segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Será que um coração morto pode fazer pulsar a consciência???


Será que um coração morto pode fazer pulsar a consciência???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto uns e outros discutem em torno da funesta e onerosa ideia de trazer o coração embalsamado de D. Pedro I para uma exposição comemorativa aos 200 anos da independência 1, eu prefiro analisar tudo por uma perspectiva mais profunda e pragmática.

Não questiono, em absoluto, as referências aos fatos históricos. O que aconteceu, aconteceu. E tem sempre muito a dizer e explicar sobre os caminhos que lhe antecederam e sucederam, como uma corrente em que cada elo tem a sua importância para o todo. De modo que os nossos feriados nacionais têm por finalidade esse papel.

Contudo, isso não os exime de um olhar menos romantizado para ganhar uma análise mais pragmaticamente histórica. Entendo que, para muitas gerações, as narrativas constituídas para a história brasileira lhes parecem agradáveis, cabendo perfeitamente nas suas expectativas e idealizações.

A questão é que, sem se darem conta, elas subtraem sutilmente do cidadão a sua própria cidadania, na medida em que lhes retira a inteireza do conhecimento sobre seu próprio país. Mantendo-o à distância dos questionamentos e reflexões que deveriam surgir naturalmente desse processo. Fazendo da história uma estória inventada e modelada para ficar ali nas páginas dos livros, satisfazendo a curiosidade dentro de certos limites.

Então, voltemos as atenções para a independência do Brasil. Do ponto de vista prático, o ato de D. Pedro I, mais dia menos dia iria acontecer, pela própria força do desmantelamento da estrutura monárquico-absolutista, que já se disseminava pela Europa desde a Revolução Francesa, em 1789.

Nessas alturas do campeonato, as grandes metrópoles da época já estavam às voltas com os feitos da Revolução Industrial, da urbanização, do consumo em larga escala e, principalmente, com a influência de uma nova classe social, a Burguesia. Então, ainda que muitas ex-colônias só tenham conseguido sua emancipação das suas metrópoles no início do século XX, o feito brasileiro foi ter conseguido a façanha mais cedo e sem maiores turbulências beligerantes.

O que do ponto de vista burocrático proporcionou o efeito midiático esperado. Pena, que isso seja pouco para um país que deveria esperar mais da sua independência. Como ocorreu em tantas outras ex-colônias, o ato em si não afetou a população a ponto de transformá-la em nível de ideologia, de comportamento, de organização.

Tornaram-se independentes de uma outra nação a partir do papel decisório de um ou de alguns indivíduos ligados ao poder colonial; mas, não da população em si. A independência chegou, portanto, de cima para baixo, como se deu toda a governança colonial. Afinal, o Brasil se tornava independente; mas, permanecia uma monarquia. Só em 1889, 67 anos depois da independência, é que o regime de governo se tornaria a República.

E tudo isso é sim, muito emblemático, porque ao falar de independência, logo se faz uma associação direta com liberdade. Mas, que liberdade é essa que não acolheu a integralidade da população brasileira, na medida em que muitos de seus filhos permaneciam cativos, segregados, alijados de seus direitos fundamentais?

Os ares da independência não venceram o racismo, a intolerância religiosa, o patriarcalismo, e tantos outros males nefastos emergidos da condição colonial. Por ato simbólico e por decreto não éramos mais colônia da Metrópole portuguesa. Mas, na essência, na identidade, mal sabíamos que iríamos seguir assim, cativos a um modelo de organização social dividido entre a dominação e a subserviência.  

E voltando ao coração de Pedro I, deixem-no em paz! Não façam de sua presença, mais uma cortina de fumaça, para a nossa eterna dependência ao constrangimento! Sua permanência em solo brasileiro, enquanto vivo, foi suficiente para não ser esquecido; bem como, todos os seus atos aqui realizados. De modo que os 200 anos da independência deveriam se restringir ao marco temporal, e só.  

O bom da História é justamente isso. O que foi, foi! Quando trazida à tona pela perspectiva da realidade nua e crua, ela cumpre o seu papel de luzir e aprimorar a cidadania. Nenhum país precisa de história perfeita, de heróis e vilões de almanaque, de fatos descritos com requintes de imaginação. História são fatos que se costuram como uma imensa colcha de retalhos.  

No caso do colonialismo brasileiro, ele foi o retrato de um tempo histórico no mundo. De grandes nações que não se dedicaram a estabelecer uma análise crítica e reflexiva do curso da história ao ponto de desconstruir certos paradigmas, os quais poderiam interromper com a saga da barbárie, por exemplo. O tempo das monarquias absolutistas, infelizmente e mais uma vez na história da humanidade, se corrompeu pela ganância, pela cobiça, pelo poder.

Daí a necessidade de conhecer a história para não se deixar repetir os velhos hábitos. E esse é o nosso “Tendão de Aquiles”! Na medida em que mais de 500 anos de história não se mostraram, ainda, suficientes para transformar a nossa consciência, a nossa cidadania, a nossa identidade cultural.

Afinal, as mudanças que chegaram pelas mãos das conjunturas, por mais importantes e significativas, não se mostraram capazes de nos tornar independentes das sombras da nossa herança colonial. Como se, por aqui, velhos hábitos realmente não pudessem jamais morrer! Talvez, por isso, o coração de D. Pedro I seja só um detalhe, a mais, para compor o contexto bizarro que nos acostumamos a cultuar.  

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