sexta-feira, 2 de junho de 2023

Em nome do desenvolvimento e do progresso...


Em nome do desenvolvimento e do progresso...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Admito que os últimos dias foram profundamente penosos, do ponto de vista reflexivo. A pequena amostra que representa o Brasil na contemporaneidade é sim, estarrecedora sob diversos aspectos. Mas, um ponto em questão sobressaiu às minhas análises, ou talvez, tenha me impactado de uma maneira mais potente, que é a concepção de desenvolvimento.

Não sei se por razões históricas de um colonialismo altamente exploratório; mas, os (as) brasileiros (as) enchem a boca para falar sobre desenvolvimento e progresso, como se isso lhes fizessem melhores ou mais importantes do que os outros, dada a imediata associação que fazem desses termos ao enriquecimento capital, tornando-os praticamente sinônimos.

E não bastasse esse terrível engano semântico, essas pessoas ainda se permitem subtrair sumariamente a relação natural que existe entre o desenvolvimento e a desigualdade, como se não materializassem duas variáveis inversamente proporcionais dentro das conjunturas sociais. O que fazem é deslocar o desenvolvimento para um campo imaginário, perfeito e ideal, enquanto a desigualdade é aprisionada na invisibilidade por se tratar da expressão máxima do fracasso e do infortúnio humano.

De modo que, de equívocos em equívocos, o inconsciente coletivo vai sendo entorpecido e maculado na sua capacidade crítico-reflexiva, a tal ponto de interferir no exercício da sua própria cidadania. Em certos lugares mais, como é o caso do Brasil, em outros menos, face ao contexto sócio-histórico modelador da estrutura identitária do país. Mas, de maneira quase linear, o que se presencia na contemporaneidade é cada vez mais uma aceitação do engano, a fim de causar menos sofrimento, menos desconforto, já que a iniciativa de ruptura paradigmática sempre traz uma sensação traumática e difícil de ser colocada em prática.

Entretanto, depois de ler o artigo “Os ossos que revelam a brutalidade do trabalho infantil na Revolução Industrial britânica” 1 decidi trazer à tona, mais uma vez, a questão. Afinal, aos que acompanham as minhas reflexões há algum tempo, sabem o quanto as temáticas da Revolução Industrial, das desigualdades socioeconômicas e dos Direitos humanos, me são caras. Talvez, porque desde sempre compreendi que tudo isso era tratado à revelia de uma consciência social efetiva e, por isso, havia uma imensa dose de má fé persuadindo e iludindo cidadãos em todo o mundo.

Então, vamos lá. Não pretendo, aqui, demonizar o desenvolvimento mundial. Partindo da premissa fundamental que ele é fruto da capacidade cognitiva e intelectual dos seres humanos, não haveria como conter o seu processo. Acontece que ele sempre flertou com o tênue limite entre o bem e o mal, a começar pelo fato de que nunca esteve igualmente e equitativamente disponível a todos. Basta consultar os registros históricos da 1ª Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra.

Mais do que um marco da transformação nas relações sociais, políticas e econômicas, a industrialização foi uma iniciativa despertada pelos riscos deflagrados pela Revolução Francesa à Europa. Sim, a tomada do poder pelas parcelas mais vulneráveis e desassistidas da população, mostrou que o controle social era ineficaz no sentido de conter o imobilismo social, colocando em risco os privilégios e as regalias de monarcas e de uma burguesia emergente.

Daí se teve a ideia de aplicar os recursos advindos do Mercantilismo para substituir a produção manufatureira em produção de larga escala e, dessa forma, criar uma mão-de-obra assalariada que, embora trabalhasse sem acesso a direitos e dignidade, moveria as engrenagens da incipiente industrialização, sem tempo e disposição para se organizar em rebeliões e motins. Em um curto espaço de tempo, não só os investimentos das elites seriam diversas vezes multiplicados pela nova organização do capital; mas, a população estaria sob plena vigilância e controle social.

De modo que, passados três séculos e diversas transformações desse modelo desenvolvimentista, o fato é que enquanto as elites permanecem incólumes na sua posição mandatária e enriquecedora, a grande massa da população permanece experenciando as desigualdades socioeconômicas. A sociedade contemporânea de consumo é uma estrutura fragmentada, cujo o acesso a bens, produtos e serviços aponta para uma pirâmide social devidamente estratificada.

Estima-se que no auge na Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, a população mundial era de 1 bilhão de pessoas. Hoje, o mundo possui 8 bilhões. Daí a necessidade de questionar e refletir sobre desenvolvimento e progresso. Temos que nos perguntar de que forma esses termos refletem sobre o empobrecimento, o adoecimento, os trabalhos análogos à escravidão e a deseducação, ao redor do planeta. Porque se o mundo chegou até aqui, da maneira que chegou, é porque em nenhum momento desse processo os seres humanos deixaram, de alguma forma, de ser afetados por condições indignas de trabalho e de sobrevivência.

Isso significa que o desenvolvimento e o progresso não podem ser usados como passaporte de pertencimento, ou de importância social, por todos. Por trás de toda a pompa e circunstância que reveste essas palavras está, portanto, uma verdade bastante indigesta. Quem faz o desenvolvimento e o progresso acontecer, não desfruta dos seus benefícios. Vive de migalhas, de esmolas, de promessas e de uma reprodução alienada em torno de um ideário que não lhes pertence. E por pior que seja essa realidade, o mais terrível é que ela permanece sendo diariamente reproduzida sem quaisquer objeções, ou contestações, inclusive, por pessoas dotadas de formação profunda a respeito.  

Não é de hoje que se vê a perversidade humana fazendo guerras em nome de Deus; mas, não nos esqueçamos de que ela, também, faz em nome do desenvolvimento e do progresso. Como tão bem escreveu Bertolt Brecht, dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX, “Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego. Também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo”. E assim, a lei do desenvolvimento e do progresso deixa a sua marca indelével.