sábado, 21 de outubro de 2023

A insuficiência e a ineficiência da “caridade” contemporânea


A insuficiência e a ineficiência da “caridade” contemporânea

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Os horrores das guerras são, de fato, excelentes catalisadores da reflexão. Ainda que muitas pessoas tentem se abster de análises e pensamentos, mais profundos, em algum momento eles se tornam inevitáveis, dada a sua impactante necessidade.

Nos últimos dias, tenho sido inundada pela reverberação das notícias trazidas pelos veículos de informação e de comunicação, o que tem me possibilitado a elucidação de muitas coisas, as quais pareciam a priori sem sentido algum.  Acontece que tudo, nessa vida, tem propósito sim.

Enquanto, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), na presidência temporária do Brasil, não vem medindo esforços para aprovar uma resolução que traga ajuda aos palestinos, através de um corredor humanitário, ligando o Egito à Faixa de Gaza, extrapolei os limites desse recorte para olhar além do tempo.

Não resta dúvida a urgência do momento, para se propor algo nesse sentido. No entanto, a verdade se descortina, quando se percebe que determinadas práxis, como essa, que deveriam ter um caráter de excepcionalidade, acabaram sendo legitimadas como solução, diante de uma incapacidade dialógica resistente.

Infelizmente, caro (a) leitor (a), os palestinos; sobretudo, os que residem na Faixa de Gaza, nessas pouco mais de sete décadas, só sobrevivem à custa de ajuda humanitária. O que ultrapassa a ideia da territorialidade em si, na medida em que ter um espaço geográfico capaz de alocar uma população sem, contudo, permitir-lhes o acesso aos direitos humanos fundamentais é, simplesmente, cruel e perverso.

Portanto, a dor e o sofrimento do povo palestino não reside limitado aos conflitos, ou à ausência do estabelecimento do seu Estado-Nação; mas, principalmente, pelo peso das desigualdades socioeconômicas, as quais eles foram sumariamente subjugados. Sim, porque a dependência da ajuda humanitária é uma imposição conjuntural, não partiu deles a escolha de sobreviverem dessa maneira.

Acontece que a Faixa de Gaza é uma área territorial de 365km², onde vivem aproximadamente 2,2 milhões de habitantes. Portanto, uma população confinada em um espaço geográfico incapaz de possibilitar-lhes uma sobrevivência autônoma, na medida em que não há acesso livre à água potável, não há condições territoriais e ambientais para produção de alimentos, e não há produção de energia elétrica.  Sem contar, todo o controle, a vigilância e a violência que permeia a convivência deles com Israel.

Portanto, há um flagrante desequilíbrio de forças entre palestinos e israelenses, o qual se reafirmou ao longo dessas pouco mais de sete décadas, pela omissão da diplomacia internacional. Vamos e convenhamos que a ajuda humanitária, na ótica dessa realidade, funciona como um socorro inócuo, sem quaisquer potenciais de transformação resolutiva para o caso.

Acaba sendo uma medida simplicista para o controle de eventuais tensões; mas, totalmente indigna. O que significa que as grandes lideranças globais, realmente, não se abalam ou se constrangem com a reafirmação das desigualdades no planeta. Há uma naturalização, ou uma trivialização, que legitima e permite que existam seres humanos submetidos à diferentes formas de indignidade, de desumanidade, em pleno século XXI.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), por exemplo, “Pelo menos 108,4 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas. Entre elas estão 35,3 milhões de refugiados. Há também 4,4 milhões de apátridas, pessoas a quem foi negada a nacionalidade e que não têm acesso a direitos básicos como educação, saúde, emprego e liberdade de movimento” 1.

Pois é, existem mais de 100 campos de refugiados em diferentes regiões do mundo. Os principais são Dadaab (Quênia), Nakivale (Uganda), Dollo Ado (Etiópia), Kakuma (Quênia), Zaatari (Jordânia), Ain Al-Hilweh (Líbano), Saharawi (Argélia), Yida (Sudão do Sul), Mbera (Mauritânia), Nyarugusu (Tanzânia) 2.

Tratam-se, portanto, de “assentamentos de estruturas precárias, de estadia temporária (teoricamente) e com condições sanitárias mínimas, ocupados geralmente por populações sem qualquer renda ou que perderam todas as suas posses” 3.

Desse modo, a guerra que se estabeleceu entre Israel e o Hamas deixa todas essas questões muito evidentes. Afinal, este é só mais um exemplo de como os diálogos de paz podem passar à margem da discussão sobre as desigualdades, para que não se precisem debater sobre os desdobramentos da necropolítica e do necrocapitalismo 4, no mundo.

Porque isso implicaria nas alianças geopolíticas, na corrida armamentista, nas construções sociais imperialistas, enfim. O que me faz relembrar, de pronto, as seguintes palavras de Eduardo Galeano: “Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seu beleguins nativos”.  

E aí, como a cereja desse bolo indigesto, crianças e jovens palestinos, que representam o futuro de seu povo, resumem os horrores dessa belicosidade contemporânea, pela terrível lógica de que “Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser criança. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem, desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças” (Eduardo Galeano) 5.



4 Necrocapitalismo é definido como as formas contemporâneas de acumulação organizacional que envolvem a desapropriação e subjugação da vida ao poder da morte. Isso inclui diferentes formas de poder – institucional, material e discursivo – que operam na economia política e na violência e desapropriação que daí resultam. - https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0170840607096386

5 De pernas para o ar – a escola do mundo às avessas, 1999, L&PM, 370p. 

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