terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acontece que a vida não tem manual...


Acontece que a vida não tem manual...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foi impossível não parar e refletir a respeito da matéria “Limites da guerra: o que são as leis que determinam como um conflito pode ser conduzido” 1. Afinal de contas, ela desnuda a cruel realidade de como os seres humanos relativizam a morte, quando lhes parece conveniente.

Aí, eu me pergunto, por onde andam os defensores da vida? Gente que sai vociferando contra a interrupção da gravidez, da pena de morte, das drogas, ... mas, aceita que um conflito armado se estabeleça geopoliticamente. Em que ponto do seu manual de boas práticas e comportamentos, a vida se relativizou dessa maneira?

Ou consideramos a vida um bem sagrado e inalienável, ou não consideramos. Não dá para ficar em cima do muro! Mas é exatamente o que temos visto por aí. Necropolítica, necrocapitalismo, necrobiopoder, ... a morte está presente de maneira maciça na sociedade contemporânea. E não mais por razões de ordem natural; mas, por processos de controle e dominação social.

Onde foi na história da humanidade que passamos a considerar normal o estabelecimento de regras que nos permitem matar nossos semelhantes? Isso é gravíssimo. Primeiro, porque se você pode matar o outro a recíproca passa a ser verdadeira também. Nesse caso a sociedade entra em uma espiral de loucura sem fim.

Segundo, porque a morte é a morte. Não importa se ela chega através de um tiro, de um míssil, de uma granada, de uma facada, de fome, de sede, de espancamento, ... Simplesmente é a vida ceifada pela brutalidade da violência humana e todas as suas reverberações, que ultrapassam os limites daquele corpo inerte.

Lamento; mas, é preciso relembrar que a morte não é singular, porque nenhum ser humano é uma ilha. Ainda que os laços afetivos e sociais não estejam efetivamente materializados, eles jamais deixam de existir. De modo que as perdas, em maior ou em menor escala, serão sempre sentidas.

Razão pela qual a beligerância nunca morre. O ódio que você semeia ecoa pelo tempo, pelo espaço, ainda que na figura de um único ser, remanescente daquela dor, daquele sofrimento, daquela indignação. Ele vai de geração em geração reafirmando a sua presença. Porque as violências odiosas, terríveis, abomináveis, não podem ser explicadas, ou justificadas, ou contemporizadas, na medida em que transitam na contramão da preservação da própria espécie.

Acontece que, infelizmente, muito antes da humanidade ser submetida à sua domesticação cognitiva e intelectual, ela resolvia as situações cotidianas pela irracionalidade. De modo que essa marca ficou no seu inconsciente coletivo e, vez por outra, contraria o senso biológico de preservação da espécie. Como se a gênese primitiva e intelectualmente limitada do ser exercesse um poder maior sobre o seu comportamento, permitindo que a barbárie fosse facilmente acionada apesar da razão.

Por trás desse verniz racional, disciplinador, então, habita um bárbaro. Que facilmente abdica da capacidade dialógica, crítica, reflexiva, para curvar-se a beligerância letal. Nesse ponto, o ser humano perde a noção sobre o tênue limite entre a vida e a morte, no sentido mais objetivo que isso representa. Como se os corpos perdessem a sua essência biológica para ocupar um espaço de objetificação social, suprimindo quaisquer sentimentos, emoções, importâncias, que sempre lhes foram pertinentes. E assim, a vida vem sendo alçada à morte sem ao menos saber o porquê.

Talvez, isso traga um pouco de entendimento para essa saudade que consome o mundo contemporâneo. Relembrando as palavras de Martha Medeiros, “Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche”.

Afinal, estamos assombrados pela morte, em diferentes formas e conteúdos. Flertando de olhos fechados com duas guerras em curso, enquanto circulamos entre outros tantos pequenos conflitos urbanos. Portanto, não há protocolo, manual, regulamento ou script, que seja capaz de nos ensinar a guerrear sob parâmetros de justiça. Nada do que a beligerância constrói é justo. Essa é só mais uma ideia absurda, um placebo, para tentar aplacar o esvaziamento avassalador da nossa subjetividade humana.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A energia vital em seu (des)equilíbrio


A energia vital em seu (des)equilíbrio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O cenário do mundo contemporâneo me trouxe uma reflexão importante. Enquanto o instinto de preservação da espécie, ou seja, o senso de coletividade trabalha em comunhão com o equilíbrio natural da dinâmica da vida, o individualismo egóico narcisista se nutre do desequilíbrio.

E isso nada tem a ver com disputa, qual tendência irá prevalecer. Talvez, por uma lógica já consagrada, o equilíbrio tem uma certa vantagem porque está presente desde a estrutura biológica mais simples. Mas, não só por isso. O consumo energético vital imposto pelos sistemas de caos são insustentáveis.

Guerras, conflitos, destruição, ... tudo isso demanda um fluxo de energia incomensurável, o qual inclui, necessariamente, as energias presentes nos corpos. Já experimentou observar o quão cansado você fica após uma discussão acalorada? É como se a energia fosse totalmente exaurida no sopro de uma explosão, deixando o corpo, a mente e o espírito sob um cansaço indescritível.

