domingo, 21 de agosto de 2022

Coragem...


Coragem...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Se tem uma coisa na vida que vem me encantando, cada vez mais amiúde, são os de repentes. Situações, imagens, lembranças, palavras, coisas que a gente se cansa de coexistir com elas e só em um dado momento do curso da história nos damos conta da sua dimensão, do seu significado, do seu papel na completude do quebra-cabeça.

Foi o que me aconteceu, ontem, em relação a João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas 1, quando escreveu “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Essa citação foi o fio condutor da minha reflexão após assistir ao filme Pureza (2022) 2, do diretor Renato Barbieri, e que foi vencedor de 28 prêmios cinematográficos nacionais e internacionais3.

Pois é, no instante mágico em que a minha atenção foi capturada pela saga da personagem Pureza, as palavras de Guimarães Rosa, publicadas lá em 1956, serviram como fagulha certa para me despertar a consciência sobre o tênue limiar em que se equilibra a coragem e a covardia humana.  E o que chamamos de coragem e de covardia, talvez, não expresse exatamente o correto. Há um relativismo gigante no emprego dessas terminologias!

Devotando o máximo de atenção possível a esse mundo contemporâneo isso me parece muito claro. Começa pelo fato de que a coragem é uma força, uma chama, que nos coloca obrigatoriamente cara a cara, sem subterfúgios, com a realidade. Ora, muito pouca gente se dá bem com a realidade! Na verdade, passa mais tempo da vida tecendo ilusões, fantasias, justamente para não ter que cumprir a sina de uma existência imperfeita, difícil, complexa, desafiadora.

No entanto, a análise não se resume ou extingue à perspectiva do próprio indivíduo. A coragem se impõe, também, da porta para fora, nos contextos do mundo. Aí, a coisa fica esquisita! Porque o mundo é bruto, bárbaro, cruel, na medida do protagonismo dos seus atores. Vamos e convenhamos que muito pouca gente aceita ou admite que somos espelhos uns dos outros no que há de bom ou de ruim.

De modo que olhar para o mundo, com a devida coragem, é se deparar muitas vezes com reflexos que nos pertencem intimamente e denunciam de maneira flagrante as nossas omissões, imperfeições, desalinhos. Um processo amargo e inevitável que nos distancia, à nossa revelia, do eterno desejo da perfeição, da semelhança com o Sagrado, o Divino. Nos vemos mortais, falíveis, pequenos, ignorantes. Talvez, muito mais defeitos do que qualidades.

E aí, sem pensar muito, sem disposição para refletir, segue-se o curso da história às carreiras. Sem muito tempo para prestar atenção, para se questionar, para desconstruir certos valores, para ressignificar a vida, tanto interna quanto externamente. Sem se dar conta, muitos vão se permitindo enovelar nas teias de uma cegueira social, que tem a capacidade de transformar o anormal, o bizarro, o hediondo, em algo natural, normal, trivial.   

Simplesmente, porque estabelece uma desconexão, uma dissociação, com a realidade. Nesse ponto se descobre que a coragem não passa de covardia, que ele tantas vezes se vale sob a justificativa de que é necessário agir assim para não enlouquecer, não se curvar, não se humilhar, ... então, veste as aparências, venda os olhos, tampa os ouvidos, silencia e segue adiante.

Até que, vez por outra, a realidade se torna tão insustentável que a coragem explode, sabe-se lá de onde. Por mais que o script da vida a ser seguido tente embrulhar tudo, bem embrulhadinho! Afinal, é um tal de “esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta” que obriga o sujeito a sair da zona de conforto e converter covardia em coragem, como se fosse obra de alquimista.

Eis, então, que o mundo se desnuda. A vida se desnuda. A beleza e o grotesco disputam o mesmo espaço nos veículos de informação e comunicação. Ainda que se saiba que na vida nada é de graça, o preço do sucesso, da glória, da fortuna, do poder, da influência, exibe sua etiqueta panfletária, fazendo-se entender sem as luzes dos holofotes. Linhas e entrelinhas do cotidiano a mostra. Verdade exibida do direito e do avesso. A revelação da lucidez pela vertigem da cegueira.

De repente, a inquisição. O certo e o errado. O bom e o mau. O digno e o indigno. A bondade e a maldade. O avarento e o gastador. A justiça e a injustiça. ... Diante da verdade, os indivíduos são medidos, julgados e considerados inocentes ou culpados pelas omissões, pelas negligências, pelas atrocidades, pelos absurdos, pelas incivilidades, enfim.

Dentro de um tribunal que não se vê; mas, o qual habita a consciência e/ou a inconsciência de cada um. Contudo, nem por isso, é menos implacável, menos decisivo! E nesse momento, mais uma vez, tem-se a certeza de que, independente de qual seja a sentença, o resultado, não há de se escapar do fato de que “O que a vida quer da gente é coragem”. 

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