quarta-feira, 7 de maio de 2025

O golpe da anistia


O golpe da anistia

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A historicidade brasileira conhece bem o significado da anistia; mas, a grande massa da população não conhece. Todas as tentativas golpistas no Brasil tiveram o papel fundamental das elites burguesas, sustentadas pelo que se pode dizer, uma ideologia de Direita, em todas as suas gradações de formas e conteúdos.

De modo que a ideia de golpe sempre significou um instrumento de ruptura com as normas jurídicas vigentes, para assegurar os interesses e os poderes das classes dominantes nacionais, a fim de que pudessem continuar exercendo o seu controle sobre as camadas mais desprivilegiadas da população, sem nenhum risco de insurreição por parte delas.

Afinal, de acordo com o escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, “Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta”.

Então, por que o golpismo no Brasil, sempre, foi anistiado? Em razão da assimetria da organização social brasileira, ou seja, uma ínfima parcela composta pelas classes dominantes e uma gigantesca parcela composta pela subdivisão de classes dominadas. Porque essa assimetria define quem tem o poder, em todas as suas formas, incluindo a construção e a execução das normas jurídicas. Portanto, as classes dominantes nunca dispuseram da intenção de se autopunir.

Acontece que o mundo gira e as transformações são inevitáveis, impossibilitando de caber, nos novos contextos, as velhas e rotas práxis. O Brasil do século XXI, na tentativa de realinhar a sua rota ética, a partir do conjunto de acontecimentos antidemocráticos que culminaram no 08 de janeiro de 2023, decidiu reconstruir seus paradigmas e punir todos aqueles que se puseram a atentar contra a ordem consagrada pelo Estado Democrático de Direito.

Daí o desespero das classes dominantes pela busca de mais uma anistia. A grande verdade é que tal proposta não visa simplesmente apagar ou invisibilizar o conjunto de acontecimentos antidemocráticos; mas, assegurar a continuidade da assimetria da organização social brasileira, para que possam permanecer exercendo plenamente seus interesses e poderes. O que em linhas gerais, não dista de uma natureza política autoritária, a qual, em tese, coloca a nação e o Estado acima dos direitos individuais, valendo-se de uma visão de mundo que enfatiza a ordem e a tradição.

Dentro desse cenário, as discussões que correm pelos corredores da capital federal, sobre a possibilidade de anistia, desnudam a indigesta realidade rançosa da historicidade colonial brasileira. As classes dominantes não admitem a ideia de uma reorganização social, que esteja alinhada às demandas da contemporaneidade. Seu inconsciente foi tomado pela convicção de que são herdeiros diretos daqueles que detinham o poder e a influência, nos tempos coloniais. De modo que a última palavra, nas decisões do país, lhes pertence.

Segundo o escritor Paulo Coelho, “Nós sempre temos tendência de ver coisas que não existem, e ficar cegos para as grandes lições que estão diante de nossos olhos”. A proposta da anistia significa exatamente isso, ficarmos cegos para as grandes lições que estão diante de nossos olhos.

Acontece que essa cegueira representa a trilha do aprofundamento do nosso atraso, sob diferentes aspectos. Fingir que nada aconteceu. Cobrir os fatos com um véu de esquecimento. Guardar a memória em um baú. ... A história fica mal contada, inconclusiva, incompleta. Com pleno potencial de se repetir.

Diante dessa breve reflexão, lembre-se: “Qualquer pessoa pode errar; mas ninguém que não seja tolo persiste no erro” (Cícero - orador, escritor, estadista romano). Como escreveu Eduardo Galeano, “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador”. Infelizmente, foi essa a lição que as anistias imprimiram ao Brasil, até aqui. Daí a necessidade da mudança.