Muito
mais do que indignação ... É preciso exercitar a cidadania!
Por
Alessandra Leles Rocha
Caro (a) leitor (a), até entendo
o inconformismo e a indignação que sufoca milhões de cidadãos brasileiros. Acontece
que já deveriam ter entendido que não nasce manga em pé de jabuticaba.
Portanto, não há como esperar do Presidente da República e seus asseclas mais
arraigados, quaisquer demonstrações de humanidade e respeito diante de circunstâncias
que exigem esse tipo de comportamento 1.
Eles provam e comprovam uma coerência do mal.
Em 2018, 115, 8 milhões de
brasileiros exerceram o seu direito de voto. 11, 1 milhões votaram branco ou
nulo e 47 milhões, naquela ocasião, já demonstravam a sua eventual contrariedade
ao que estava por vir. Imagino, então, que muitos dos 57,7 milhões de votos que
elegeram o atual governo, talvez, não tinham a devida dimensão que estavam
instituindo de maneira quase absoluta a necropolítica no país. E, quem sabe,
ainda não o tenham depois desses 4 anos ou, simplesmente, se valham da estratégia
de negação desse fato para se absterem das suas responsabilidades humanas e cidadãs.
Mas, foi exatamente isso que se estabeleceu
por aqui, ou seja, “o uso do poder
político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar por
meio de ações e omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou
setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência,
em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve
morrer” 2.
A grande verdade é que nada disso
cabe na posição de surpresa, porque em momento algum esse governo omitiu as
suas crenças e convicções ideológicas 3.
Foi, agora, enquanto governança que, por meio da experienciação cotidiana, as
pessoas se dessem conta das falas, dos discursos, das narrativas, e começassem
a fazer um retrospecto desse material incontestável 4.
Porque, até então, os
questionamentos a respeito da afronta a ética e a moral desse comportamento eram
rapidamente justificados como fanfarronice, bravata, farolagem, ostentação,
patacoada, presepada, e por aí vai. Tudo acabava, então, no campo da
desqualificação. Como se isso fosse realmente possível, dada a gravidade de
muito do que foi vociferado em total ultraje a dignidade da figura humana.
O que as pessoas se esquecem é de
que das palavras para as ações a linha divisória é muito tênue. Num piscar de
olhos, elas se materializam. Razão pela qual, as linguagens no campo jurídico soam
muitas vezes como ameaças diretas, indiretas ou explícitas (art. 147, do Código
Penal brasileiro).
De modo que, em relação as falas,
os discursos e/ou as narrativas dos agentes públicos, elas adquirem uma importância
ainda maior, porque essas pessoas estão imbuídas de obrigações e deveres
previstos constitucionalmente; bem como, no arcabouço jurídico nacional como um
todo, para com a população em geral.
Daí a impossibilidade de
manifestar-se e, logo em seguida, retroceder e/ou se desculpar. Tudo deve ser
medido e pesado antes de se colocar em prática as expressões do pensamento. Afinal
de contas, o inconsciente também fala. Quem
nunca experimentou um ato falho, que atire a primeira pedra.
O ponto em questão é que os
chamados atos falhos revelam o que de mais profundo nos habita, as nossas
verdades mais ocultas, as nossas percepções e compreensões mais íntimas, as
quais do ponto de vista do consciente nós tentamos controlar e dominar.
No entanto, para certas pessoas
isso é impossível. O que geralmente reflete um extrapolar desse limite de inconsciência,
que é o ato falho, para um comportamento totalmente consciente, estratégico e
bem definido. Além do mais, essas questões estão intrínsecas ao fato de o ser
humano ser atravessado pelas linguagens.
Portanto, valendo-se de palavras,
símbolos, sinais, e/ou signos, as pessoas expressam suas emoções, sentimentos e
ideias por manifestações que ultrapassam a fala, a escrita, as artes e o
próprio corpo. Porque as linguagens não se resumem apenas à comunicação em si;
mas, elas buscam nos permitir o conforto da tradução das subjetividades
contextualizadas.
E quando se sabe que há
reciprocidade na interação linguística, aí as pessoas se sentem legitimadas nas
suas expressões. Elas entendem que existe eco, afinidade, comunhão, que elas
não estão sós nas suas emoções, sentimentos e/ou ideias. O que é extremamente importante
nessa reflexão, porque isso nos permite compreender que quaisquer demonstrações
de desumanidade e/ou desrespeito promovidas pelo atual governo reverberam por
um contingente muito maior de pessoas.
De repente, talvez, o que venha
nos causando mais repulsa, mais incompreensão, mais descontentamento, não é
toda essa incivilidade governamental em si; mas, o fato de descobrirmos que há
muito mais pessoas com esse perfil, circulando entre nós, do que poderíamos sequer
supor.
As violências perpetradas por linguagens
e por atos ultrapassaram tanto os limites que alcançaram a desconstrução de
certos conceitos fundamentais como, por exemplo, fraternidade, empatia,
civilidade, afeto. E isso choca. Isso agride. Isso impacta de maneira muito
avassaladora a sociedade.
Porque revela que não estamos
coesos, unidos, em um senso comum de coletividade. Que os nossos interesses
mais básicos e elementares, como é o instinto de sobrevivência, não é mais capaz
de nos agregar. Que estamos cada vez mais próximos do “cada um por si e Deus por todos”. E isso nos fragiliza tanto em
corpo quanto em alma, na medida em que nos torna órfãos da nossa própria espécie.
Entretanto, só a indignação não
adianta. Só o pesar não adianta. Só o arrependimento não adianta. O gosto
amargo dessa vivência contemporânea exige, de maneira decisiva e contundente, o
aprimoramento do nosso senso cidadão. O resgate de certos valores, princípios, comportamentos,
passa pelo exercício consciente da cidadania, no que tangem as nossas escolhas,
as nossas manifestações, as nossas perspectivas. Qualquer transformação tem
sempre um quinhão da nossa responsabilidade e da nossa participação. Pense
nisso!
1 https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-participa-de-motociata-em-manaus-e-ignora-caso-dom-e-bruno/
2 Termo
cunhado pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe,
em 2003, em ensaio homônimo e, posteriormente, livro. Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.