domingo, 20 de fevereiro de 2022

Os ecos das tragédias...


Os ecos das tragédias...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O que está claramente exposto em relação as chuvas torrenciais que vêm impactando diversas regiões brasileiras, desde o fim de 2021, é o fato da inexistência de um planejamento estratégico de enfrentamento. Trata-se de uma outra vertente do negacionismo, a qual não presta atenção e nem dá crédito às notícias e informações a respeito do que acontece na dinâmica do clima, em termos nacionais e internacionais.

Simplesmente, ela se coloca na posição de que isso ou aquilo “jamais irá ocorrer por aqui”, usando de argumentos vazios, de achismos e casuísmos oportunistas, para tentar criar alguma argumentação. Como se fosse adiantar. Até que, o pior sempre chega, sempre acontece, e pega a todos desprevenidos, vulneráveis, totalmente desprotegidos.   

O pior é perceber que, mesmo diante dos fatos consolidados, da tragédia estampada explicitamente, nem assim, as pessoas se dão conta da realidade, tim-tim por tim-tim. Aliás, os gestores públicos são os primeiros a levantar coro nesse sentido, atribuindo ao caos uma excepcionalidade totalmente dissociada de um processo de maturação que é fermentado pelo tempo.  Ah, foi o imprevisível! Ah, foi de repente! Ah, ninguém podia prever! Ah, foi...

De modo que, agora, está tudo revirado, tudo fora de lugar. E não há planos. Não há estratégias. Por onde começar? Essa é a pergunta que não quer calar. Sobretudo, porque as chuvas continuam e tornam o processo ainda mais difícil e complexo. Os terrenos encharcados são muito instáveis e pode continuar existindo o risco de novos desabamentos de grandes proporções.

E enquanto o cenário é de terra arrasada e as preocupações maiores se voltam para os perigos visíveis, uma outra frente de problemas começa a emergir. Em meio a todo o entulho formado pela varredura da inundação, da desestabilização do terreno, há muita matéria orgânica se decompondo, há corpos que ainda não foram encontrados, as redes de água e de saneamento básico foram destruídas e/ou impactadas em muitos trechos, há lixo de diversas fontes, e tudo isso em contato direto com a população.

Afinal de contas, as pessoas estão transitando pela cidade, tentando limpar o que restou, auxiliando na busca pelos desaparecidos, ... e na maioria dos casos, sem quaisquer equipamentos de proteção individual, como luvas e botas. Isso significa que a probabilidade de adoecimento dessa população, antes mesmo que a cidade esteja organizada novamente, é muito grande.

Pode, portanto, haver casos de Cólera, de Dengue, de Febre Tifoide, de Hepatites A e E, de Leptospirose, de Tétano, dentre outras doenças, porque há uma dificuldade real de limpeza e desinfecção das áreas afetadas, incluindo ambientes domésticos, utensílios, móveis e outros objetos. O que torna a retomada do cotidiano pelas pessoas, ainda mais, lento e doloroso, na medida em que elas terão que se tratar e recuperar dessas doenças em condições precárias e, muitas vezes, desconfortáveis e aquém da necessidade real.

De modo que os desdobramentos e repercussões que esse tipo de catástrofe natural desencadeia não são de curto de prazo. Eles ficam ecoando por muito tempo e, às vezes, são surpreendidos pelo acréscimo de novos episódios. O que tende a intensificar ou constituir sequelas provenientes dessas doenças, caso não seja dada a devida atenção a elas. Portanto, vai depender do estado clínico prévio das pessoas, da idade, da permanência em contato com o agente contaminante, da velocidade e eficiência do atendimento prestado, enfim.

Quando infectado pelo Cólera, por exemplo, o indivíduo pode ser acometido por uma intensa debilidade corporal ao ponto de afetar o funcionamento dos rins e levar ao coma.

No caso da Dengue pode ocorrer um quadro de febre hemorrágica bastante delicado e perigoso, especialmente em pacientes com outras comorbidades.

Quanto à Febre Tifoide a possibilidade de complicações severas em órgãos como o fígado, o baço, a vesícula e, algumas vezes, a medula óssea, pode resultar em óbito.

As Hepatites podem se cronificar e desenvolver casos de cirrose e, eventualmente, câncer no fígado.

O Tétano pode causar fraturas ósseas, baixa ventilação, parada respiratória, choque circulatório, hipertensão e arritmia cardíaca.

E a Leptospirose pode comprometer as funções renais e causar hemorragias, principalmente, nos pulmões.   

Daí a necessidade, cada vez mais recorrente, de entender que não se pode dissociar ou compartimentalizar os acontecimentos. Mahatma Gandhi já dizia que “Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível”.

O cotidiano é como um castelo de cartas, onde delicada e sutilmente se equilibram os elementos. Um movimento mais abrupto, um descuido momentâneo, e tudo cai, tudo desaba, e precisa ser reiniciado. Esse é o ponto, reiniciar como? Da mesma forma? Agindo da mesma maneira? Repetindo os velhos erros e equívocos?

Cada nova tragédia nos impõe a derrota da omissão, da negligência, da irresponsabilidade gratuita e voluntária. De modo que não há justificativas, não há desculpas, não há mea culpa suficiente para amenizar ou atenuar os acontecimentos.  Mas, ao mesmo tempo, as novas tragédias oferecem uma possibilidade de seguir adiante, sob novos paradigmas, a partir daquele ponto.