De modo que as situações caóticas vão repercutindo sobre os indivíduos de uma maneira, em tese, imperceptível; mas, na prática, evidentes. O adoecimento da humanidade é uma realidade factual e que pode ser observada sob diferentes formas e conteúdos. Lendo a matéria “Travessias de imigrantes: ‘o delírio é tanto que alguns pulam achando que chegaram à terra firme e morrem afogados’” 1, não pude deixar de pensar a respeito.

Não são as situações de escassez, de inacessibilidade ou de privação da dignidade humana, exclusivamente, as responsáveis em si pelo adoecimento da humanidade. Elas têm a sua parcela importante e significativa nesse processo. No entanto, é do caos emergido da luta diária e intensa pela sobrevivência que milhões de seres humanos têm consumido de maneira arbitrária e brutal a sua energia. Seja pelos deslocamentos forçados, ou pela angústia aflitiva por um amanhã, ou pelas rupturas socioafetivas, ou pela desconstrução identitária, ...

A verdade é que cada indivíduo acabou se tornando o exército de um homem só, no grande desafio de preservar a si mesmo. E isso extrapola a capacidade humana natural de ser. Pensar em tudo. Resolver tudo. Estar sempre de prontidão.  É assim que os corpos se esgotam. Em razão de uma fadiga intensa para qual não foram preparados.

Na tentativa de se enquadrar às regras do jogo social contemporâneo, o ser humano foi lançado às arenas, à revelia da sua própria anuência. Ele está cativo de uma realidade, para a qual ele não foi preparado; sobretudo, o seu corpo. Com menos horas de sono, de descanso, de silêncio, de lazer, de higiene mental, ... os indivíduos vão sendo sugados até a última gota do seu equilíbrio físico, mental e espiritual.

Por favor, não se engane com o argumento de que a expectativa de vida aumentou! Porque essas questões passam à margem dos avanços médico-científicos contemporâneos. Remédios, terapias, tratamentos, são incapazes de atuar no cerne dessa questão. Haja vista como as projeções estatísticas têm sinalizado um mundo envelhecendo rapidamente, como apontou o recente Censo Demográfico brasileiro 2.

Não é à toa, por exemplo, que nos grandes centros urbanos a expectativa de vida decresce, sob o peso dos rigores das conjunturas socioeconômicas sobre a dignidade humana.  O envelhecimento nessas regiões sofre a influência direta de fatores externos que catalisam a degradação dos corpos. Tanto que a aparência de muitos indivíduos destoa da própria faixa etária, dada a intensificação do seu esgotamento.

O desalinhamento em relação ao eixo de equilíbrio está colocando a raça humana em xeque-mate. As vidas começam a ser ceifadas antes mesmo que uma bomba, um míssil, um tiro, uma facada, ou qualquer outra manifestação de beligerância, seja deflagrada. Elas estão se autoimplodindo, em razão da sua exaustão energética. Os corpos estão se deteriorando em nome de uma pseudossobrevivência. Como se fosse possível esticar os limites indefinidamente.

As perguntas em torno dessa reflexão passam inevitavelmente, pelo porquê. Por que nos rendemos à desumanidade? Por que somos tão individualistas? Por que estamos tão enfastiados? Por que queremos sempre uma novidade? Por que ...?

Assim, paremos por um instante e pensemos no que escreveu Lya Luft, “A vida não tece apenas uma ideia de perdas, mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar”.  Pelo menos, nessa situação, a escolha ainda pode ser nossa.  

sábado, 28 de outubro de 2023

O preço da desatenção


O preço da desatenção

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não resta qualquer dúvida de que a descoberta da Polícia Federal (PF) sobre um esquema clandestino de espionagem 1 é algo estarrecedor, na medida em que nos remete aos históricos episódios protagonizados pelas polícias políticas, instaladas por governos autoritários, mundo afora.

Entretanto, o que de fato me causou perplexidade não foi o fato em si; mas, a reincidência de uma práxis que tem se tornado habitual na contemporaneidade e, particularmente, no Brasil, a qual diz respeito à demasiada negligência e contemporização em torno das falas de uns e outros.

Sei que estes são tempos de uma intensa atividade de linguagem e comunicação, de modo que é quase impossível dedicar a devida atenção às informações que chegam, em toneladas por minuto, graças aos avanços científicos e tecnológicos. Mas, isso não é justificativa de nada! Não é à toa que a população vem padecendo com as consequências nefastas da verborragia em curso.

Acontece que dentro dessa ausência de filtros e análises mais elaboradas, de repente, emergiu desse episódio de espionagem, um risco social de dimensões ainda não estabelecidas; mas, que tendem a ser bem pior do que meras palavras ditas sem pensar, sem fundamentação qualquer.

Só para recapitular, a verdade é que essa marca deletéria esteve presente ao longo de todo o governo anterior. Aliás, bem antes do ex-Presidente da República chegar ao posto de mandatário do país. Sob a pecha de mera fanfarronice, bravata, farolagem, suas falas terríveis e abjetas foram rapidamente desconsideradas e abandonadas de qualquer análise mais criteriosa e responsável.

Pois é, só que mesmo no contexto das vulgaridades verborrágicas, por trás de todo processo linguístico de comunicação reside uma intenção. Não há essa história de falar por falar, porque pensamento e fala não são processos independentes.

