sábado, 3 de junho de 2023

Já descobriu o seu lugar na fila do pão?


Já descobriu o seu lugar na fila do pão?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Como muitos devem saber, em 5 de junho de 1972, durante a Conferência realizada em Estocolmo, Suécia, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a referida data como Dia Mundial do Meio Ambiente. O que de certa forma mudou as relações institucionais sobre o tema e acabou por desencadear um dos mais importantes documentos técnico-científicos, o Relatório Brundtland -  Nosso Futuro Comum.

Mas, não é essencialmente sobre esses aspectos que pretendo falar, tendo em vista que sobre a Conferência, ou o papel da ONU, ou do próprio relatório, a internet está repleta de informações. A minha ideia aqui é promover uma autorreflexão sobre a perspectiva humana quanto à sua relação com o planeta; sobretudo, no contexto da contemporaneidade, em que a sociedade de consumo adquire cada vez mais um perfil selvagem.

Precisamos pensar que muito desse comportamento abusivo parte de uma imensa normalização da realidade urbanizada. Segundo a própria ONU-Habitat, a população mundial será 68% urbana até 2050 1 e essa não é uma informação banal. Simplesmente, porque a existência do espaço urbano implica necessariamente no uso e ocupação do ambiente geográfico natural para atender às diversas demandas sociais. De modo que cada interferência urbanística representa uma perda do meio ambiente em seu estado padrão.

O que significa que para operacionalizar a urbanização, um movimento de organização da geografia humana, são estabelecidos muitos outros que afetam não só a geografia física – relevo, clima e vegetação; mas, também, a biologia, considerando principalmente os aspectos da fauna que acaba sendo suplantada por extinções precoces, por desequilíbrios nas teias alimentares, por deslocamentos forçados, pela monetização predatória de certas espécies.   

Mas, antes de pensar em culpabilizar a urbanização sobre isso, devo esclarecer que ela não responde sozinha por tais fenômenos. As áreas rurais e periurbanas, dentro do contexto contemporâneo, também são atravessadas e impactadas por esses movimentos. Em muitos casos, inclusive, parte desse tipo de Antropização a aceleração dos riscos quanto ao ponto de não retorno ambiental, ou seja, da irreversibilidade de reorganização do sistema natural.

Afinal, essas áreas se tornam totalmente expostas e vulnerabilizadas pela ação antrópica, o que reflete em prejuízos inestimáveis aos domínios morfoclimáticos, os quais dizem respeito as grandes regiões delimitadas a partir de elementos comuns – clima, vegetação, solo, relevo e hidrografia -  que formam vastas extensões de paisagens homogêneas. No Brasil, por exemplo, temos os seguintes domínios: Amazônico, da Caatinga, do Cerrado, dos Mares de Morros, das Araucárias e das Pradarias.

Em linhas gerais, os espaços urbanizados e os não urbanizados, então, tendem a ser impactados severamente pelos mesmos problemas. Alta concentração e diversidade de resíduos sólidos e de efluentes. Presença de altas concentrações de agrotóxicos. Escassez hídrica. Desflorestamento. Queimadas. Aumento de vetores de doenças. Eventos extremos do clima. Porque eles foram colocados a serviço dos interesses humanos, sem quaisquer cuidados ou planejamentos.

De repente, a realidade contemporânea impôs uma verdade indigesta. A velha discussão em torno dos recursos naturais renováveis e dos não renováveis não era mais o suficiente. Diante não só de um crescimento populacional significativo, mas de um envelhecimento social importante, as discussões precisavam se ampliar e se aprofundar para dar conta dos novos cenários e expectativas; posto que, a Terra é o único abrigo que temos no momento.  

Isso significa que eventuais abandonos e negligências em relação ao planeta não dizem respeito apenas ao Meio Ambiente ou à sua população. Todas as discussões que atravessam o campo socioambiental impactam diretamente à Economia, à Educação, à Saúde, à Previdência Social, ao Trabalho, ao lazer, à Segurança, à Maternidade e à Infância, à assistência aos desamparados. Haja vista, por exemplo, os recentes episódios de enchentes e deslizamentos que assolaram o litoral norte de São Paulo, em fevereiro deste ano, e que deixaram milhares de cidadãos em situação de perda total da sua dignidade social.

O cerne da questão é que em nome do TER estamos totalmente esquecidos do SER, do qual somos parte integrante e integrada. Não estamos desajustados apenas das relações humanas; mas, da relação com o próprio planeta. E como em qualquer negação de caráter científico, esse é um tipo de decisão que nos coloca em iminência total de risco, porque nos permitimos impor ao meio ambiente que ele se submeta aos nossos delírios, especialmente os de consumo, sem quaisquer objeções ou contestações. E não é assim, que a coisa funciona!

E a humanidade não percebe que quanto mais estica a corda, mais desdobramentos e reverberações negativas passam a demandar medidas urgentes e investimentos de grande envergadura, a fim de se evitar algo pior. Sim, gastamos mais em paliativos e pseudorrecuperações do que seria preciso para a prevenção, para a manutenção, para a preservação. Acontece que somos nós que pagamos essa conta. Eu, você, ele, ela, ... os 8 bilhões de seres humanos, que estão com seus pés fincados nessa diminuta esfera azul que gira no espaço sideral.

Entenda, não é a Terra que está lhe pedindo alguma coisa! É o silêncio da sua própria sobrevivência, seu instinto de preservação, que grita pelos labirintos da sua subjetividade existencial, tentando demover você dos seus excessos sem sentido, da sua ganância desmedida, da sua irresponsabilidade gratuita, da sua indiferença humanitária. Certamente, sem muito sucesso; posto que, o individualismo e o narcisismo contemporâneo têm usado de artifícios demasiadamente sofisticados para entorpecer as mentes.

Mas, ela tenta! E vai permanecer tentando até que você saia dessa rota intencional de colisão. Até que você perceba qual é o verdadeiro viés do seu protagonismo no planeta. Até admitir que essa não é uma discussão desse ou daquele cidadão; mas, de qualquer um, cujo cérebro e o coração estejam em funcionamento. As questões socioambientais marcam, portanto, o tênue limite entre a vida e a morte. Basta, então, uma breve recapitulação histórica para se descobrir que o planeta sobrevive sem gente; mas, gente não sobrevive sem o planeta. Aí você descobre, pela mais elementar inversão de perspectiva, qual é o seu verdadeiro tamanho no mundo, qual é o seu lugar na fila do pão.