Já dizia o filósofo e sociólogo francês, Jean Baudrillard, “Se a coesão da nossa sociedade era mantida outrora pelo imaginário de progresso, ela o é hoje pelo imaginário da catástrofe”.  E isso, infelizmente, acontece porque “O pior num ser humano é mesmo saber demais e ser inferior ao que sabe” (Jean Baudrillard). De modo que, quando menos se espera, “A história da humanidade torna-se cada vez mais uma corrida entre a educação e a catástrofe” (Herbert George Wells – escritor inglês).

Assim, o importante no contexto do que temos presenciado no Brasil, até agora, é não se permitir cair na tentação de questionamentos e divagações infundadas, a fim de não se reconhecer que os eventos climáticos extremos não só estão se acirrando; mas, se intensificando em frequência de episódios e ampliando o raio de ação. Pois, como já se tem experimentado por aí, não é um comportamento nada inteligente e equilibrado medir forças com a natureza. 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

E aí, quando vão começar a governar o Brasil?


E aí, quando vão começar a governar o Brasil?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

E aí, quando vão começar a governar o Brasil? Sim, porque nesses últimos quatro anos, o que era para ser governança girou em torno das pretensões de uma reeleição, dentro de uma perspectiva que jamais havia sido vista na história. Os poderes da República estiveram centrados e concentrados sob discussões eleitoreiras, enquanto o país se afundava e chafurdava em problemas, que por uma ironia ácida do destino, ganharam acompanhamentos bastante indigestos. Pandemia. Morticínio generalizado na população. Racismo. Inflação. Desemprego. Fome. Miséria. Desmatamentos. Queimadas. Garimpos ilegais. Contaminação de rios e populações ribeirinhas e povos originários. Eventos extremos do clima. ...

Não se resolveu absolutamente nada de essencial, de importante para a população; sobretudo, para aqueles 94% distribuídos, como já escrevi várias vezes, entre a classe média tradicional e a classe baixa. Muito pelo contrário, o que se viu foi um desmantelamento, sem pé nem cabeça, das instituições e dos serviços públicos, agravando e comprometendo a eficiência, já notoriamente capenga, dos mesmos. A ideia do desserviço foi institucionalizada.

De modo que o país não avançou. Ficou parado no tempo e no espaço aguardando pela chegada de um novo pleito eleitoral. Como se pudesse esperar. Como se devesse esperar. Como se a vida pudesse ser assim conduzida, na base de uma postergação ad aeternum. Nunca se viu tamanha inércia, tamanha inativação, tamanha negligência, tamanha irresponsabilidade, tamanho descuido, tamanha desassistência à população.  

Até as viagens ao estrangeiro, que sempre costumam despertar notícias alvissareiras, não traduziram nada de positivamente concreto para o país. Foram somente apertos de mãos, fotografias em meio a falas vazias ou silêncios constrangedores. Porque, no fundo, também, estavam configurando uma estratégia eleitoreira, nada mais. Um jeito prático de visibilizar a figura pública para o deleite de “rêmoras” apoiadoras.

Mas, e aí? Quando a tal eleição chegar vai haver transformação ou vamos assistir mais do mesmo? Vamos permanecer girando nessa mesma rotação de expectativas vãs? Desculpem-me a franqueza; mas, contrariando a ideia de que o caos até aqui foi culpa de uma pandemia que não estava nos planos, a verdade foi exatamente o oposto. Foi a inação voluntária, acrescida de uma incompetência metódica e sistemática, que a experiência pandêmica se configurou desastrosa, deixando um rastro de destruição humana, material e subjetiva, sem precedentes. E mesmo, diante de tudo isso, governar que é bom, continuou em último plano.

Entretanto, a vida não resiste a isso, a esse tipo de movimento. Não importa se analisada pelo prisma individual ou coletivo. A existência e a sobrevivência humana dependem de análise, de organização, de planejamento, de ação. Não dá para esperar que tudo se ajeite por conta própria, porque pode até acontecer; mas, de uma maneira desorganizada, improdutiva, inconsistente. Que não ajuda em absolutamente nada, ao desenvolvimento e ao progresso da população, do país. Porque, por mais impactantes que sejam as conjunturas, nem tudo elas são capazes de dar jeito, num sentido positivo e apaziguador.  

Cada passo irrefletido na gestão pública, tende inevitavelmente a demandar, no mínimo, uma década de recuperação. Se forem muitos e diversificados esses erros e equívocos, o tempo exigido será ainda muito maior. O que significa que a inexistência de uma gestão firme, dedicada, responsável, atuante, lança o país ao limbo do atraso, da perda da capacidade competitiva, da desconfiança internacional, enfim... Enquanto lança a população à mingua, à indigência, à desesperança, ao infortúnio funesto.

Portanto, se torna questionável a ideia de encarar como uma escolha governar ou não governar. Não tem essa. Ainda mais, considerando que o Brasil ainda é uma Democracia e elege a sua governança por voto direto, segundo a Carta Magna vigente. O compromisso de fazer, de agir, de cumprir, foi assumido. Não cabe discussão. Não cabe voltar atrás ou dizer que, não é bem assim. Não, é assim, sim.    

Sem contar que, o pior de tudo, é que esse plano de não governar tem vieses capciosos. Ele não está posto em sentido literal. É um não governar apenas dentro da perspectiva de trabalhar e resolver, segundo as demandas manifestas. Então, na contramão disso, descumprindo e infringido todas as leis, normas e preceitos constitucionais, age-se a partir dos próprios interesses, vontades, quereres e vozes da própria cabeça; mas, sem quaisquer pudores em relação ao uso, ao emprego do dinheiro público. E nunca se gastou tanto. Nunca se gastou tão mal os recursos nacionais.

