terça-feira, 18 de abril de 2023

LIBERDADE...


LIBERDADE...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei você; mas, quando penso na palavra liberdade, me vem à mente a imagem de uma pluma voando solta pelo vento à revelia das horas. Mas, quanto mais observo e penso sobre o mundo contemporâneo mais percebo que essa perspectiva foge da realidade. Embora clamada e propagada aos quatro cantos, a liberdade que se vive, em pleno século XXI, foi definitivamente castrada na sua essência.

Pois é, milhões de pessoas nem se dão conta do que fez o mundo cibernético para a sua liberdade.  Na contramão da promessa de oferecer mais tempo livre para o ser humano desfrutar da sua vida, sob os mais diferentes contextos, a 4ª Revolução Industrial foi pensada e planejada para que as horas se tornassem a mercadoria mais importante da contemporaneidade.

Portanto, todas as conquistas tecnocientíficas culminaram no aprisionamento das atividades cotidianas em um mundo cujo recorte temporal das 24 horas, que nos habituamos a conviver, não existe. Nele tudo acontece ilimitadamente, fazendo com que as pessoas sejam sobrecarregadas por milhões de informações, diversas formas de entretenimento, conversas intermináveis, enfim.

No entanto, saiba que isso é só a ponta de um imenso iceberg.  No fundo de todo esse frenesi high tech, que trata do como e do quanto a liberdade está sendo perdida pela infinitude do tempo demandado pelas tecnologias, é possível perceber que há algo muito mais grave acontecendo, ou seja, uma homogeneização social.

Na medida em que as tecnologias subtraem o tempo das pessoas, elas acontecem instituindo padrões ideológicos e comportamentais homogeneizantes, que afetam diretamente na individualidade identitária. Como cópias de um carimbo? Sim.

De modo que a sua liberdade de ser e estar no mundo, vem sendo arruinada em um ritmo extremamente veloz. O que significa que as prioridades existenciais dos indivíduos foram se perdendo na escala dessa nova ordem sociocultural instituída.

Cada vez menos tempo para ler, para aprender, para conhecer, para desenvolver o ócio criativo, para tecer as relações afetivas, ... Cada vez menos tempo para o simples e trivial da vida humana, como ela foi concebida antes de se cogitar a chegada do mundo virtual.

Todo esse movimento avassalador está, então, construindo gerações cuja identidade intelectual está se tornando mais rasa, mais superficial. Paira no ar uma exaustão coletiva. Afinal, a busca pela liberdade somada a dominação exercida pelas tecnologias é algo extremamente cansativo.

E isso acaba minando os interesses individuais e, sutilmente, induzindo as pessoas a seguirem o fluxo de uma corrente. Lembra da música: “Pense, fale, compre, beba / Leia, vote, não se esqueça / Use, seja, ouça, diga / Tenha, more, gaste e viva[...]” 1?  

Enquanto as redes sociais disputam de maneira feroz o tempo e os interesses de uma sociedade, cuja liberdade já foi devidamente manipulada e controlada por aqueles que detêm o poder nas mãos, o cansaço social coletivo leva à proliferação do efeito manada.

Quaisquer exigências no campo cognitivo e intelectual contemporâneo apontam para o imediato desinteresse das pessoas. Daí o sucesso de uma escrita concisa a partir de um limite preestabelecido de caracteres, ou a divulgação de vídeos curtos sobre determinados assuntos, ou noticiários que recortam as matérias mais comentadas do dia, ... e até mesmo, as Fake News.

E ainda querem se afirmar livres?! Bem, nesse ritmo de alienação, os libertários contemporâneos vão se rendendo às mais diversas correntes aprisionantes do poder. A ausência ou carência de profundidade dialógica e argumentativa os tornam presas fáceis para se tornarem multiplicadores de ideias, eventualmente nocivas e perigosas, aqui e acolá.

Quando lembro de um tempo em que o debate girava em torno dos riscos de uma educação a partir de apostilas e resumos, chego a achar engraçado; pois, evoluímos para algo muito pior.  Acontece que essa deterioração identitária contemporânea reflete na baixíssima qualidade dos seres humanos, nos mais diferentes aspectos da sua vida social; sobretudo, naquelas situações em que as violências imperam.

O que vimos recentemente em episódios de barbárie dentro de escolas é prova cabal disso. A realidade recortada em pedaços e traduzida como gotas de verdade pelas redes sociais não encontra resistência de nenhuma natureza; portanto, não sofre qualquer escrutínio da população e nem das autoridades competentes.

Dizia a estilista francesa Coco Chanel que “O mais corajoso dos atos ainda é pensar com a própria cabeça”, e ela estava coberta de razão; pois, essa é a única forma de defender e de se apropriar da liberdade.

Não basta dizer que somos livres! Seria preciso que a nossa liberdade, então, nos fizesse cada dia menos adoecidos, frustrados, isolados, humilhados, cancelados, empobrecidos, violentos, ... Mas, diante de tanto cerceamento social desaprendemos a pensar, a sonhar, a amar, a ser, segundo nossas próprias crenças, valores e convicções.

E quanto mais se conduz a vida por essa trivialização, mais a liberdade, em seu sentido literal, morre. Assim como, a nossa identidade, o nosso conhecimento e o nosso tempo. Como escreveu Mia Couto, “Quem confunde céu e água acaba por não distinguir vida e morte” 2.

Daí a necessidade de ver, com toda atenção, com os olhos e a mente bem abertos, a quantidade de pontes que temos propiciado construir para o trânsito corrente do que há de pior na humanidade. Guerras. Fome. Miséria. Racismo. Xenofobia. Misoginia. ...

Talvez, por tudo isso, não falte razões para nos perguntarmos sempre: “De que vale ter voz se só quando não falo é que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei? ” (Mia Couto)3. Porque diante dessa liberdade distorcida, equivocada, deturpada, que está por aí, o ser humano pode, cada vez menos, se dar ao luxo de dizer “[...]Eu sou dono e senhor do meu destino; / Eu sou o comandante de minha alma” (Invictus – William E. Henley) 4.



1 Admirável chip novo (Pitty) - https://www.youtube.com/watch?v=x_I74oWzjIU

2 COUTO, M. A varanda do Frangipani. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. 152p.

3 COUTO, M. O fio das missangas. São Paulo: Cia. das Letras, 2016. 152p.

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