terça-feira, 31 de outubro de 2023

Acontece que a vida não tem manual...


Acontece que a vida não tem manual...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Foi impossível não parar e refletir a respeito da matéria “Limites da guerra: o que são as leis que determinam como um conflito pode ser conduzido” 1. Afinal de contas, ela desnuda a cruel realidade de como os seres humanos relativizam a morte, quando lhes parece conveniente.

Aí, eu me pergunto, por onde andam os defensores da vida? Gente que sai vociferando contra a interrupção da gravidez, da pena de morte, das drogas, ... mas, aceita que um conflito armado se estabeleça geopoliticamente. Em que ponto do seu manual de boas práticas e comportamentos, a vida se relativizou dessa maneira?

Ou consideramos a vida um bem sagrado e inalienável, ou não consideramos. Não dá para ficar em cima do muro! Mas é exatamente o que temos visto por aí. Necropolítica, necrocapitalismo, necrobiopoder, ... a morte está presente de maneira maciça na sociedade contemporânea. E não mais por razões de ordem natural; mas, por processos de controle e dominação social.

Onde foi na história da humanidade que passamos a considerar normal o estabelecimento de regras que nos permitem matar nossos semelhantes? Isso é gravíssimo. Primeiro, porque se você pode matar o outro a recíproca passa a ser verdadeira também. Nesse caso a sociedade entra em uma espiral de loucura sem fim.

Segundo, porque a morte é a morte. Não importa se ela chega através de um tiro, de um míssil, de uma granada, de uma facada, de fome, de sede, de espancamento, ... Simplesmente é a vida ceifada pela brutalidade da violência humana e todas as suas reverberações, que ultrapassam os limites daquele corpo inerte.

Lamento; mas, é preciso relembrar que a morte não é singular, porque nenhum ser humano é uma ilha. Ainda que os laços afetivos e sociais não estejam efetivamente materializados, eles jamais deixam de existir. De modo que as perdas, em maior ou em menor escala, serão sempre sentidas.

Razão pela qual a beligerância nunca morre. O ódio que você semeia ecoa pelo tempo, pelo espaço, ainda que na figura de um único ser, remanescente daquela dor, daquele sofrimento, daquela indignação. Ele vai de geração em geração reafirmando a sua presença. Porque as violências odiosas, terríveis, abomináveis, não podem ser explicadas, ou justificadas, ou contemporizadas, na medida em que transitam na contramão da preservação da própria espécie.

Acontece que, infelizmente, muito antes da humanidade ser submetida à sua domesticação cognitiva e intelectual, ela resolvia as situações cotidianas pela irracionalidade. De modo que essa marca ficou no seu inconsciente coletivo e, vez por outra, contraria o senso biológico de preservação da espécie. Como se a gênese primitiva e intelectualmente limitada do ser exercesse um poder maior sobre o seu comportamento, permitindo que a barbárie fosse facilmente acionada apesar da razão.

Por trás desse verniz racional, disciplinador, então, habita um bárbaro. Que facilmente abdica da capacidade dialógica, crítica, reflexiva, para curvar-se a beligerância letal. Nesse ponto, o ser humano perde a noção sobre o tênue limite entre a vida e a morte, no sentido mais objetivo que isso representa. Como se os corpos perdessem a sua essência biológica para ocupar um espaço de objetificação social, suprimindo quaisquer sentimentos, emoções, importâncias, que sempre lhes foram pertinentes. E assim, a vida vem sendo alçada à morte sem ao menos saber o porquê.

Talvez, isso traga um pouco de entendimento para essa saudade que consome o mundo contemporâneo. Relembrando as palavras de Martha Medeiros, “Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche”.

Afinal, estamos assombrados pela morte, em diferentes formas e conteúdos. Flertando de olhos fechados com duas guerras em curso, enquanto circulamos entre outros tantos pequenos conflitos urbanos. Portanto, não há protocolo, manual, regulamento ou script, que seja capaz de nos ensinar a guerrear sob parâmetros de justiça. Nada do que a beligerância constrói é justo. Essa é só mais uma ideia absurda, um placebo, para tentar aplacar o esvaziamento avassalador da nossa subjetividade humana.

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