Por isso, cada manifestação do imponderável nesse país se transforma em tragédia. Porque tivemos quatro anos para trabalhar em favor de mitigar as mazelas crônicas conhecidas, de aprimorar os progressos, de corrigir possíveis erros, de acompanhar os avanços do mundo; mas, estivemos presos e amarrados aos laços das velhas práxis, da preguiça macunaímica em assumir responsabilidades e protagonismos. Deixando “tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Daí a razão para que nossas adversidades, nossos fracassos, nossas indignações, nossos fiascos, ganhem uma pujança perene e se permitam arrastar por séculos a fio. Como se os governos contivessem qualquer menor sinal de ímpeto do desejo transformador, até que ele se esvaísse mediante a inação. Tudo para manter as rédeas e os controles da governança, segundo suas próprias intenções de caráter postergador.

Assim, encontram-se, por aí, políticos em profusão. Mas, governantes... que queiram de fato exercer o ofício, esses dão a entender que já são entes em extinção. No fundo, o que está em jogo é só o poder, mantê-lo, preservá-lo. E não se trata só do poder político. É o poder econômico. O poder social. O poder cultural. O poder ideológico. ... O poder, em todas as suas nuances, que é capaz de tecer as redes de proteção para a segurança da manutenção das zonas de conforto, onde estão depositadas todas as regalias e os privilégios. De modo que em pouco mais de 500 anos de história, o que se vê nesse país são essas redes sendo remendadas; mas, jamais aposentadas de suas funções.


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Tempos de ... Guerra


Tempos de ... Guerra

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há tempos a contemporaneidade vem mostrando, clara e objetivamente, a dissolução das certezas. E passados pouco mais de dois anos do início de uma pandemia que pegou a todos de surpresa, revirando a vida de cabeça para baixo, é muito natural que os ânimos estejam em frangalhos e a necessidade de encontrar um porto seguro, para sinalizar que o pior já passou, eleva o tom.

Entretanto, parece que não é nada disso que as conjunturas pensam a respeito. Quando as cabeças tentam se colocar acima da água para respirar, eis que uma onda mais forte se aproxima para destruir as expectativas e as perspectivas de reconstrução e recomeço.

Sei que uma iminência de guerra não é uma guerra. Mas, é um ensaio muito bem elaborado de todos os elementos de tensão e desestruturação que o mundo pode experimentar, como uma breve amostra grátis do que pode eventualmente estar por vir. Em suma, a iminência de guerra é a nudez da incerteza.

Não se contam horas, nem minutos. Contam-se os segundos, porque as mudanças não precisam mais do que isso para serem deflagradas. Daí as guerras serem um jogo tão perigoso e enigmático, porque há uma dificuldade intrínseca de saber como cada player vai fazer uso dos seus segundos que tem nas mãos. Afinal, a geopolítica não é um jogo para amadores ou principiantes. Não é à toa que os grandes conflitos bélicos da história são sempre encabeçados por figurinhas repetidas.

Mas, de volta ao ponto das incertezas, para quem aguardava avidamente pelo momento do anúncio do Pós-Pandemia para dar tratos à bola e traçar algum plano sobre os rastros e escombros deixados pelo vírus e suas variantes, nos mais diferentes espaços da sociedade, um balde gigantesco de água fria caiu sobre a cabeça.

A simples iminência de guerra lança tudo a uma corda bamba, sem fim. Principalmente, a Economia. Ela passa a orbitar em meio ao trânsito contínuo do incerto, do volátil, do imprevisível. E sem recursos, sem meios financeiros, pensar em quaisquer recomeços é praticamente impossível.

Nessas alturas do campeonato, há um medo, um temor, um desconforto que ronda inquietamente entre nós. Que pinta com traços fortes e cores vivas, um cotidiano que tenta seguir seu fluxo de altos e baixos de problemas, porque não pode parar por completo.

De modo que a existência humana é lançada, sem redes de apoio ou proteção, a um batimento marcado de um dia. Vive-se um dia de cada vez. Vive-se o agora. Vive-se o que possível. Nada de futuro. Nada de amanhã.

Porque essa iminência de guerra coloca o mundo na perspectiva de um arrastar de correntes, o qual não se permite definir até quando. É quase uma preparação surreal para fazer entender que as escolhas, as decisões, os controles desapareceram do campo da individualidade, dos individualismos, para se condicionarem aos ditames dos estados, das nações, das políticas. Que coisas e pessoas estão cada vez mais próximas de ficar sob as botas, sob o jugo, de acontecimentos e estratégias belicosas.

Então, nem bem poderá desfrutar uma Pós-Pandemia, a Terra parece que terá que aguardar por um Pós-Guerra. Tenso. Difícil. Complexo. Como quem terá que esperar para olhar a vida, como se ela fosse um pedaço de bolo. Camada por camada, só que de escombros materiais e imateriais, objetivos e subjetivos.

Algo que me faz pensar no poema “Os ombros suportam o mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, quando ele escreve “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco” 1.

Afinal de contas, mesmo tentando colocar de lado, ou em segundo plano, a síntese que se obtém dessa experiência é funesta. Pandemia. Fome. Miséria. Desalento. Violências. Eventos climáticos extremos. Guerra. ... Tudo tem acontecido, convivido e coexistido em meio a pilhas e pilhas de gente morta, ceifada, de repente, do mundo.

