dialogar com o governo e, nem tampouco, com as forças de segurança, para saber
o que ela esperava daquela situação instituída e quais eram as demandas sociais
que gostaria de ver resolvidas. Afinal, estamos falando não só de um dos países
mais pobres do mundo; mas, franco transgressor dos direitos humanos, tanto pela
violência terrorista quanto pela disseminação de refugiados.
O país permaneceu, então, como “brasa encoberta por cinzas”. Sem diálogo
com todos os atores envolvidos no processo; mas, com todos os problemas
seculares vigorando. Agora, mais uma parcela desse ônus de décadas de equívocos
e distorções será cobrado.
Só os afegãos sabem mensurar o
peso exercido pela fé islâmica na tomada de decisões, porque religião, política
e sociedade não se dissociam para eles, como acontece no mundo ocidental. E,
por mais que muitos tenham sido “ocidentalizados”,
durante essas duas últimas décadas, outros permanecem firmes nas tradições de suas
convicções.
Então, por mais que pareça difícil,
impossível, a verdade nessa história toda é que a solução desse imbróglio depende
do protagonismo dos próprios afegãos. Dizia Confúcio, que “de nada vale tentar ajudar aqueles que não se ajudam a si mesmos”,
simplesmente, porque “somos responsáveis
por aquilo que fazemos, pelo que não fazemos, e por aquilo que impedimos fazer”
(textos cristãos).
Essa é uma história que está
longe de chegar ao fim, na medida em que muito se precisa depurar sobre presenças
e influências humanas. Afinal, são elas as responsáveis por balizar nossa
compreensão sobre o fato de que “o
importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que
os outros fizeram de nós” (Jean-Paul Sartre – filósofo francês). E isso é
algo que vai muito além de raça, credo, gênero, status, profissão ou geografia.