domingo, 19 de junho de 2022

Muito mais do que indignação ... É preciso exercitar a cidadania!


Muito mais do que indignação ... É preciso exercitar a cidadania!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Caro (a) leitor (a), até entendo o inconformismo e a indignação que sufoca milhões de cidadãos brasileiros. Acontece que já deveriam ter entendido que não nasce manga em pé de jabuticaba. Portanto, não há como esperar do Presidente da República e seus asseclas mais arraigados, quaisquer demonstrações de humanidade e respeito diante de circunstâncias que exigem esse tipo de comportamento 1. Eles provam e comprovam uma coerência do mal.

Em 2018, 115, 8 milhões de brasileiros exerceram o seu direito de voto. 11, 1 milhões votaram branco ou nulo e 47 milhões, naquela ocasião, já demonstravam a sua eventual contrariedade ao que estava por vir. Imagino, então, que muitos dos 57,7 milhões de votos que elegeram o atual governo, talvez, não tinham a devida dimensão que estavam instituindo de maneira quase absoluta a necropolítica no país. E, quem sabe, ainda não o tenham depois desses 4 anos ou, simplesmente, se valham da estratégia de negação desse fato para se absterem das suas responsabilidades humanas e cidadãs.  

Mas, foi exatamente isso que se estabeleceu por aqui, ou seja, “o uso do poder político e social, especialmente por parte do Estado, de forma a determinar por meio de ações e omissões (gerando condições de risco para alguns grupos ou setores da sociedade, em contextos de desigualdade, em zonas de exclusão e violência, em condições de vida precárias, por exemplo), quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 2.

A grande verdade é que nada disso cabe na posição de surpresa, porque em momento algum esse governo omitiu as suas crenças e convicções ideológicas 3. Foi, agora, enquanto governança que, por meio da experienciação cotidiana, as pessoas se dessem conta das falas, dos discursos, das narrativas, e começassem a fazer um retrospecto desse material incontestável 4.

Porque, até então, os questionamentos a respeito da afronta a ética e a moral desse comportamento eram rapidamente justificados como fanfarronice, bravata, farolagem, ostentação, patacoada, presepada, e por aí vai. Tudo acabava, então, no campo da desqualificação. Como se isso fosse realmente possível, dada a gravidade de muito do que foi vociferado em total ultraje a dignidade da figura humana.

O que as pessoas se esquecem é de que das palavras para as ações a linha divisória é muito tênue. Num piscar de olhos, elas se materializam. Razão pela qual, as linguagens no campo jurídico soam muitas vezes como ameaças diretas, indiretas ou explícitas (art. 147, do Código Penal brasileiro).  

De modo que, em relação as falas, os discursos e/ou as narrativas dos agentes públicos, elas adquirem uma importância ainda maior, porque essas pessoas estão imbuídas de obrigações e deveres previstos constitucionalmente; bem como, no arcabouço jurídico nacional como um todo, para com a população em geral.

Daí a impossibilidade de manifestar-se e, logo em seguida, retroceder e/ou se desculpar. Tudo deve ser medido e pesado antes de se colocar em prática as expressões do pensamento. Afinal de contas, o inconsciente também fala.  Quem nunca experimentou um ato falho, que atire a primeira pedra.

O ponto em questão é que os chamados atos falhos revelam o que de mais profundo nos habita, as nossas verdades mais ocultas, as nossas percepções e compreensões mais íntimas, as quais do ponto de vista do consciente nós tentamos controlar e dominar.

No entanto, para certas pessoas isso é impossível. O que geralmente reflete um extrapolar desse limite de inconsciência, que é o ato falho, para um comportamento totalmente consciente, estratégico e bem definido. Além do mais, essas questões estão intrínsecas ao fato de o ser humano ser atravessado pelas linguagens.

Portanto, valendo-se de palavras, símbolos, sinais, e/ou signos, as pessoas expressam suas emoções, sentimentos e ideias por manifestações que ultrapassam a fala, a escrita, as artes e o próprio corpo. Porque as linguagens não se resumem apenas à comunicação em si; mas, elas buscam nos permitir o conforto da tradução das subjetividades contextualizadas.

E quando se sabe que há reciprocidade na interação linguística, aí as pessoas se sentem legitimadas nas suas expressões. Elas entendem que existe eco, afinidade, comunhão, que elas não estão sós nas suas emoções, sentimentos e/ou ideias. O que é extremamente importante nessa reflexão, porque isso nos permite compreender que quaisquer demonstrações de desumanidade e/ou desrespeito promovidas pelo atual governo reverberam por um contingente muito maior de pessoas.

De repente, talvez, o que venha nos causando mais repulsa, mais incompreensão, mais descontentamento, não é toda essa incivilidade governamental em si; mas, o fato de descobrirmos que há muito mais pessoas com esse perfil, circulando entre nós, do que poderíamos sequer supor.

As violências perpetradas por linguagens e por atos ultrapassaram tanto os limites que alcançaram a desconstrução de certos conceitos fundamentais como, por exemplo, fraternidade, empatia, civilidade, afeto. E isso choca. Isso agride. Isso impacta de maneira muito avassaladora a sociedade.

Porque revela que não estamos coesos, unidos, em um senso comum de coletividade. Que os nossos interesses mais básicos e elementares, como é o instinto de sobrevivência, não é mais capaz de nos agregar. Que estamos cada vez mais próximos do “cada um por si e Deus por todos”. E isso nos fragiliza tanto em corpo quanto em alma, na medida em que nos torna órfãos da nossa própria espécie.

Entretanto, só a indignação não adianta. Só o pesar não adianta. Só o arrependimento não adianta. O gosto amargo dessa vivência contemporânea exige, de maneira decisiva e contundente, o aprimoramento do nosso senso cidadão. O resgate de certos valores, princípios, comportamentos, passa pelo exercício consciente da cidadania, no que tangem as nossas escolhas, as nossas manifestações, as nossas perspectivas. Qualquer transformação tem sempre um quinhão da nossa responsabilidade e da nossa participação. Pense nisso!



2 Termo cunhado pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe, em 2003, em ensaio homônimo e, posteriormente, livro. Fonte: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/necropolitica#:~:text=%E2%80%9C'Necropol%C3%ADtica%20%C3%A9%20a%20capacidade%20de,morrer%2C%20%C3%A9%20fazer%20morrer%20tamb%C3%A9m.