Sem oportunidade de despedida. Sem segunda chance de nada. Sem choro, nem vela. Por isso, até sou capaz de compreender a existência de certa necessidade, de uns e outros, em abdicar de pensar a respeito, por se tratar de uma tentativa de preservação de algum mísero vestígio de sanidade mental, ainda que, superficial.

Entretanto, mesmo assim, esse movimento de esquiva, de fuga, é insuficiente e ineficaz, porque no fundo, como dizem os versos, “Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho / desfiando a recordação / do sineiro, da viúva e do microscopista / que habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao amanhecer / esse amanhecer / mais noite que a noite” (Carlos Drummond de Andrade – Sentimento do mundo / 1940).

E é nesse ponto que se percebe, sem alegorias nem adereços, sem meias verdades ocultas, que já estamos em guerra. Ou melhor, que sempre estivemos em guerra. Talvez, muitas que nem se encontrem nas páginas dos livros de História.  Guerras do cotidiano. Guerras biológicas. Guerras ideológicas. Guerras culturais. Guerras sentimentais. Guerras que nos desalinham, nos desagregam, nos agigantam em pequenices. Mas, sempre guerras que fazem doer, que fazem adoecer, que fazem chorar, que fazem desesperar, que fazem minguar os sonhos e as esperanças.

Portanto, essa que se avista no horizonte 2 é só mais uma, de tantas outras que inevitavelmente hão de vir. Que pode se concretizar ou pode só ser a iminência de uma expectativa que tortura e apodrece o mundo. Porque a questão não é só fazer ou construir uma guerra; mas, entender com profundidade que o ser humano foi lamentavelmente forjado para existir a partir dela.

De modo que as conjunturas vivem a tecer pretextos e mais pretextos que desembocam nesse resultado. Que a gente tenta fugir delas, como o Diabo foge da Cruz; mas, quando se vê, lá estão elas batendo à nossa porta. Retirando o nosso sossego. Desinquietando a nossa idealização de paz. Roubando os nossos segundos, para gastá-los com bobagens.



1 Os ombros suportam o mundo (Carlos Drummond de Andrade) - https://www.youtube.com/watch?v=5cRxtlkcXpM  - Publicado em 1940, na Antologia Sentimento do Mundo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Pandemias, violências, eventos extremos do clima... A Educação em risco.


Pandemias, violências, eventos extremos do clima... A Educação em risco.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Que a COVID-19 trouxe um impacto negativo importante para a Educação em todo mundo, ninguém duvida. Milhares de crianças e jovens tiveram seu processo de aprendizagem não apenas interrompido nos períodos de isolamento social, propostos por diversos países em nome da segurança sanitária; mas, também, comprometido em razão da inacessibilidade e/ou carência de alfabetização e letramento digital e da necessidade de abandono escolar por conta da sobrevivência cotidiana.

Algo que vem, portanto, mobilizando governos, Organizações Não-Governamentais (ONGs), entidades ligadas à Educação, especialistas e educadores a pensar e criar estratégias para mitigar os efeitos desses desdobramentos e suas repercussões no desenvolvimento das próprias sociedades.

No entanto, esse é apenas um lado de um prisma de obstaculizações que a Educação é obrigada a enfrentar no seu dia a dia. A pandemia do Sars-Cov-2 e suas variantes, em face da sua realidade tsunâmica, que interrompeu abruptamente a vida das pessoas, alterando as suas dinâmicas nos aspectos mais elementares, dado o seu caráter global, permitiu extrair as camadas de problemas emergidos, com certa facilidade.

Acontece que, de repente, a partir dessa experiência avassaladora tornou-se muito mais perceptível as razões que impedem o fluxo do desenvolvimento educacional, principalmente, em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, cujas realidades carregam inúmeras vulnerabilidades e desafios socioeconômicos. Sob esse aspecto, então, eu chamo a atenção para as violências e os eventos climáticos extremos. 

Infelizmente, milhões de crianças e jovens não podem desfrutar do seu processo de ensino-aprendizagem adequadamente, por falta de um ambiente seguro e pacífico. A excessiva manifestação das violências físicas, psíquicas e emocionais, que acontecem em todos os lugares da contemporaneidade, não se resume a afastar os alunos das escolas, porque elas estão enraizadas além desses muros, criando bloqueios e resistências diversas que impedem os alunos de aprender, de apreender e de manifestar o seu conhecimento.

As violências impõem um constante retrocesso no caminhar da vida escolar. O aluno fica sempre sob a iminência de um acontecimento ruim. Seja em casa. Seja na rua. Seja no caminho da escola. Seja dentro da escola. Porque o cotidiano contemporâneo está atravessado pelas violências que explodem de uma hora para outra, em qualquer lugar, por qualquer motivo.  Principalmente, nas regiões mais carentes e desassistidas. Então, é como se ele desse um passo à frente e outros dez para trás, resultando, no fim das contas, em um eterno imobilismo.

Até que se chega a um momento em que tudo se torna, de um jeito ou de outro, trivializado pela sociedade. Então, os eventos extremos do clima surgem para mostrar, na verdade, que não há nada de normal, ou de banal, na interrupção e/ou no comprometimento educacional. Cidades arrasadas por vendavais, tornados, enchentes, incêndios florestais, longos períodos de estiagem, frio extremo, representam condições involuntárias de inacessibilidade educacional para os alunos.