Daí, então, se tratar de algo que não é uniforme, ou seja, que está sujeito sim, a variações segundo o assunto, o interlocutor, o ambiente e a intencionalidade.

Eis que, agora, no auge da efervescência escandalosa em torno da descoberta da Polícia Federal (PF), em que boa parte da população se mostrou boquiaberta, se tem a impressão de que nenhum brasileiro teve conhecimento a respeito daquela reunião ministerial de 22 de abril de 2020 2.

Pois é, foi naquela reunião, divulgada por diversos veículos de informação e comunicação nacionais, que o ex-Presidente da República afirmou ter um “sistema particular” de informações que funcionava, enquanto teceu críticas ao sistema oficial, o qual considerava “desinformar”. Porém, como em tantas outras falas estranhas do ex-Presidente da República, essa também não mereceu, de pronto, uma sinalização reflexiva a respeito.

Agora, com as apurações da PF vindo à tona, o corre-corre é geral para se tentar descobrir a extensão das ilegalidades cometidas. Todos querem entender como essa arapongagem foi tramada, inclusive, porque o programa espião utilizado foi adquirido sem licitação e por instituições de governo, cujo papel constitucional não diz respeito a realizar investigações.

Aliás, há de se lembrar também que em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, já havia decidido “que órgãos e entidades da administração pública federal podem compartilhar dados pessoais entre si, com observância de alguns critérios”, depois de que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido Socialista Brasileiro alegaram que o Decreto 10.046/2019 da Presidência da República, que dispunha sobre a governança desse compartilhamento de dados, geraria uma espécie de vigilância massiva e representaria um controle inconstitucional do Estado 3. O que reforça a ideia de que estava em curso no país, uma série de medidas de caráter espião.

Assim, tem-se a impressão de que o Brasil esteve em guerra contra si mesmo, pelo menos ao longo dos últimos quatro anos. Sob o nome de Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a instituição foi usada irregularmente para espionagem que é algo bem diferente do seu propósito fundamental.

Enquanto a espionagem se caracteriza pela obtenção de dados por meios ilegais, a inteligência busca munir os governos de informações relevantes ao seus interesses político-administrativos, através de vias legais.  

Depois dessa breve reflexão, não é difícil perceber a importância e a necessidade de se dedicar mais atenção às comunicações que circulam no cotidiano.

Como bem escreveu Michel Foucault, “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual queremos apoderar”.

Por isso, a espionagem permanece exercendo tanta atração sobre os governos, porque ela pode oferecer a instrumentalização necessária para o projeto de poder que se pretende consolidar, na medida em que se trata de um mecanismo de vigilância e controle social.  

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O bárbaro efeito das tensões


O bárbaro efeito das tensões

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A matéria “Tensão entre políticos e ‘Supremos’ pressiona democracias pelo mundo, diz pesquisador americano” 1 traz considerações importantes, do ponto de vista institucional; mas, sobretudo, abre espaços para o exercício crítico pela própria coletividade social.

Um dos traços mais marcantes da contemporaneidade diz respeito à incapacidade das pessoas em lidar com a existência de limites, de regras, por conta da exacerbação da liberdade. Sob diferentes formas e conteúdos foi sim, incutido no inconsciente coletivo contemporâneo a ideia de uma liberdade irrestrita. De modo que não é difícil de encontrar, aqui e ali, gente que aja guiado por essa percepção; bem como, todos os desdobramentos ruins decorrentes disso.

No Brasil, um dos exemplos clássicos a esse respeito é o fato da profissionalização político-partidária. Não é, ou pelo menos não deveria, ser surpresa para ninguém o fato de que muitos dos representantes políticos nacionais façam disso uma profissão rentável e imune a certos dissabores, comuns aos pobres mortais.

Tanto que, tão logo assumem os seus mandatos, eles (as) se consideram livres para fazer e acontecer, distanciando-se das plataformas de campanha que os levaram até lá. Sentem-se como se pertencessem a uma casta superior, intocável, passível de negar, por completo, as regras que compõem o próprio exercício da sua função pública.  E como são elementos originários da própria sociedade, eles (as) traduzem exatamente o perfil contemporâneo dela.

O que explica porque tem havido tantas tensões e rusgas entre os Poderes da República. Não me parece, simplesmente, uma afronta proposital à Democracia; mas, uma disputa egóica de liberdades distintas que não se consegue compatibilizar. Os individualismos narcísicos se inflamam, quando contrariados nas suas vontades e quereres, ou quando submetidos à imposição de leis, códigos, doutrinas, que não foram submetidos ao seu crivo previamente.

Acontece que não é bem assim que a banda toca! Quando se deixa de respeitar e de viver sob os limites sociais preestabelecidos, a humanidade volta ao seu estado indomável de barbárie. Foi o modelo de organização social modulado pelo vasto conjunto de regras, protocolos, princípios e valores, que promoveu a domesticação do ser humano primitivo, trazendo-o para o contexto de ser social, coletivo.

E isso é algo seríssimo! Haja vista o exemplo do que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, na última segunda-feira, quando 35 ônibus foram incendiados depois de uma ação policial que resultou na morte do sobrinho de um miliciano 2.  Aliás, uma das manchetes a respeito elucida os acontecimentos, “‘Milícia sinalizou que, se houver prisão, vai estabelecer o caos no Rio’, diz ex-capitão do Bope” 3.

