terça-feira, 8 de julho de 2025

O mundo e a bola


O mundo e a bola

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não creio que haverá uma análise semelhante a essa, em nenhum espaço de comunicação, a respeito da Copa do Mundo de Clubes da FIFA. Afinal, meu viés não trata necessariamente de futebol; mas, de outros aspectos tão ou mais relevantes para a historicidade brasileira.

Encerrada a primeira partida das semifinais, com a presença de um time brasileiro, apesar do gosto amargo do resultado, nada deve nos impedir de exercitar a reflexão. O destino com toda a sua ironia fina foi implacável! Lançou sobre os ombros de um jovem talento da base do time brasileiro, contratado pelo time adversário por mais de R$ 400 milhões e anunciado há seis dias, foi quem marcou por duas vezes.

Assim, hora de analisar com criticidade os fatos. Há tempos que uma assimetria mercantil, desenvolvida a partir da capacidade capital, principalmente, das equipes europeias, estabeleceu uma linha divisória para o futebol mundial. Afinal de contas, a presença de vultosos recursos amplia as potencialidades de investimento às equipes. Na escala das prioridades, a verdade é que o futebol, enquanto desporto em si, foi parar no fim da fila.

A ideia do escritor uruguaio, Eduardo Galeano, de que “No futebol, a habilidade é muito mais importante do que a forma e, em muitos casos, a habilidade é a arte de transformar limitações em virtudes”, parece ter se perdido no tempo.

Isso não significa que o futebol, enquanto essência, enquanto mágica, enquanto fascinação, deixou de existir ou de se apresentar. No entanto, o que passou a orbitar no mundo do futebol foram as marcas das desigualdades econômicas entre as equipes, por todo o planeta.

A sua mercantilização fez com que se transformasse em bem, em serviço, em mercadoria, sujeito às leis do mercado e à lógica do lucro. O que afetou profundamente as relações sociais e a própria natureza do esporte que antes eram consideradas inalienáveis ou parte do domínio público. Razão pela qual, a robustez das ligas futebolísticas passou a ser determinada pelas cifras de investimento. De modo que as grandes rivalidades se tornaram mensuradas a partir do capital.

Lamento; mas, tal qual o processo do colonialismo, entre os séculos XV e XX, e o imperialismo/ neocolonialismo, entre os séculos XIX e início do XX, o que ocorreu com o futebol foi o mesmo. Jovens promessas foram abruptamente monetizadas e mercantilizadas por seus clubes de origem, reduzidos às diversas formas de produtos e de rentáveis fontes de lucro para as equipes europeias, principalmente.  O que significa que países, como o Brasil, passaram a ser exportadores de jogadores de futebol, para as multimilionárias equipes do planeta.

O que considero algo abominável, considerando que a maioria desses talentos refletem a própria desigualdade estrutural do país, tecida pelos longos anos de colonialismo. O futebol para eles e suas famílias representa a chamada “luz no fim do túnel”, uma perspectiva de mobilidade e resgate da própria dignidade social. Algo que cria no inconsciente coletivo dos jovens meninos e meninas, das camadas mais frágeis e vulneráveis do país, uma expectativa gigantesca em torno de uma possibilidade de jogar futebol no exterior. O pior é que nem todas as histórias acabam tendo um final feliz.

E aí, chegamos à Copa do Mundo de Clubes da FIFA. Não, não há exagero em dizer que esse formato de campeonato é uma exaltação, portanto, aos multimilionários times europeus. Em algum momento, já era de se esperar que os times, notadamente menos competitivos, segundo a famigerada ótica do capital, ficariam pelo caminho. E não deu outra, chegarão à grande final dois grandes figurões da bola, no cenário contemporâneo.

No caso brasileiro, que conseguiu a façanha de ter uma equipe disputando uma das semifinais, não há o que contestar, cumpriu seu papel com brio. Além disso, despede-se embolsando uma cifra considerável pela participação. Entretanto, de volta à realidade do mundo, é preciso admitir que essa premiação e o que dela possa desencadear, em termos de visibilidade internacional, de valorização da marca e de outros aspectos, não muda esse modelo colonialista que vigora no futebol mundial.

Segundo a expressão do século XIX, "Tudo como dantes no quartel de Abrantes". Sim, apesar de todo o futebol que nasce amiúde nos campos de várzea, nos chãos de terra batida, em cada rincão nacional, a dinâmica do futebol brasileiro permanecerá imprimindo a marca de talentos tipo exportação. Aliás, como se faz, há pouco mais de 500 anos, com toda a matéria-prima explorada por aqui.

Segundo Jean-Paul Sartre, filósofo francês, "Toda palavra tem consequências, todo silêncio, também". Essa é uma citação que diz muito nesse contexto. Abster-se de olhar e de enfrentar as heranças do nosso colonialismo, seja de que forma ele se apresente diante de nós, não só faz perpetuar e aprofundar a dimensão dos nossos prejuízos sociais, culturais e econômicos, como abre precedentes perigosíssimos para afrontas diversas à nossa cidadania e à nossa soberania.  

Assim, que a decepção pela derrota, de hoje, permita aos brasileiros de todas as flâmulas futebolísticas refletir a respeito de que “Podemos maquiar algumas respostas ou podemos silenciar sobre o que não queremos que venha à tona. Inútil. A soma dos nossos dias assinará este inventário. Fará um levantamento honesto. Cazuza já nos cutucava: suas ideias correspondem aos fatos? De novo: o que a gente diz é apenas o que a gente diz. Lá no finalzinho, a vida que construímos é que se revelará o mais eficiente detector de nossas mentiras” (Martha Medeiros - jornalista e escritora brasileira).