Dependendo das circunstâncias, o tempo de reconstrução e reestabelecimento da organização socioeconômica dessas localidades é imprevisível. De modo que os alunos são privados do ensino presencial e, muitas vezes, do ensino à distância, porque os serviços de telecomunicações foram interrompidos. Portanto, são rupturas drásticas, traumáticas, difíceis que impactam diretamente nas relações educacionais, na formação sociocultural e intelectual do cidadão.

E de olho nos prognósticos a respeito desses eventos climáticos extremos, a tendência natural é que eles venham cada vez mais intensos, mais frequentes, mais aterrorizantes. O que aponta para uma fragilização cada vez maior do processo de ensino-aprendizagem, especialmente, dentro dos modelos que têm sido colocados em prática. Um sinal de que, antes que as conjunturas se recrudesçam de maneira definitiva, é fundamental estabelecer novos paradigmas educacionais capazes de evitar o colapso do conhecimento para as futuras gerações.

Talvez, um deles esteja na proposição de modelos de ensino que se baseiem na autonomia do aluno, para que ele desperte para a construção do seu conhecimento com uma menor dependência do professor e da escola. Que ele seja orientado e estimulado a reconhecer no seu cotidiano, nas suas experiências humanas, elementos que o levem a identificar potenciais fontes de informação e aprendizado. Filmes, desenhos animados, séries, documentários, livros, revistas, jornais, os quais ele possa extrair elementos capazes de tecer a sua rede de conhecimento.   

Afinal de contas, se aprende muito na escola; mas, também, na vida. Então, quando ele é impedido ou interrompido no seu processo educacional tradicional, isso cria uma série de lacunas que desorganizam a sua aprendizagem. Então, ele não avança. Ele retrocede. Tudo porque ele está condicionado a ser guiado e orientado diretamente pelo professor, no ambiente escolar, com horários e atividades preestabelecidas. De modo que ele não tem a dimensão de que pode, também, aprender por conta própria, por caminhos e formas que ele considerar interessante.

Como escreveu Rubem Alves, “Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim ‘affetare’, quer dizer ‘ir atrás’. É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros Platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado” 1.  

Isso precisa, então, ser apresentado a ele. Não só para melhorar a sua autoestima, demonstrando que ele pode continuar aprendendo em situações de inacessibilidade escolar; mas, que esse processo pode ampliar os seus conhecimentos. É importante ressaltar que, no caso das crianças até o ensino fundamental I, a participação familiar nessa construção é muito importante; sobretudo, para fornecer orientação e segurança para elas. Em uma contação de história, por exemplo, a família pode perguntar a ela o que ela entendeu, o que ela achou mais interessante, quais personagens ela gostou e porquê.   

Vê-se, portanto, que os desafios em relação à Educação estão extrapolando as discussões logísticas, orçamentárias, didáticas e pedagógicas, para adentrar a seara da participação e da mobilização social. O que pode interferir e obstaculizar o ensino-aprendizagem, mais severamente, não está necessariamente condicionado ao próprio sistema; mas, as ações e decisões que a própria sociedade se abstém ou negligencia, como é o caso das violências e dos eventos extremos do clima.

Se a Educação, portanto, tem se mostrado insuficiente, ineficiente, obsoleta, uma parte importante disso nos diz respeito. Não dá para negar. Não dá para fingir que não sabe. Não dá para cruzar os braços. Immanuel Kant já dizia que “O homem não é nada daquilo que a educação faz dele”. Desse modo, não há progresso sem a educação. Não há desenvolvimento sem a educação. Não há ciência sem a educação.

Simplesmente, porque “Pessoas que sabem as soluções já dadas são mendigos permanentes. Pessoas que aprendem a inventar soluções novas são aquelas que abrem as portas até então fechadas e descobrem novas trilhas. A questão não é saber uma solução já dada, mas ser capaz de aprender maneiras novas de sobreviver” (Rubem Alves – Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras).  



1 Rubem Alves: A arte de produzir fome (2002). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u146.shtml 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Erro de cálculo ou excesso de confiança?


Erro de cálculo ou excesso de confiança?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Essa é a pergunta que qualquer cidadão deveria fazer nesse momento, sobre a viagem da comitiva governamental brasileira à Rússia. Nos tempos da escola, sempre se dizia que pertencer ao grupo das chamadas “influências negativas” não era um bom negócio, dados os rótulos depreciativos que poderiam advir dessa relação.

Mas, o que acontece no caso brasileiro é que o seu próprio comportamento diplomático tem criado obstáculos e afastamentos nos círculos democráticos internacionais, lançando o país à condição de pária.  De modo que não se tem muitas oportunidades de figurar entre os players geopolíticos mais importantes a fim de firmar uma imagem de certa influência e destaque entre eles.

Algo que se viu, por exemplo, na reunião do G20, em Roma, no ano passado, quando o presidente brasileiro não só não participou da foto oficial do evento, como não teve uma agenda de compromissos e discussões bilaterais como seria de se esperar.

De modo que não lhe restou muitas opções, a não ser tentar uma aproximação com governos que teriam algum ponto de convergência com o seu. Desde que o governo dos EUA, que ele tinha em tão alta conta, passou para nova governança, ele acabou, então, se entregando a uma eventual simpatia com governos notoriamente autoritários, como Arábia Saudita, a Hungria e a Rússia.

