O golpe
da anistia
Por
Alessandra Leles Rocha
A historicidade brasileira
conhece bem o significado da anistia; mas, a grande massa da população não conhece.
Todas as tentativas golpistas no Brasil tiveram o papel fundamental das elites
burguesas, sustentadas pelo que se pode dizer, uma ideologia de Direita, em
todas as suas gradações de formas e conteúdos.
De modo que a ideia de golpe sempre
significou um instrumento de ruptura com as normas jurídicas vigentes, para assegurar
os interesses e os poderes das classes dominantes nacionais, a fim de que
pudessem continuar exercendo o seu controle sobre as camadas mais
desprivilegiadas da população, sem nenhum risco de insurreição por parte delas.
Afinal, de acordo com o escritor
e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, “Em certo sentido, a direita tem
razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a
diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a
tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta”.
Então, por que o golpismo no
Brasil, sempre, foi anistiado? Em razão da assimetria da organização social
brasileira, ou seja, uma ínfima parcela composta pelas classes dominantes e uma
gigantesca parcela composta pela subdivisão de classes dominadas. Porque essa
assimetria define quem tem o poder, em todas as suas formas, incluindo a
construção e a execução das normas jurídicas. Portanto, as classes dominantes nunca
dispuseram da intenção de se autopunir.
Acontece que o mundo gira e as
transformações são inevitáveis, impossibilitando de caber, nos novos contextos,
as velhas e rotas práxis. O Brasil do século XXI, na tentativa de realinhar a
sua rota ética, a partir do conjunto de acontecimentos antidemocráticos que
culminaram no 08 de janeiro de 2023, decidiu reconstruir seus paradigmas e
punir todos aqueles que se puseram a atentar contra a ordem consagrada pelo
Estado Democrático de Direito.
Daí o desespero das classes
dominantes pela busca de mais uma anistia. A grande verdade é que tal proposta
não visa simplesmente apagar ou invisibilizar o conjunto de acontecimentos
antidemocráticos; mas, assegurar a continuidade da assimetria da organização
social brasileira, para que possam permanecer exercendo plenamente seus interesses
e poderes. O que em linhas gerais, não dista de uma natureza política
autoritária, a qual, em tese, coloca a nação e o Estado acima dos direitos individuais,
valendo-se de uma visão de mundo que enfatiza a ordem e a tradição.
Dentro desse cenário, as
discussões que correm pelos corredores da capital federal, sobre a
possibilidade de anistia, desnudam a indigesta realidade rançosa da
historicidade colonial brasileira. As classes dominantes não admitem a ideia de
uma reorganização social, que esteja alinhada às demandas da contemporaneidade.
Seu inconsciente foi tomado pela convicção de que são herdeiros diretos daqueles
que detinham o poder e a influência, nos tempos coloniais. De modo que a última
palavra, nas decisões do país, lhes pertence.
Segundo o escritor Paulo Coelho, “Nós
sempre temos tendência de ver coisas que não existem, e ficar cegos para as
grandes lições que estão diante de nossos olhos”. A proposta da anistia significa
exatamente isso, ficarmos cegos para as grandes lições que estão diante de
nossos olhos.
Acontece que essa cegueira representa
a trilha do aprofundamento do nosso atraso, sob diferentes aspectos. Fingir que
nada aconteceu. Cobrir os fatos com um véu de esquecimento. Guardar a memória
em um baú. ... A história fica mal contada, inconclusiva, incompleta. Com pleno
potencial de se repetir.
Diante dessa breve reflexão,
lembre-se: “Qualquer pessoa pode errar; mas ninguém que não seja tolo persiste
no erro” (Cícero - orador, escritor, estadista romano). Como escreveu Eduardo
Galeano, “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias
de caçadas continuarão glorificando o caçador”. Infelizmente, foi essa a lição
que as anistias imprimiram ao Brasil, até aqui. Daí a necessidade da mudança.