Entendam, é dessa forma que o ideário contemporâneo de liberdade age para desconstruir os limites. Ele vai para o confronto direto, para o arsenal de violências que lhe parece disponível. O que demonstra claramente como as tensões sociais já ultrapassaram as fronteiras dos poderes legítimos e das instituições, para alcançar a sociedade em geral. São, como disse anteriormente, os individualismos narcísicos inflamados, que não sabem lidar com as frustrações diante da presença dos limites.

Daí a necessidade de que a sociedade reavalie a sua postura diante da contínua reafirmação dessa liberdade. Os exemplos replicados constituem parâmetros de legitimidade seja para o Bem ou para o Mal. Acontece que as sociedades já começam a sentir os efeitos nocivos dessas práxis, computando prejuízos, os quais nem sempre podem ser ressarcidos plenamente. Por isso, eventuais medidas repressoras não tendem a surtir o efeito necessário.

Leis, regras, protocolos, princípios e valores só alcançam a sua efetividade, quando há uma adesão social representativa. Mas, para isso, é necessário um trabalho de consolidação dos mesmos junto aos indivíduos, que não esbarre na proliferação de exceções daqui e dali. Porque ao se abrir precedentes produz-se um efeito de esgarçamento e fragilização desses parâmetros dentro da própria sociedade. E aí, quando se dá conta, ela voltou ao seu estado indomável de barbárie. Como no dito popular, “Cada um por si e Deus por todos”.   

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Na fronteira do extermínio


Na fronteira do extermínio

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Acompanhando o mais recente episódio da beligerância entre Israel e o Hamas, as camadas de análise vão se tornando cada vez mais visíveis. De modo que, nos últimos dias, me pareceu claro como as guerras e os conflitos, no frigir dos ovos, têm em comum a busca pela limpeza étnica, promovida pelas nações opressoras sobre as nações oprimidas.

Ora, se não fosse assim, não seria necessária a barbárie sangrenta e letal que sempre se apresenta. É visível a desproporcionalidade das perdas humanas em nome de territórios e de poder. Portanto, a matança diz sim, respeito ao extermínio do outro, para que em nenhum momento ele possa reivindicar em nome de seu povo, de sua nação.

Não, não é à toa que nas guerras e conflitos as mulheres e as crianças sejam os alvos preferenciais. Elas representam a possibilidade de gerações futuras. Matá-las é como “cortar o mal pela raiz”.  De modo que se possibilite estabelecer uma homogeneização social, com base na identidade do dominador.

Esse é um traço marcante da selvageria que habita a essência humana desde sua gênese. Era essa a forma do homem primitivo estabelecer a sua dominação, o seu poder. E por ser a forma mais simples, mais rápida, mais decisiva, ele abdica da sua racionalidade e da sua capacidade dialógica para resolver seus impasses dentro da sociedade. Ele usa da força, da brutalidade impositiva para conseguir o que quer.

Não sejamos ingênuos, então, para olhar o mundo pelo fragmento contemporâneo. O ser humano utilizou da limpeza étnica durante o Colonialismo e o Neocolonialismo (Imperialismo). Povos originários, em diferentes partes do planeta, foram dizimados sumariamente. Tribos africanas também. Depois os armênios, pelo governo otomano, e os judeus, ciganos, homossexuais, pelo regime nazista alemão.

Mas, os exemplos, não param por aí. A limpeza étnica também ocorreu na Bósnia, na República Centro Africana, em Mianmar, e agora, mais recentemente, tem-se o risco de ocorrer, novamente, com os armênios de Nagorno-Karabakh. Em relação aos palestinos, ela vem sendo, de certo modo, perpetrada ao longo de pouco mais de sete décadas, por meio de violências sociais diversas cometidas pelo governo de Israel. 

Aliás, é muito importante o papel das estatísticas sobre as violências, porque é através delas que se percebe o delinear do ideário de limpeza étnica que se espalha ao redor do mundo, especialmente, aquele fomentado pela ultradireita ou outras linhas político-partidárias extremistas e radicais. Quando se fala da contínua exacerbação do racismo, da misoginia, da xenofobia, da aporofobia, da homo e/ou transfobia, ... não se trata de episódios pontuais isolados ou desconectados, que acontecem eventualmente por força de contextos específicos.

Infelizmente, o que se explica pela tipificação de preconceitos, nada mais é do que um sentimento presente no inconsciente coletivo, o qual ativa o traço selvagem do primitivismo humano de exterminar o outro. Tudo o que parece uma ameaça à manutenção dos espaços de poder, por determinados indivíduos, cria uma tensão que culmina pela via do extermínio ao invés da racionalidade.

E por se tratar de um movimento cada vez mais frequente, na sociedade contemporânea, é fácil identificar que, muitas vezes, nem é preciso quaisquer comportamentos beligerantes, por parte das minorias sociais, para que as manifestações de violência contra elas sejam perpetradas. Aliás, há registros de grupos e de indivíduos que saem às ruas em busca de cometer atos de violência contra certas minorias, a fim de promover a limpeza étnica dentro de determinados espaços geográficos das cidades.