Aliás, é uma surpresa essa aproximação com os russos, tendo em vista toda a estereotipização e estigmatização promovida pelo atual governo, em relação ao comunismo/socialismo. Afinal de contas, ainda que a Rússia tenha abolido o regime partidário único, desde o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), tornando-se uma República Federativa respaldada por um modelo próprio que tenta parecer uma democracia, na medida em que defende a separação de poderes, dispõe de uma constituição que assegura certos direitos e liberdades individuais, na prática se tem notícia de que o autoritarismo e a ingerência, que existiam no referido regime, permanecem conservados.

Mas, o que o governo brasileiro quer é criar uma aura de visibilidade internacional para inflamar a sua claque. Fazer parecer que está na crista da onda. Fazendo e acontecendo por aí. Mesmo que tudo, na verdade, se resuma a uma meia dúzia de fotografias ao lado de outros chefes de governo, não se importando muito que sejam de esquerda, ou autoritários, ou impopulares. Afinal de contas, ele já se habituou a viver de Pós Verdades, as quais fazem a alegria dos seus seguidores.

A grande questão é que para alcançar a tal fotografia, ele se dispôs a pagar um preço que, talvez, nem ele próprio saiba quão alto é. Porque depois de vociferar para os quatro cantos a sua aversão pelo “comunismo” e desenvolver com afinco esse sentimento nos seus apoiadores mais radicais, como não deixá-los com várias pulgas atrás da orelha ao vê-lo cumprindo o primeiro compromisso oficial da viagem, que foi a homenagem no túmulo do soldado desconhecido, um comunista que combateu durante a Segunda Guerra Mundial.

Será que eles vão engolir que “os fins justificam os meios”? De repente, todo aquele discurso anticomunista foi por água abaixo. Ora, o que torna tudo ainda mais intrigante nessa história é que o presidente brasileiro tem evitado exibições públicas ao lado de governantes com posição ideológica de esquerda, os quais ele intitula “comunistas”, como uma forma de recrudescer as suas convicções e, de repente ... Rússia. Como assim?

Não creio que o peso do bloco econômico dos BRICS, em que ambos fazem parte conjuntamente com a China, a Índia e a África do Sul, tenha tanto poder de desconstrução ideológica. Ou porque no campo da importação, nós somos o 6º parceiro na escala dos russos, importando US$530 milhões. E nas exportações brasileiras, eles representam o nosso 25º parceiro, resultando em US$232,5 milhões. O que significa que dependemos muito mais dos produtos deles do que eles dos nossos.

Afinal, somos dependentes deles quanto a adubos e fertilizantes (65%), carvão (21%), laminados planos de ferro ou aço (4,2%), produtos para indústria de transformação (3,5%) e outros produtos diversos (6,3%). De modo que se não tecermos esses laços comerciais, teremos sérios problemas para dar sequência a nossa produção, especialmente, na agricultura que ainda é o carro chefe da nossa balança comercial.

Convenhamos que, mesmo assim, negociações comerciais não precisam necessariamente da presença do chefe de governo, bastariam os ministros das respectivas pastas interessadas e seus assessores, ou os próprios empresários, para tal.

Sabemos que no mundo real das relações diplomáticas, a dialogia acontece predominantemente pela força dos interesses e não apenas das ideologias e convicções. Só que nesse caso, o que mais pesou nessa breve incursão ao leste europeu foi a falta de apreço e convites de países democráticos.

Foi isso o que levou o atual governo brasileiro a estender a mão para os não democráticos e, assim, mitigar o constrangimento de um isolamento diplomático em pleno ano eleitoral. Tanto que nem uma iminência de conflito na região os impediu de manter o plano de viagem de pé. Mas, será isso o suficiente para consolidar uma imagem eleitoreira próspera? Só o tempo dirá. Aguardemos.   


Quisera que fosse só um pesadelo


Quisera que fosse só um pesadelo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Tragédias anunciadas são exatamente isso. Elas tecem o seu enredo com o tempo, conscientes do desfecho que irão apresentar. Desde que mundo é mundo, catástrofes naturais sempre fizeram parte da história.

A erupção de Pompéia, em 79 d.C.; o terremoto de Antioquia, em 526 d.C.; o terremoto Shaanshi, na China, em 1556; o tsunami em Lisboa, em 1755; o furacão de São Calixto, no caribe, em 1780; a erupção de Krakatoa, na Indonésia, em 1883; a enchente do Rio Amarelo, na China, em 1887; a inundação do rio Amarelo, na China, em 1931; o ciclone de Bhola, na Índia, em 1970; o terremoto de Tangshan, na China, em 1976; o terremoto de São Francisco, em 1906; o terremoto e a tsunami no Oceano Índico, em 2004; o furacão Katrina, nos EUA, em 2005; o terremoto no Haiti, em 2010; o terremoto e tsunami no Japão, em 2011; são alguns exemplos.

Eles servem para mostrar que as discussões em torno do uso e ocupação do solo, não devem ser desprezadas ou negligenciadas, para que seja possível estabelecer uma relação com o Meio Ambiente harmônica e pacífica. Mesmo considerando que, nem sempre, o ser humano vai conseguir um êxito pleno nessa convivência, pois a natureza tem lá, as suas peculiaridades.

