quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Brasil, 11 de agosto de 2022...


Brasil, 11 de agosto de 2022...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei o que seria da história brasileira sem as cartas. A carta de Pero Vaz de Caminha. A carta de lei da Princesa Isabel, extinguindo a escravidão. A carta de suicídio de Getúlio Vargas. A carta renúncia de Jânio Quadros. ... Enfim, cartas e mais cartas, algumas primando pela habilidade intelectual e cognitiva do remetente, outras provando o contrário pela mediocridade expressa em forma ou em conteúdo. Fato é que elas ainda conseguem ultrapassar a ideia da narrativa de registro para se figurarem na importância documental de pessoas, de fatos e de conjunturas.

Mas, em plena era das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), quem diria que haveria espaço social para cartas e que, ainda, nos causariam tanto impacto! Bem, o ponto de partida para tentar entender esse fenômeno é o fato de que, em linhas gerais, o grande marco que nos diferencia dos animais é a capacidade cognitiva e intelectual, que se manifesta através das expressões de linguagem.

E o que são as cartas senão a tecitura sutil da coesão e da coerência, na composição de linhas e de entrelinhas que condensam a formulação de uma ideia, de uma intenção.  Cartas não são apenas cartas. Cartas são manifestações do poder atemporal das palavras, dos signos, dos símbolos. Como deixa clara a própria Carta Magna brasileira de 1988, que é sem dúvida alguma a carta de todas as cartas na nossa história recente.  

Daí a necessidade de entender que as cartas ao serem escritas, lidas, elas adquirem a reafirmação da história para que esta não se perca entre equívocos, distorções, negações e silêncios. Porque cartas são vozes silenciosas; mas, não silenciadas. Palavras que permitem abrir os olhos da mente para um exercício de reflexão individual e intransferível. Ninguém se conecta com uma carta da mesma maneira. Não, porque ela talvez seja endereçada a outro que não a aquele leitor; mas, porque a leitura se baseia na subjetividade de cada um, na intensidade de cada um.

Pudemos experimentar isso, neste 11 de agosto. No espaço das arcadas da Faculdade de Direito, do Largo de São Francisco, em São Paulo, houve a leitura de uma nova carta em defesa da Democracia, como já havia ocorrido em 1977 1. Uma leitura que ecoou além das fronteiras nacionais e ganhou repercussão internacional 2, com a repetição do mesmo gesto.

Afinal, a carta de hoje, diz muito e a todos nós, sem distinção.  A nós brasileiros, cidadãos naturais ou naturalizados. Embora, não impeça que outros comunguem conosco as aspirações e os sentimentos democráticos, que tangenciam a esperança de um mundo melhor, mais livre, mais justo, mais solidário, mais belo, mais humano.  

Portanto, uma carta que diz muito para muita gente. Uma carta que é a reverberação de milhões de vozes e de ideias uníssonas, no que diz respeito às suas próprias pluralidades e diversidades; mas, que dispõem da competência e da habilidade de reconhecer as importâncias e as prioridades da vida. E dentre elas estão a Democracia, a liberdade e os direitos humanos.    

De repente, contrariando as expectativas ou as convicções sobre um Brasil desmemoriado, indiferente, quase blasé diante dos acontecimentos mais absurdos, eis que a ideia de uma carta se mostrou o caminho mais efetivo e pujante para dizer que não. Quem diria, o brasileiro se negou a negar! Decidiu dar forma a sua dor, a sua indignação, ao seu constrangimento, ao seu desconforto, ... através das palavras, através de uma carta. Uma carta aberta, pública.

Dessa vez, não houve a menor chance para as mensagens de celular, os e-mails e/ou as tecnologias do momento. Para escrever a história, no que diz respeito ao exercício cidadão, era necessário recorrer a algo mais introspectivo, a um estilo menos banalizado ou trivializado. E nada melhor do que uma carta, como já aconteceu outras vezes na história do mundo. Fidel escreveu uma para Franklin Delano Roosevelt. Martin Luther King escreveu uma durante os protestos pelos direitos civis em Birmingham, no Alabama, USA. James Baldwin, escritor negro, escreveu uma atacando o racismo norte-americano. Enfim...

Basta papel e lápis. Basta olhar com atenção para a vida, no desfiar do cotidiano. Basta colocar as ideias em ordem, a partir da vazão dos sentimentos e das emoções represadas. Basta trocar impressões para afinar os denominadores comuns e trazer um pouco de impessoalidade ao que, muitas vezes, é sim, pessoal. Basta se pôr a escrever. ... Uma, duas, três, várias vezes, até alcançar a percepção de que tudo está claro, objetivo, compreensível a quem possa interessar.

E apesar de não ser o propósito de muitas delas ganhar a opinião pública, algumas já nascem para esse fim. Precisam repercutir. Precisam ser lidas e relidas, muitas vezes, para dar a devida materialidade às suas palavras.  Precisam impregnar suas ideias no inconsciente coletivo. Precisam desconstruir paradigmas e ressignificá-los. É assim que as cartas ganham as páginas da história! É assim que as cartas se tornam ferramentas de transformação social!

Hoje, uma carta conseguiu reimortalizar uma data, pela força do seu conteúdo. Conseguiu capturar um recorte conjuntural do tempo e dissecar-lhe as suas verdades mais recônditas. Conseguiu agregar as diferenças, superar as tensões, em nome de algo maior, plural, relevante. ...

Sim, uma carta conseguiu se apropriar das atenções, silenciar os ruídos, produzir a reflexão, em plena contemporaneidade, provando que elas não perderam uma gota sequer do seu poder sobre o ser humano, apesar de todos os esforços em contrário.  

 

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