Portanto, falar em preconceito é contemporizar e trivializar, algo que é muito mais profundo, tanto no indivíduo quanto na sociedade. Talvez, a imensa dificuldade de nomear corretamente as coisas é que faz com que os termos sejam atenuados para não chocar, não impactar, tão severamente as pessoas. Mas, o nome dessa violência que se alastra pela humanidade é extermínio, é limpeza étnica. Tanto que os anuários sobre violência conseguem facilmente estabelecer o perfil das vítimas sob diferentes perspectivas.

A grande questão e que, a imensa maioria das pessoas não pensa a respeito, é o fato de que no calor da belicosidade as ações perdem o controle e atingem a todos sem distinção. Porque a violência homogeneíza a sociedade, fazendo com que as identidades se apaguem. Ela é impulsiva, imediatista, oportunista, de modo que não há espaços para saber quem sou eu ou quem é você. Nessa nova ordem social não basta a consagração do poder pela força, é preciso exterminar o outro.

Usam bombas, mísseis, drones, artilharia pesada; mas, também, a fome, a miséria, o adoecimento, a desigualdade, a inacessibilidade, a negligência, a desumanidade, o deslocamento forçado, enfim... Charles Darwin dizia que “Paramos de procurar monstros debaixo da nossa cama quando percebemos que eles estavam dentro de nós”. Então, talvez, leve tempo para que essa sede de extermínio seja superada! 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

As sombras da escravização autômata contemporânea


As sombras da escravização autômata contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Logo cedo, me deparei com uma mensagem bastante reflexiva e oportuna que dizia “Privilégio maior que estar vivo é se sentir vivo”. Filosofia em estado bruto! Principalmente, considerando o rolo compressor contemporâneo que não se constrange em afetar a nossa saúde mental, comprometendo o nosso modo de pensar e de refletir.

Bem, já dizia Erich Fromm que “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autômatos”. Pena que ninguém levou isso a sério e, portanto, temos não só autômatos; mas, também, uma legião de novos escravos, no século XXI. E por conta dessa realidade, nos deparamos com uma humanidade cada vez mais adoecida física, mental e moralmente falando.

Uma breve passada de olhos pela internet dá a dimensão a esse respeito. Nos espaços voltados para saúde e qualidade de vida, por exemplo, há inúmeras matérias tratando da importância da higiene mental, em razão dos excessos e abusos do uso das novas tecnologias. Pois já se sabe que o adoecimento mental se expande rapidamente para o corpo, podendo desencadear efeitos nefastos sobre o indivíduo.

No entanto, essa é uma maneira sutil das Big Techs lavarem as mãos diante de um processo de adoecimento mental, o qual elas próprias fomentam. Isso significa que se por um lado elas depositam no livre arbítrio do ser humano a autorregulação para o uso das novas tecnologias, por outro, percebendo que ninguém está nem aí para os perigos alertados, elas intensificam as suas estratégias de expansão e fidelização de público consumidor dos seus produtos.  Assim, elas garantem a manutenção da sua lucratividade em detrimento da saúde mental das pessoas.

Mídia de informação. Mídia de entretenimento. Mídia de Esporte. Mídia de compra. Mídia ... De modo que um gigantesco conjunto de meios de comunicação de massas se estabelece como ferramenta de controle e manipulação social, em tempo integral, na realidade contemporânea. Sim, porque essa comunicação não se dá, necessariamente, de maneira orgânica; mas, sob o crivo dos interesses, especialmente econômicos, das Big Techs.

Haja vista o modo como têm sido apresentadas as duas guerras em curso. Aliás, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia perdeu totalmente o seu espaço midiático. Não se ouve mais falar a respeito. Não se trazem notícias dos acontecimentos, nem de um lado e nem de outro. Enfim. Mas, não é por acaso que isso acontece.  A guerra entre Israel e o Hamas envolve diretamente, não apenas o capitalismo global, como as pretensões expansionistas da ultradireita. Daí a razão dessa guerra tomar a visibilidade nos veículos de comunicação. Nada mais nada menos do que o poder da repressão tecnológica.

Já ficou claro o papel das Big Techs na promoção da ultradireita, em diferentes partes do planeta, não apenas pela obstaculização em conter o avanço das Fake News nas suas mídias sociais, como na punição aos veículos de comunicação que expressam opiniões contrárias àquelas defendidas pela ultradireita.  Ora, isso acontece porque a ultradireita detém um poder capital que interessa diretamente às Big Techs. Então, elas se aliam àqueles que podem ampliar e consolidar o seu enriquecimento, ainda que isso custe o enviesamento dos fatos e uma alienação doentia da sociedade.

Se lembram dos tempos em que fofocas rendiam milhões? Pois é. Hoje, o que rende na comunicação social são as polarizações. Na medida em que são despejadas nas mídias, notícias e Fake News, em toneladas, há de certa forma uma impossibilidade de realizar um escrutínio apurado em torno delas, impulsionando ao efeito manada de seguir o senso comum de uma maioria, mesmo que essa maioria esteja na contramão da verdade factual.  

O que assusta é o fato de que é por meio desse efeito manada que as pessoas têm buscado a sua legitimação ideológica e, assim, postarem-se vitoriosas nas discussões polarizadas. Munidas de quantidades exorbitantes de informação rasa, infundada, inverídica, distorcida, elas tomam partido do lado que lhes é mais conveniente.  Portanto, ao abdicarem da sua racionalidade, das suas convicções, dos seus pontos de vista, elas demonstram o grau de adoecimento mental e moral a que foram submetidas.