No entanto, permanece como princípio fundamental analisar e considerar os limites impostos por ela, a fim de se evitar ou, pelo menos, minimizar os impactos de uma tragédia. Porque o somatório de fatores naturais e artificiais existentes no planeta, tende naturalmente a sofrer eventuais processos de acomodação e/ou estabilização de alta intensidade e de maneira brusca, dificultando, muitas vezes, a própria previsibilidade desses fenômenos.

Acontece que os desdobramentos e consequências decorrentes da urbanização, da industrialização, da ampliação de demandas agropecuárias e outros consumos, ou seja, de ações antrópicas, têm levado o planeta a um movimento de transformação e desequilíbrio das suas condições naturais muito acentuado e acelerado.

De modo que os acontecimentos que antes tinham um caráter esporádico vieram se intensificando em forma, em conteúdo, em força e em frequência, impondo uma grave realidade de dificuldades para recompor ou reconstruir os prejuízos.  

Trata-se de uma configuração que vem sendo discutida, desde 1968, com o chamado Clube de Roma, quando um “grupo de 30 profissionais empresários, diplomatas, cientistas, educadores, humanistas, economistas e altos funcionários governamentais de dez países diversos se reuniram para tratar de assuntos relacionados ao uso indiscriminado dos recursos naturais do meio ambiente em termos mundiais”1.

Afinal, os reflexos desse modelo socioeconômico vigente há 50 anos, já davam sinais de uma exaustão ambiental muito rápida e de consequências para a humanidade imprevisíveis, as quais poderiam ir desde a escassez de recursos naturais renováveis e não renováveis; mas, também, do acirramento das catástrofes ambientais.   

Pena, que a força dos interesses econômicos continuou se sobrepondo aos dados e avisos da Ciência, como se a natureza é que tivesse que se curvar e se ajustar ao desenvolvimento e ao progresso mundial.

Passados meio século desde esse primeiro fórum ambiental, todos os que o sucederam vêm trazendo notícias e estatísticas cada vez piores e desalentadoras para o planeta e para a sobrevivência humana.

Ontem, depois de uma torrente de tragédias naturais experimentadas por diversas cidades, de diferentes estados brasileiros, Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, foi arrasada por aproximadamente 260 mm de chuva em seis horas ininterruptas 2.

A cidade foi pega, literalmente, de surpresa pela fúria das águas. O cenário que ficou, quando a chuva cessou, foi de terra arrasada. Até o momento, os números dão conta de 39 óbitos, tendo em vista de que ainda não se sabe exatamente quantos desaparecidos existem 3.  

Portanto, nada mais do que uma tragédia anunciada. Primeiro, porque já é de conhecimento público o fato de que os eventos climáticos extremos estão recrudescendo, dados os impactos negativos recorrentes sobre os diferentes ecossistemas do planeta.

Segundo, porque o velho hábito de postergar os estudos de uso e ocupação do solo, a fim de priorizar as obras de infraestrutura das cidades, que são extremamente importantes para a prevenção de catástrofes, continua vigorando.

A ideia de que esse tipo de obra “não rende votos”, infelizmente, permanece pulsando no país. Como um verdadeiro ranço histórico nacional. Razão pela qual, muitos gestores acabam desviando os recursos destas para outros setores, ou elaborando projetos sem prazo, sem consistência e que nunca chegam a lugar algum, ou realizando medidas paliativas inconsistentes e insatisfatórias, apenas para se mostrarem menos inativos diante do problema.

Sem contar que, durante muito tempo, quis se acreditar que os mais vulneráveis e desassistidos é que estariam expostos a tais infortúnios. Coisas de uma aporofobia nacional latente!

Pois é, vê-se, agora, que não é bem assim. A cidade de Petrópolis, assim como tantas outras recentemente, foi inteiramente impactada. Áreas nobres. Áreas periféricas. Tudo foi avassaladoramente varrido pelas águas. Comércios. Escolas. Centro histórico. Terminais de ônibus. Ruas. Avenidas. Praças. Enfim...

Mais uma vez, a trivialização, a banalização, a naturalização das tragédias, pela própria sociedade, cria um conformismo que não só deteriora a qualidade de vida da população, ao permitir que ela viva em constante sobressalto diante das intempéries; mas, cronifica um modelo de política que gira em torno de promessas que são sempre as mesmas, porque não se tem a intenção de solucioná-las.

Não é à toa, que a cada novo ciclo de catástrofes naturais, como o que está acontecendo desde o final de 2021, no Brasil, os veículos de informação e comunicação se deparam com o depósito em camadas de escombros e desalentados, porque a gravidade de cada episódio é tamanha, que não encontra tempo, nem vontade política e, nem tampouco, recursos para lhe pôr um fim adequado. Então, há sempre restos materiais e imateriais de outras tragédias presentes nos cenários devastados.   

A pergunta que não quer calar é: até quando? Até quando o Brasil vai insistir em confrontar destrutivamente o Meio Ambiente? Em colaborar de todas as maneiras possíveis para a irreversibilidade das mudanças climáticas?

O país está se esfacelando a olhos vistos. Escassez hídrica em algumas regiões. Enchentes torrenciais em outras. Temperaturas oscilando dissonantes aos parâmetros conhecidos. ... Tudo fora de lugar. Tudo de cabeça para baixo. Enquanto isso, os prejuízos se avolumam e desafiam a sustentabilidade socioeconômica nacional e a credibilidade no contexto internacional.  