Sim, porque o cerne desse impacto brutal incide sobre a sua identidade. Toda a construção da sua consciência individual, através das relações subjetivas, comunicativas, linguísticas e das experiências sociais, passou a ser condicionada e subjugada a interesses de outras pessoas. Daí o fato de estar vivo, do ponto de vista biológico, não significar sentir-se vivo, do ponto vista existencial, porque o indivíduo está sob um estado de automatismo.  

O pior é que, enquanto isso, as Big Techs prosperam mais e mais. A humanidade adoece mais e mais. E as guerras tendem a não ter fim. Pois, como escreveu Zygmunt Bauman, “Se os direitos políticos podem ser usados para enraizar e solidificar as liberdades pessoais assentadas no poder econômico, dificilmente garantirão liberdades pessoais aos despossuídos, que não têm direito aos recursos sem os quais a liberdade pessoal não pode ser obtida nem, na prática, desfrutada” (Tempos Líquidos, 2007)

sábado, 21 de outubro de 2023

A insuficiência e a ineficiência da “caridade” contemporânea


A insuficiência e a ineficiência da “caridade” contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os horrores das guerras são, de fato, excelentes catalisadores da reflexão. Ainda que muitas pessoas tentem se abster de análises e pensamentos, mais profundos, em algum momento eles se tornam inevitáveis, dada a sua impactante necessidade.

Nos últimos dias, tenho sido inundada pela reverberação das notícias trazidas pelos veículos de informação e de comunicação, o que tem me possibilitado a elucidação de muitas coisas, as quais pareciam a priori sem sentido algum.  Acontece que tudo, nessa vida, tem propósito sim.

Enquanto, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), na presidência temporária do Brasil, não vem medindo esforços para aprovar uma resolução que traga ajuda aos palestinos, através de um corredor humanitário, ligando o Egito à Faixa de Gaza, extrapolei os limites desse recorte para olhar além do tempo.

Não resta dúvida a urgência do momento, para se propor algo nesse sentido. No entanto, a verdade se descortina, quando se percebe que determinadas práxis, como essa, que deveriam ter um caráter de excepcionalidade, acabaram sendo legitimadas como solução, diante de uma incapacidade dialógica resistente.

Infelizmente, caro (a) leitor (a), os palestinos; sobretudo, os que residem na Faixa de Gaza, nessas pouco mais de sete décadas, só sobrevivem à custa de ajuda humanitária. O que ultrapassa a ideia da territorialidade em si, na medida em que ter um espaço geográfico capaz de alocar uma população sem, contudo, permitir-lhes o acesso aos direitos humanos fundamentais é, simplesmente, cruel e perverso.

Portanto, a dor e o sofrimento do povo palestino não reside limitado aos conflitos, ou à ausência do estabelecimento do seu Estado-Nação; mas, principalmente, pelo peso das desigualdades socioeconômicas, as quais eles foram sumariamente subjugados. Sim, porque a dependência da ajuda humanitária é uma imposição conjuntural, não partiu deles a escolha de sobreviverem dessa maneira.

Acontece que a Faixa de Gaza é uma área territorial de 365km², onde vivem aproximadamente 2,2 milhões de habitantes. Portanto, uma população confinada em um espaço geográfico incapaz de possibilitar-lhes uma sobrevivência autônoma, na medida em que não há acesso livre à água potável, não há condições territoriais e ambientais para produção de alimentos, e não há produção de energia elétrica.  Sem contar, todo o controle, a vigilância e a violência que permeia a convivência deles com Israel.

Portanto, há um flagrante desequilíbrio de forças entre palestinos e israelenses, o qual se reafirmou ao longo dessas pouco mais de sete décadas, pela omissão da diplomacia internacional. Vamos e convenhamos que a ajuda humanitária, na ótica dessa realidade, funciona como um socorro inócuo, sem quaisquer potenciais de transformação resolutiva para o caso.

Acaba sendo uma medida simplicista para o controle de eventuais tensões; mas, totalmente indigna. O que significa que as grandes lideranças globais, realmente, não se abalam ou se constrangem com a reafirmação das desigualdades no planeta. Há uma naturalização, ou uma trivialização, que legitima e permite que existam seres humanos submetidos à diferentes formas de indignidade, de desumanidade, em pleno século XXI.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por exemplo, “Pelo menos 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas. Entre elas estão 35,3 milhões de refugiados. Há também 4,4 milhões de apátridas, pessoas a quem foi negada a nacionalidade e que não têm acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de movimento” 1.

Pois é, existem mais de 100 campos de refugiados em diferentes regiões do mundo. Os principais são Dadaab (Quênia), Nakivale (Uganda), Dollo Ado (Etiópia), Kakuma (Quênia), Zaatari (Jordânia), Ain Al-Hilweh (Líbano), Saharawi (Argélia), Yida (Sudão do Sul), Mbera (Mauritânia), Nyarugusu (Tanzânia) 2.

Tratam-se, portanto, de “assentamentos de estruturas precárias, de estadia temporária (teoricamente) e com condições sanitárias mínimas, ocupados geralmente por populações sem qualquer renda ou que perderam todas as suas posses” 3.

Desse modo, a guerra que se estabeleceu entre Israel e o Hamas deixa todas essas questões muito evidentes. Afinal, este é só mais um exemplo de como os diálogos de paz podem passar à margem da discussão sobre as desigualdades, para que não se precisem debater sobre os desdobramentos da necropolítica e do necrocapitalismo 4, no mundo.

Porque isso implicaria nas alianças geopolíticas, na corrida armamentista, nas construções sociais imperialistas, enfim. O que me faz relembrar, de pronto, as seguintes palavras de Eduardo Galeano: “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seu beleguins nativos”.  

E aí, como a cereja desse bolo indigesto, crianças e jovens palestinos, que representam o futuro de seu povo, resumem os horrores dessa belicosidade contemporânea, pela terrível lógica de que “Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças” (Eduardo Galeano) 5.



4 Necrocapitalismo é definido como as formas contemporâneas de acumulação organizacional que envolvem a desapropriação e subjugação da vida ao poder da morte. Isso inclui diferentes formas de poder – institucional, material e discursivo – que operam na economia política e na violência e desapropriação que daí resultam. - https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0170840607096386

5 De pernas para o ar – a escola do mundo às avessas, 1999, L&PM, 370p. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A orfandade que nos assola


A orfandade que nos assola

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma questão que sempre me incomodou em relação às guerras é a orfandade que elas produzem.

Porque ela consegue ir muito mais além do fato de estabelecer a ruptura com os laços parentais, para milhares de crianças e adolescentes.

A orfandade rega, ainda que inconscientemente, as sementes do ódio que a fez surgir.

As gerações expostas ao ódio retroalimentam esse ódio. Sobretudo, no contexto belicoso das guerras e dos conflitos, os quais têm em si essa capacidade incrível de permanecer reverberando a sua agressividade, a sua combatividade, o seu antipacifismo, ao longo das gerações.

Diante disso, a dramática ruptura com o princípio social mais importante para qualquer criança ou adolescente, que é a família, representa o descaso da humanidade em relação não só aos direitos delas; mas, à própria construção da paz, nas suas mais diferentes instâncias.

Ora, se as autoridades retiram delas o direito de “desenvolverem-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade” 1e, também, de “serem protegidas contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra índole. Devendo serem educadas dentro de um espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universais” 2, o que se pode esperar?

Acontece que esse modo de agir das autoridades acaba por se refletir na inação e no torpor da própria sociedade. As pessoas geralmente pensam na guerra na perspectiva da destruição, das bombas, das mortes; mas, quase sempre, se esquecem de pensar sobre os órfãos e em como seria a vida deles nos campos de refugiados, mundo afora, por exemplo.  

Isso, sem contar, que dentre essas crianças e adolescentes, há vários portadores de deficiência e/ou doentes crônicos, os quais demandam uma atenção ainda mais especial.

Então, para que exista visibilidade para essa questão é fundamental entender que “mais da metade da população mundial de refugiados é constituída por crianças. Os jovens de 15 a 24 anos também constituem uma grande parcela das populações afetadas pelo deslocamento forçado. Muitos vão passar a vida inteira longe de casa, às vezes separados de suas famílias” 3, o que inclui situações de orfandade por guerras e conflitos.

Só para se ter uma ideia a respeito do que isso significa, segundo o novo relatório publicado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), “mais da metade das 14,8 milhões de crianças refugiadas em idade escolar do mundo não estão tendo acesso à educação formal, o que coloca em risco sua prosperidade futura e o alcance das metas de desenvolvimento global” 4.

Portanto, essa realidade pode implicar em diversas formas de risco, ou seja, abusos, negligências, violências, exploração, tráfico ou recrutamento militar. 

Pois é, guerras e conflitos ameaçam o futuro da humanidade, inclusive, sob a ótica das novas gerações.  Não é à toa que Pablo Neruda escreveu, “Só um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência humana”.  

Afinal, sob o som estridente das bombas cruzando os céus, dos gritos asfixiados pela dor, do horror deformante dos corpos, seres humanos se permitem interromper, sem cerimônias ou constrangimentos, o fluxo natural da vida – nascer, crescer, envelhecer e morrer.

Assim, a orfandade se multiplica. Bem mais do que a orfandade de pai e/ou de mãe, ela se decompõe em orfandade de sonhos. De esperanças. De desejos. De amor. De solidariedade. De ... paz.

De modo que o mundo, então, se torna um lugar incapaz de nos caber. Triste. Pesado. Medonho. Totalmente desbotado e silencioso.

Simplesmente, porque “Não existe revelação mais nítida da alma de uma sociedade do que a forma como esta trata as suas crianças” (Nelson Mandela).

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

A vez do negacionismo diplomático


A vez do negacionismo diplomático

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O veto dos EUA 1 à resolução proposta pelo Brasil na reunião do Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU), vai além do fato em si. Não foi um fracasso diplomático, nem político. Foi um fracasso da humanidade, o que significa que a desumanidade venceu, mais uma vez.

Assistindo a tudo o que vem acontecendo nos últimos 12 dias, entre Israel e o Hamas, as notícias soam como instrumentos de revelação das camadas que constituem essa história de conflitos. E só mesmo, através da história, para se tecer análises isentas, pautadas exclusivamente nos registros factuais.