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Muito além da segurança ou da liberdade


Muito além da segurança ou da liberdade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais absurdo que possa parecer, considerando que a pandemia ainda vigora entre nós, o fato de muitas pessoas ostentarem uma franca resistência e oposição a vacinação não passa de uma mera questão da própria contemporaneidade. Os tempos em que vivemos têm desnivelado o equilíbrio que se buscou estabelecer, durante muito tempo, entre a segurança e a liberdade.

Acontece que nessa disputa, no contexto das intenções contemporâneas, a liberdade sai na dianteira. Porque ela gera nos indivíduos uma pseudoimpressão de um poder amplo, irrestrito, sobre a vida. De modo que eles se tornam capazes de burlar as regras, de desafiar as leis, de ultrapassar os limites, em nome da satisfação do seu desejo, da sua vontade, da sua decisão, como se dessa forma pudesse acenar ao mundo não só a sua presença; mas, uma superioridade que ele acredita possuir e desfrutar.

Isso significa que a contemporaneidade acabou colocando a liberdade acima de toda e qualquer circunstância da existência humana, na medida em que ela desconsidera o senso coletivo para acirrar um individualismo praticamente narcísico. Então, muitos enxergam o mundo na perspectiva de sua própria ótica, constituindo uma narrativa muito particular sobre a realidade, nas qual suas convicções equivocadas servem como pilares de sustentação para a defesa de opiniões bastante questionáveis.

Ao que parece, observando uns e outros por aí, isso não é um problema para essas pessoas, mesmo que lhes custe algum tipo de perda socioeconômica. Essa concepção de liberdade lhes representa algo bem mais valioso e significativo, capaz de nutrir as suas vaidades manifestas em diferentes formas e conteúdos. Manter-se preso a um ponto de vista, ou uma opinião, ou uma ideia, tornou-se uma maneira de exibição de força, que ressalta os limites até aonde se consegue resistir sem se render ao senso coletivo.

É importante destacar que tudo isso só é possível, graças a um outro elemento típico da contemporaneidade que é a Pós Verdade. Na medida em que os fatos objetivos da vida passaram a ter menos influência e relevância dos que os apelos às crenças, valores e princípios para uma boa parcela da população, a manipulação da opinião pública ajuda a fortalecer esse novo senso de liberdade.

Aliás, as novas tecnologias, também, têm contribuído, e muito, para esse movimento social, como ferramentas importantes na criação, na modelagem e na disseminação em massa das “pós verdades”, dada a sua ampla participação no cotidiano da população. Como disse Umberto Eco, ao jornal italiano La Stampa, “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”.

Assim, a notícia publicada, hoje, nos veículos de informação e comunicação, de que “Novak Djokovic disse que prefere perder futuros torneios de tênis do que ser forçado a receber uma vacina contra a covid” 1, se encaixa nesse perfil social contemporâneo de aclamação à Pós Verdade. Tanto que, “ele disse que não está ligado ao movimento antivacinas, mas apoia o direito de escolha do indivíduo”. Sendo ele uma figura pública, um expoente esportivo, essa manifestação acaba por funcionar como um mecanismo de bloqueio crítico e reflexivo para muitos de seus seguidores.

A questão é que episódios assim vão muito além de uma distorção ou manipulação da realidade. Nesse caso, por exemplo, em que uma pandemia viral é o centro das discussões e as vacinas ocupam um papel de extrema relevância para a segurança da sobrevivência coletiva, tem-se a devida dimensão dos prejuízos que ainda se pode experimentar na contemporaneidade. Veja que diante do limiar extremo entre a vida e a morte há seres humanos considerando a sua liberdade individual como sendo muito mais importante. A que ponto chegamos! A liberdade acima da própria vida.

Tudo porque a engenhosidade social contemporânea tem levado as pessoas, cada vez mais, a um nível de susceptibilidade às investidas dos mecanismos de persuasão social, absurdo. É uma avalanche contínua de informações disseminadas que se torna incompatível ao tempo necessário para uma depuração analítica consistente e aprofundada. De modo que a pressa, a ansiedade, o imediatismo, a idealização, são algumas das condições subjetivas que compõem esse jogo perigoso.

Sem contar, a imensa necessidade humana de pertencer e ser aceito, ainda que, temporariamente, a partir da anuência e da condescendência a quaisquer absurdos que a contemporaneidade tente afirmar. Aliás, isso me faz lembrar uma citação de Albert Camus que diz, “O homem é a criatura que, para afirmar o seu ser e a sua diferença, nega”. Entretanto, no fim das contas, o resultado desse movimento é que “o homem moderno vive sob a ilusão de que sabe o que quer, quando na verdade ele deseja aquilo que se espera que ele queira” (Erich Fromm – filósofo e psicanalista alemão).

O que todo esse cabo de guerra estabelecido entre a liberdade e a segurança fez, então, no contexto da contemporaneidade, foi criar um mal-estar que consome a sociedade sem que se chegue a bom termo de nada. Nem livres. Nem seguros. Apenas negacionistas errantes sem mesmo conseguirem explicar porque o são. Gente que vive na ilusão das sombras que possam, de alguma forma, agigantar a sua imagem, a sua percepção identitária. 

Conclui-se, portanto, que toda essa dinâmica caótica da contemporaneidade; sobretudo, nesse século XXI, é só um modo estranho e, talvez, equivocado de dizer que “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida” (Manoel de Oliveira – cineasta português). Afinal, os fatos nos levam a crer que estamos sim, insistindo em caminhar na contramão do que é realmente necessário. Do que é realmente essencial para o equilíbrio individual e coletivo.