Muito antes da formação dos Estados-Nação, o mundo já convivia com guerras bárbaras e sangrentas. No entanto, os exércitos da época disputavam entre si, dentro de um certo equilíbrio, na medida em que o arsenal disponível era o mesmo para ambas as partes.

Variavam, talvez, o número de soldados à disposição e a presença de guerreiros mais fortes e bons estrategistas. Eram guerras da força bruta, da lei do mais forte.

Com o passar do tempo e da natural evolução socioeconômica, e já dentro do cenário dos Estados-Nação, as guerras foram submetidas ao enviesamento do equilíbrio de forças, em razão do poder capital para adquirir as novas armas de guerra, muito mais beligerantes e destrutivas.

De modo que os exércitos melhor servidos pelo poder capital, inevitavelmente, despontavam o seu favoritismo nos confrontos. O mundo passou a assistir a lei do mais forte sobre a lei do mais fraco.

Acontece que nesse ponto se faz necessário dedicar uma atenção muito especial. Nem todas as guerras e conflitos envolvem Estados-Nação reconhecidos pela comunidade internacional. É aí que se esbarra em duas situações importantes do campo diplomático, as quais dizem respeito aos apátridas e as nações sem estado reconhecido.

Frequentemente essas pessoas se encontram imersas em eventos de extrema belicosidade e de afronta aos direitos humanos fundamentais.

Bem, para quem nunca ouviu falar no termo, os apátridas “são pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país. A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha de reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países” 2.

Já as nações sem estado, são aquelas que não dispõem de um território autônomo e vivem, então, em áreas cujo poder é exercido por outros grupos. É o caso, por exemplo, dos Curdos, dos Palestinos, dos Tibetanos, dos Bascos, dos Chechenos, dos Caxemires, e em breve, dos armênios que estão sendo expulsos de Nagorno-Karabakh pelo governo do Azerbaijão.

Isso significa que qualquer ofensiva bélica contra essas pessoas é totalmente desproporcional. Se elas não dispõem de seu próprio território, por consequência, também, não dispõem de exército e de recursos militares equivalentes aos das nações reconhecidas.  

São populações geralmente empobrecidas, em sua maioria, privadas de uma existência digna, com ausência de acessibilidade aos direitos humanos fundamentais. O que significa que naturalmente elas estão expostas a todo tipo de expressão xenofóbica, ou seja, de ódio, receio, hostilidade e rejeição em relação aos estrangeiros. Na verdade, uma xenofobia que instrumentaliza a necropolítica, presente na realidade contemporânea.

Infelizmente, embora milênios já tenham se passado na história da humanidade, a existência de dominados e dominadores persiste. O mundo reafirma diariamente as marcas colonialistas e imperialistas nas relações socioeconômicas, como mostrava um antigo quadro humorístico de TV, “Primo rico, primo pobre” 3. O pobre visitava o rico para pedir comida; mas, sempre se frustrava, porque o rico sutilmente negava e ainda fazia questão de humilhá-lo, ostentando a boa vida.

Isso significa que seres humanos apátridas ou sem Estado-Nação próprio tendem a permanecer invisibilizados no mundo, portanto, à margem de eventuais discussões resolutivas para sua situação. Acontece que essa invisibilidade é bastante tendenciosa; posto que, eles permanecem como alvos preferenciais da beligerância global. Pois é, já dizia Jean-Jacques Rousseau, “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado” 4.

Acontece que não basta nascer livre. A barbárie primitiva moldou a sociedade por diversas dicotomias de poder: fortes e fracos, dominados e dominadores, ricos e pobres, importantes e desimportantes, burgueses e proletários, enfim ...

Basta lançar um olhar sobre a pirâmide social contemporânea, para perceber o quanto essa modelagem foi profunda e impactante sobre a humanidade. Daí ser tão desafiador exercitar a empatia, a alteridade, o altruísmo e a compaixão, uns com os outros.

E a razão dessa dificuldade está no fato de que “Antes de falar sobre o bem da satisfação das necessidades, é preciso decidir quais necessidades constituem o bem” (Liev Tolstói). Por que a pergunta a se fazer é quem decide?

Sim, as pequenas e as grandes decisões do mundo são sempre tomadas por indivíduos e/ou instituições que desempenham algum papel de importância ou relevância social. Pessoas que têm seus próprios interesses, ambições, relações, vaidades, ...

Por isso, o veto dos EUA à resolução proposta pelo Brasil na reunião do Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU). Não só pela franca fraternidade dedicada aos israelenses, desde sempre, a decisão dos EUA teve um componente de disputa de protagonismo com o Brasil.

A aprovação teria colocado o governo brasileiro como um novo expoente diplomático para a mediação de conflitos no Oriente Médio, algo que jamais agradaria aos norte-americanos, dado o seu histórico papel nesse sentido. De modo que, por uma questão geopolítica egóica, se fez deflagrar o fracasso da diplomacia e acender a chama da desumanidade.

Então, se o Conselho de Segurança, da Organização das Nações Unidas (ONU), aceita que decisões, dessa envergadura, sejam obstaculizadas por justificativas inconsistentes e de alto teor impiedoso, onde tudo isso vai parar é a pergunta a se fazer, a partir de agora.